BRASIL
Mídia, polícia
militar e governos como o do Estado de São Paulo ainda pautam combate às drogas
- e ao crack - pelo viés repressor, apesar do fracasso histórico dessas
políticas. Plano do governo federal lançado em 2011 destaca a dimensão
relacionada à saúde, mas especialistas cobram verba maior e dizem que entes
federativos ainda resistem a aderir.
Bárbara Vidal* - Carta Maior
“Zumbis do crack
invadem as capitais do Brasil”. “Zumbis se arrastam pela rua”. “São farrapos
enrolando restos de humanidade”. É o que bradam colunistas dos grandes jornais
brasileiros sobre os usuários da droga concentrados nas chamadas cracolândias.
Estigmatizados como zumbis por uma classe média que não os quer enxergar, eles
provocam cada vez mais pânico no restante da população que não sabe lidar com
essa situação.
O termo “zumbi” caracteriza alguém dado como morto, que volta a viver
irracionalmente, controlado por uma força maior; um ser humano que vive em
estado catatônico, gerando insegurança e medo. Definir os usuários de crack
como zumbis sugere que eles perderam a capacidade de escolha e discernimento
sobre a própria vida, que a droga os manipula e que são, por si só, uma ameaça
à sociedade.
No entanto, o crack não é o inimigo contra o qual se deve lutar. Ainda que seja
uma droga mais pesada e com efeitos mais degradantes a seus usuários – se
comparada ao álcool e à cocaína, por exemplo –, é apenas mais uma substância
ofertada à população. Seus consumidores são vítimas de um sistema que os
criminaliza. “Se essas pessoas estivessem simplesmente na rua, passando fome e
frio, como sempre estiveram, independentemente de serem ou não usuários de
drogas, não seriam ‘zumbis’ ou, pelo menos, não ameaçariam”, diz o antropólogo
e pesquisador sobre uso de drogas Maurício Fiore.
Muitos profissionais do direito, da saúde e da assistência social que trabalham
diariamente com dependentes de crack afirmam que esses usuários têm plena
consciência do que estão passando. Entre eles está a defensora pública do
Estado de São Paulo Daniela Skromov de Albuquerque. Para ela, “de uma hora para
outra” todo mundo acordou e quer envolver a sociedade e as instituições para encontrar
uma solução ao problema do crack. “Junto a este senso de urgência vem um
discurso salvacionista e a concepção de que os usuários de drogas não sabem o
que querem. Então, surge o crack como droga símbolo e os especialistas devem
definir o que estes indivíduos devem querer”.
Sai o éter e entra o crack
O crack existe no Brasil desde o fim da década de 80 e início de 90, quando a
cocaína passou a ser refinada no país. Até então, a droga entrava no Brasil já
pronta para o consumo. Essa mudança se deu por uma ação da Polícia Federal que,
nesta mesma época, descobriu que a cocaína distribuída no país era refinada na
Colômbia e na Bolívia com insumos produzidos pela indústria brasileira, a
exemplo do éter e outros solventes.
Pouco antes dessa investigação, a tendência mundial já era a intensificação do
combate a essas substâncias químicas. A Convenção das Nações Unidas contra o
Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, de 1988,
preocupou-se com o crescimento do crime organizado, de acordo com o artigo de
Maurides de Melo Ribeiro e Marcelo Ribeiro Araújo, “Política mundial de drogas
ilícitas: uma reflexão histórica”, publicado no livro “Panorama atual de drogas
e dependências”. “Nesse sentido, a convenção chamou os países signatários a adotarem
medidas de combate ao tráfico de drogas e à lavagem de dinheiro. Além disso, os
produtos químicos utilizados na obtenção dos princípios ativos das plantas
psicoativas passaram a sofrer forte controle por parte das nações.”
Como não era possível (e ainda não é) manter um controle efetivo da fronteira
para que a droga não entrasse no território nacional, a solução encontrada pela
PF foi o caminho inverso: barraram a saída dos produtos usados no refino de
cocaína para aqueles países. Consequentemente, os traficantes brasileiros
passaram a importar a pasta base da cocaína para ser refinada no país. O crack,
subproduto deste processo, também passou a ser comercializado ilegalmente.
Ao contrário do efeito da maconha, que pode tomar horas do dia de um usuário e
geralmente é consumida coletivamente, e da cocaína, cuja euforia dura meia
hora, em média, o crack é uma droga de uso individual, com efeito de no máximo
cinco minutos. Tais diferenças alteraram significativamente o padrão do consumo
de drogas no Brasil.
“Fumar uma pedra de crack é comparado a uma quantidade de neurotransmissores
iguais à de um orgasmo. Com a diferença de que se pode ter um orgasmo a cada
cinco minutos. Nenhum ser humano, com uma vida normal, pode isso! Essa é a
grande questão: os fatores associados à rapidez com que o usuário se torna
dependente químico”, explica Lucas Neiva, psicólogo e pesquisador do Centro de
Estudos Psicológicos sobre Meninos e Meninas de Rua (CEP-rua).
São Paulo, onde a droga chegou antes do que em qualquer outro estado do país,
abriga a maior cracolândia brasileira. Ela está localizada na região central da
cidade, entre as ruas Mauá e avenidas Duque de Caxias, Cásper Líbero, Ipiranga
e Rio Branco. Até julho de 1999 nenhuma intervenção por parte do governo municipal
ou estadual havia sido feita na região. Naquela época, por ordem do então
prefeito Celso Pitta (PPB, atual PP), a Polícia Militar fez uma varredura de
usuários de drogas e moradores de rua, ainda que sob protestos de setores da
sociedade civil, por conta da inauguração da Sala São Paulo, no antigo edifício
da Estação Ferroviária Júlio Prestes.
Enquanto a frequência de usuários de drogas só aumentou na Cracolândia, as
políticas públicas continuaram as mesmas. Assim como Celso Pitta, o ex-prefeito
Gilberto Kassab (PSD) e o governador Geraldo Alckmin (PSDB), também como forma
de revitalizar o centro, utilizaram-se da truculência policial, abuso de
autoridade e medidas inconstitucionais, para retirar os usuários das ruas.
Decisões essas que foram bastante criticadas por organizações ligadas aos
Direitos Humanos, como o Centro de Convivência É de Lei, que atua na promoção
da Redução de Danos à saúde associados ao uso de drogas. Essa foi a forma que o
Estado em suas diferentes instâncias encontrou para eliminar os “zumbis do
crack”.
O tiro saiu pela culatra
Após as festas de fim de ano, descolados do governo federal, que previa para
2012 a assinatura do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas
pelos Estados, os governos estadual e municipal de São Paulo deflagraram, há um
ano, a Operação Sufoco. Também conhecida por Operação Cracolândia, ela visava
combater o tráfico de drogas que acontecia a qualquer hora do dia, sem qualquer
controle do Estado, e retirar os usuários de drogas da região central da cidade.
Esse Plano de Enfrentamento, lançado pela presidenta Dilma Rousseff no dia 7 de
dezembro de 2011, passou a tomar forma com a campanha de combate à droga, cujo
slogan era “Crack, é possível vencer”. Segundo o portal da campanha, seus
objetivos são: aumentar a oferta de tratamento de saúde e atenção aos usuários,
enfrentar o tráfico de drogas e as organizações criminosas e ampliar atividades
de prevenção por meio da educação, informação e capacitação. Ele também prevê o
investimento de até R$ 4 bilhões até o final de 2014, que “serão aplicados em
diversas ações de políticas públicas integradas, em diversos setores como
saúde, educação, assistência social e segurança pública. A responsabilidade
também será compartilhada com estados e municípios que terão o compromisso de
oferecer apoio”.
Para Lucas Neiva, apesar da importância de um investimento com cifras até então
inéditas na área de drogas, o plano ainda é insuficiente. “Isso porque a
dimensão com que se cresce o número de dependentes químicos e da população das
classes média e média alta vindo morar na rua por causa do uso de crack é
enorme. Crack, hoje, é uma epidemia e a dependência química, antes de tudo, é
um problema de saúde pública. Se você conseguir manter estático o nível do
problema, já é uma evolução. Quantas das políticas públicas têm um núcleo
direcionado para as famílias dos pacientes? Nenhuma. Então não vai dar certo
nunca. O que estão dando é esmola”, critica Neiva.
Além disso, o governo federal tem conseguido muito lentamente a adesão dos
Estados ao plano, e, um ano após ter sido decretado, ela ainda não foi feita
por grande parte das capitais, como é o caso de São Paulo. Mesmo com esse
investimento, o governo não tem como fiscalizar se o dinheiro foi aplicado
equanimemente no combate ao tráfico e na criação de lugares que oferecem
tratamento diversificado aos usuários. “Do total do valor gasto da política de
drogas brasileira, mais de 80% vão para a repressão da oferta, investimento na
Polícia Federal, armamentos, aviões, etc. Apenas 20% são gastos com usuários e,
desse percentual, menos de 1% é gasto com prevenção”, declara Neiva.
Para Altieres Edemar Frei, psicólogo de um Centro de Apoio Psicossocial em
Álcool e Drogas (CAPS-AD) de São Paulo e estudioso do assunto, o plano ainda
estava “na gaveta” quando a Operação Cracolândia teve início. “Era uma questão
muito clara dos poderes municipal e estadual: ‘Vamos fazer algo antes de o
governo federal criticar a gente em época de campanha eleitoral’”.
Bombas de efeito moral, balas de borracha, gás de pimenta, cavalaria, viaturas
sobre as calçadas, prisões, internações compulsórias e cassetetes foram os
protagonistas durante pouco mais de um mês do filme de terror que, desta vez,
não tinha os “zumbis do crack” como vilões, mas sim a Polícia Militar, na época
comandada pelo Coronel Álvaro Batista Camilo.
A tão conhecida declaração do coordenador estadual de Políticas Públicas de
Combate ao Álcool e Drogas, Luiz Alberto Chaves de Oliveira, que o tratamento
dos dependentes de crack deveria ser à base de “dor e sofrimento”, assim como a
própria operação, ofendeu os princípios da Lei de Drogas (11.343/06) e da Lei
da Reforma Psiquiátrica (10.216/01), segundo a ação civil pública movida pelo
Ministério Público do Estado de São Paulo contra o governo estadual em junho de
2012.
Foi sob esta mesma ótica que Bruno Ramos Gomes, psicólogo e membro do É de Lei,
observou durante os três primeiros meses do ano as pessoas que passavam pelo
centro. “Todas elas estavam muito machucadas, vagando, sem conseguir se
organizar para ter um cuidado de higiene pessoal”. Segundo o psicólogo, a
prefeitura ofereceu o que a maioria das pessoas na Cracolândia já experimentou:
a internação em comunidade terapêutica e a entrada no sistema prisional. “Nos
primeiros dias da PM no Centro muitas pessoas foram internadas voluntariamente
como forma de fugir da violência, e não em busca de um tratamento. Além disso,
muita gente está presa e sequer foi julgada ainda”, comenta Ramos.
O papel da PM
Durante a Operação Sufoco, o principal objetivo era quebrar a logística do
tráfico –segundo declarações oficiais – e, para que ela fosse minimamente
aceita pela maioria da população e pela opinião pública, traficantes deveriam
ser presos. O óbvio ululante. Partindo desse princípio, as forças policiais
prenderam muitos usuários como traficantes.
Isso porque, com a sanção da Lei de Drogas, a pena para tráfico foi
consideravelmente endurecida e, para consumidores, amenizada. “Não há um
critério objetivo para fazer essa distinção entre tráfico e uso de drogas.
Então, muitas pessoas que são usuárias são condenadas como se fossem
traficantes”, afirma o advogado e doutor em Direito Penal Cristiano Ávila
Maronna, em artigo publicado no livro “Álcool e outras drogas”.
No caso do crack, a figura do traficante é muito menos delineada do que no de
outros psicotrópicos. Principalmente na região da Cracolândia, a venda da
substância é pulverizada e, majoritariamente, feita pelos próprios consumidores
como forma de manter o uso. “Quando muito, teriam sido presos pequenos
varejistas, os últimos e mais insignificantes elos da sólida e robusta corrente
de distribuição de drogas no local”, de acordo com o documento da Ação movida
pelo MP.
A defensora pública, Daniela Skromov afirma que o tráfico é um comércio
lucrativo e quem o abastece e tem peso nessa rede de negociação não mora na
rua, nem na Cracolândia. “A lógica da Operação foi exclusivamente policial:
primeiro de combate ao tráfico para depois levar o tratamento, como se este
tivesse que ser feito nos lugares de miséria e, sobretudo, onde se tem a figura
do consumidor”, critica.
Segundo um oficial da PM que atua na região metropolitana de São Paulo e pediu
para não ser identificado, a diferenciação entre porte de drogas e tráfico se
dá pela abordagem e “feeling”. “Se eu estou numa biqueira, sei que determinada
pessoa está ali sempre. A maioria das vezes, quando o cara foi abordado, ou ele
acabou de dispensar a droga ou está com ela no bolso. Geralmente o que está
traficando não usa ou não usa ali. E a gente sabe que o cara que está chapado
não é o mesmo que está vendendo”, conta.
A sociedade imediatista, que ainda aplaude duelos de gladiadores, também
dificulta a ação policial prevista na lei. A prevenção de crimes não gera
notícia, não traz resultados imediatos, nem em somente quatro anos. O PM diz
que na
Academia, os aspirantes a PMs aprendem toxicologia, política de redução de
danos, que o problema das drogas é de saúde e tentam conviver da melhor maneira
possível com a questão.
“Mas a população fala: ‘Vocês não estão vendo que ali tem droga e não vão fazer
nada?’. É mais ou menos o que acontece no centro. No ‘Profissão Repórter’ o
Caco Barcellos fez uma reportagem sobre isso, que a viatura passava e ele
falava: ‘Nossa, o menino está cheirando cola e o policial não faz nada?’. Então
chega um ponto que falamos: ‘Ah, a gente não faz nada? Então vamos fazer’. Meu
maior problema hoje em dia não é o traficante e não é o ladrão. É lidar com a
mídia dizendo o que eu devo fazer, se está certo ou não”, completa o policial.
*Bárbara Vidal é jornalista. Esta reportagem foi publicada na edição impressa
da revista Caros Amigos e é divulgada agora em primeira mão na internet pela
Carta Maior.
Fotos: Arquivo
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