sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Portugal: RELVAS, ASSIS, SANTOS SILVA E A CULTURA DE CASTA




Daniel Oliveira – Expresso, opinião

Já ontem aqui escrevi sobre a absurda conversa em torno de uma suposta violação da liberdade de expressão de um ministro que mandou despedir um cronista que na rádio pública o criticava e que tutela o administrador que mandou sair uma circular interna na RTP que impede os funcionários de fazerem declarações públicas sobre a empresa. Mas hoje queria falar de algumas reações de alguns políticos da área do PS a estes acontecimentos.

Não vou desenvolver sobre esta estranha característica nacional que leva a que, perante qualquer protesto que não se resuma ao mero desfile cerimonial na Avenida da Liberdade, se manifeste imediatamente o incómodo de muita gente. Espanhóis, gregos, italianos, franceses, ingleses... a generalidade dos povos ficaria de boca aberta ao saber que os protestos ruidosos mas pacíficos no ISCTE mereceram sequer este debate em torno dos direitos fundamentais de um ministro. Só pode estar tudo doido. A vice-presidente da Comissão Europeia resumiu bem o olhar externo sobre estas formas de protesto: "feliz é o país onde a oposição se manifesta através de uma canção e não pela violência".

Nós somos a bovina mansidão encarnada num povo. Ao mínimo sobressalto cívico, por mais pacífico que seja, incomodam-se os cavalheiros e as donzelas. E isso explica porque somos tão facilmente domesticáveis. A velha frase de um general romano, que dizia haver, na parte ocidental da Ibéria, um povo que não se governa nem se deixa governar, tão útil a qualquer ditador de algibeira, não podia ser menos apropriada aos portugueses. Há anos que nos deixamos governar mal sem qualquer sobressalto e bem temos pago a fatura da nossa passividade.

Francisco Assis e Augusto Santos Silva vieram em socorro de Miguel Relvas. Não se deram ao trabalho de procurar muitos argumentos e usaram o que estava já no mercado: a estapafúrdia ideia de que a liberdade de expressão do ministro estava em perigo. Vá lá, não chamaram "fascistas" aos que protestaram. Têm a vantagem de, ao contrário de outros, saberem o que isso foi.

A posição destes dois dirigentes políticos em concreto não me espanta. Há quem, tendo sido e esperando voltar a ser governo, não queira ser incomodado pela populaça. E esta cultura de casta sobrepõe-se à sinceridade do confronto político. A política é um mero jogo retórico que acaba sempre e apenas na alternância no exercício da governação - Assis até já veio defender uma coligação governamental entre o PS, o PSD e o CDS, para que se dispense essa parte do jogo.

Tenho amigos de direita. Muitos. Com quem mantenho debates civilizados e troca de ideias. Não olho para os adversários políticos como inimigos. Mas conheço o País em que vivo. Vejo o desespero à minha volta, muito próximo. Conheço demasiada gente desempregada, endividada, desesperada. E vejo como observam, atónitas, entre a depressão e a raiva, a permanência de um sujeito como Miguel Relvas no governo. Um sujeito que ninguém quer a governar mas que, por mais e pior que seja o que se vai sabendo sobre ele, se mantém agarrado ao lugar.

A ver se alguns políticos burocratas, daqueles que acham que a sua carreira pode continuar a ser gerida como sempre foi - agora tu, agora eu, depois tu mais eu -, entendem isto de uma vez por todas: não estamos a viver tempos normais. E se me indigno com os que, na minha área política, acham que basta esperar pelos frutos eleitorais da indignação das pessoas sem fazer tudo para construir uma alternativa, não posso deixar de me indignar com os que querem, nas atuais e dramáticas circunstâncias, manter as pessoas caladas para que o poder lhes caia nos braços com o País em sono profundo. À espera que eles resolvam, entre golpes de teatro falhados no largo do Rato, constituir-se como uma alternativa credível a esta desgraça. Compreendo que a indignação dos cidadãos seja uma maçada. Que retira ao jogo político a sua prazenteira bonomia. Mas é bom que percebam que estão a brincar com o fogo. Porque é a sobrevivência das pessoas que está em causa.

Portugal é um País pequeno. Na elite política, económica e cultural toda a gente se conhece. Eu, pobre colunista, conheço Assis, Santos Silva e Relvas. Isto é um penico. E essa é uma das nossas tragédias. Somos todos uns para os outros. Ou amigos, ou amigos de amigos, ou conhecidos, ou conhecidos de conhecidos. Por isso, desde que bem colocado, ninguém com o mínimo de poder é realmente punido pelos seus atos. Por isso, não se irradia da política quem nunca nela devia entrado. Tudo se lava, tudo passa. E o espírito de casta que a nossa pequenez alimenta faz com que Assis e Santos Silva, pessoas de quem discordo mas a quem reconheço honestidade, olhem para uma figura como Relvas e o vejam como um par. Poderão vir a ser eles a estar naquele lugar, pensarão. E estar no lugar dele, entenda-se, não é ter a sua liberdade ou os seus direitos cívicos em perigo (se assim fosse, até eu vinha em defesa do inenarrável Relvas), mas apenas ouvir os protestos de uma plateia. Uma plateia, veja-se o descaramento, que não trata Relvas por "sua excelência".

Tenho várias vezes escrito aqui sobre o que acho da violência na política. A minha posição é, nesta matéria, radical. Oponho-me à violência da rua e à violência do Estado. Considero-as duas faces da mesma moeda. Mas sei uma coisa: que ou deixam as pessoas expressar a sua indignação de forma pacifica, ou as deixam participar na vida da comunidade manifestando o seu incómodo por serem governadas por gente como Relvas, e veem isso como sinal de um País que ainda reage e de um povo que ainda tem algum amor próprio, ou elas acabarão por o fazer de outra forma. E aí, caro Francisco Assis e Augusto Santos Silva, não será Miguel Relvas o alvo. Porque a violência e o caos têm a inteligência da multidão em fúria. E espalham-se sem critério nem alvo definido.

Como muitos portugueses, senti orgulho nos estudantes que protestaram no ISCTE. Que usaram, na sua faculdade, o único momento em que a sua liberdade de expressão poderia ser exercida em público, para, por uma vez, se fazerem ouvir. Sinal de um País que ainda respira. Que não aceita tudo. Que quer ser ouvido. E que, apesar de tudo, continua, em geral, a não ceder à violência. Que homens que se imaginam a governar na companhia dos relvas deste mundo se incomodem com o ruído da turba, não me espanta. Só pode ser porque ainda não perceberam o que realmente está a acontecer neste País. Felizmente, conheço muita gente no PS que não os acompanha. Talvez porque não vejam Miguel Relvas como um colega.

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