Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Já ontem aqui
escrevi sobre a absurda conversa em torno de uma suposta violação da
liberdade de expressão de um ministro que mandou despedir um cronista que
na rádio pública o criticava e que tutela o administrador que mandou sair uma
circular interna na RTP que impede os funcionários de fazerem declarações
públicas sobre a empresa. Mas hoje queria falar de algumas reações de
alguns políticos da área do PS a estes acontecimentos.
Não vou desenvolver
sobre esta estranha característica nacional que leva a que, perante qualquer
protesto que não se resuma ao mero desfile cerimonial na Avenida da Liberdade,
se manifeste imediatamente o incómodo de muita gente. Espanhóis, gregos,
italianos, franceses, ingleses... a generalidade dos povos ficaria de boca
aberta ao saber que os protestos ruidosos mas pacíficos no ISCTE mereceram
sequer este debate em torno dos direitos fundamentais de um ministro. Só pode
estar tudo doido. A vice-presidente da Comissão Europeia resumiu bem o olhar externo
sobre estas formas de protesto: "feliz é o país onde a oposição se
manifesta através de uma canção e não pela violência".
Nós somos a bovina
mansidão encarnada num povo. Ao mínimo sobressalto cívico, por mais pacífico
que seja, incomodam-se os cavalheiros e as donzelas. E isso explica porque
somos tão facilmente domesticáveis. A velha frase de um general romano, que
dizia haver, na parte ocidental da Ibéria, um povo que não se governa nem se
deixa governar, tão útil a qualquer ditador de algibeira, não podia ser menos
apropriada aos portugueses. Há anos que nos deixamos governar mal sem
qualquer sobressalto e bem temos pago a fatura da nossa passividade.
Francisco Assis e
Augusto Santos Silva vieram em socorro de Miguel Relvas. Não se deram ao
trabalho de procurar muitos argumentos e usaram o que estava já no mercado: a
estapafúrdia ideia de que a liberdade de expressão do ministro estava em
perigo. Vá lá, não chamaram "fascistas" aos que protestaram. Têm a
vantagem de, ao contrário de outros, saberem o que isso foi.
A posição destes
dois dirigentes políticos em concreto não me espanta. Há quem, tendo sido e
esperando voltar a ser governo, não queira ser incomodado pela populaça. E esta cultura
de casta sobrepõe-se à sinceridade do confronto político. A política é um
mero jogo retórico que acaba sempre e apenas na alternância no exercício da
governação - Assis até já veio defender uma coligação governamental entre
o PS, o PSD e o CDS, para que se dispense essa parte do jogo.
Tenho amigos de
direita. Muitos. Com quem mantenho debates civilizados e troca de ideias. Não
olho para os adversários políticos como inimigos. Mas conheço o País em que
vivo. Vejo o desespero à minha volta, muito próximo. Conheço demasiada
gente desempregada, endividada, desesperada. E vejo como observam, atónitas,
entre a depressão e a raiva, a permanência de um sujeito como Miguel Relvas no
governo. Um sujeito que ninguém quer a governar mas que, por mais e pior que
seja o que se vai sabendo sobre ele, se mantém agarrado ao lugar.
A ver se alguns
políticos burocratas, daqueles que acham que a sua carreira pode continuar a
ser gerida como sempre foi - agora tu, agora eu, depois tu mais eu -,
entendem isto de uma vez por todas: não estamos a viver tempos normais. E se me
indigno com os que, na minha área política, acham que basta esperar pelos
frutos eleitorais da indignação das pessoas sem fazer tudo para construir uma
alternativa, não posso deixar de me indignar com os que querem, nas atuais e
dramáticas circunstâncias, manter as pessoas caladas para que o poder lhes caia
nos braços com o País em sono profundo. À espera que eles resolvam, entre
golpes de teatro falhados no largo do Rato, constituir-se como uma alternativa
credível a esta desgraça. Compreendo que a indignação dos cidadãos seja uma
maçada. Que retira ao jogo político a sua prazenteira bonomia. Mas é bom que
percebam que estão a brincar com o fogo. Porque é a sobrevivência das pessoas
que está em causa.
Portugal é um País
pequeno. Na elite política, económica e cultural toda a gente se conhece. Eu,
pobre colunista, conheço Assis, Santos Silva e Relvas. Isto é um penico. E essa
é uma das nossas tragédias. Somos todos uns para os outros. Ou amigos, ou
amigos de amigos, ou conhecidos, ou conhecidos de conhecidos. Por isso, desde
que bem colocado, ninguém com o mínimo de poder é realmente punido pelos seus
atos. Por isso, não se irradia da política quem nunca nela devia entrado. Tudo
se lava, tudo passa. E o espírito de casta que a nossa pequenez alimenta
faz com que Assis e Santos Silva, pessoas de quem discordo mas a quem reconheço
honestidade, olhem para uma figura como Relvas e o vejam como um par. Poderão
vir a ser eles a estar naquele lugar, pensarão. E estar no lugar dele,
entenda-se, não é ter a sua liberdade ou os seus direitos cívicos em perigo (se
assim fosse, até eu vinha em defesa do inenarrável Relvas), mas apenas ouvir os
protestos de uma plateia. Uma plateia, veja-se o descaramento, que não trata
Relvas por "sua excelência".
Tenho várias vezes
escrito aqui sobre o que acho da violência na política. A minha posição é,
nesta matéria, radical. Oponho-me à violência da rua e à violência do Estado.
Considero-as duas faces da mesma moeda. Mas sei uma coisa: que ou deixam
as pessoas expressar a sua indignação de forma pacifica, ou as deixam
participar na vida da comunidade manifestando o seu incómodo por serem
governadas por gente como Relvas, e veem isso como sinal de um País que ainda
reage e de um povo que ainda tem algum amor próprio, ou elas acabarão por
o fazer de outra forma. E aí, caro Francisco Assis e Augusto Santos Silva, não
será Miguel Relvas o alvo. Porque a violência e o caos têm a inteligência da
multidão em fúria. E espalham-se sem critério nem alvo definido.
Como muitos
portugueses, senti orgulho nos estudantes que protestaram no ISCTE. Que
usaram, na sua faculdade, o único momento em que a sua liberdade de expressão
poderia ser exercida em público, para, por uma vez, se fazerem ouvir. Sinal
de um País que ainda respira. Que não aceita tudo. Que quer ser ouvido. E que,
apesar de tudo, continua, em geral, a não ceder à violência. Que homens
que se imaginam a governar na companhia dos relvas deste mundo se incomodem com
o ruído da turba, não me espanta. Só pode ser porque ainda não perceberam
o que realmente está a acontecer neste País. Felizmente, conheço muita gente no
PS que não os acompanha. Talvez porque não vejam Miguel Relvas como um colega.
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