Gustavo Cardoso – Público,opinião
As próximas linhas
não são um plágio mas antes uma proposta de jogo. Esse jogo consiste em
adivinhar sobre que país estamos a falar nas frases seguintes.
“Nada ilustra
melhor o que tem acontecido do que o apuro que vivem os que hoje têm vinte e
poucos anos. Em vez de iniciarem uma nova vida, cheia de entusiasmo e
esperança, muitos deles confrontam-se com um mundo de ansiedade e medo.
Esmagados com o custo dos estudos e empréstimos, que sabem lhes ir custar muito
a pagar e que não se reduzirão mesmo que se declarem insolventes, procuram
empregos num mercado de trabalho disfuncional. Se tiverem sorte de encontrar um
emprego, os salários serão um desapontamento, na maior parte das vezes tão
baixos que terão de continuar a viver com os seus pais. Enquanto os pais de
cinquenta e tal anos se preocupam com os seus filhos, também se preocupam com o
seu próprio futuro. Irão perder a sua casa? Serão obrigados a reformar-se antes
do tempo? Será que as suas economias, em grande parte depauperadas pela grande
recessão, serão suficientes para continuar a viver? Eles sabem que face à
adversidade pode não ser possível voltarem-se para os seus filhos em busca de
ajuda. Do governo vêm ainda piores notícias: são discutidos cortes no sistema
de saúde, que tornarão o acesso de algum grupos aos cuidados de saúde não suportáveis.
Na segurança social, também parece estarmos numa onda de cortes”.
A que país nos
estaremos a referir? A semelhança é extraordinária com o que se ouve falar nas
ruas, transportes e na comunicação social em Portugal. Mas não é Portugal. São
os Estados Unidos da América nas palavras de Joseph Stiglitz, prémio Nobel da
economia e autor do livro The Price of Inequality publicado no final
do ano passado e onde nas páginas 265-266 se encontra escrito o que, em
tradução livre, aqui foi reproduzido.
Tal como é
apresentado no relatório da OCDE, já velho de um ano, Divided We Stand ou
se preferirmos, "Divididos Nos Mantemos", a crescente desigualdade é
um problema de muitos países, ou melhor, de quase todos os países da OCDE nas
últimas duas décadas - honrosa excepção feita ao Brasil.
Portugal não escapa
a essa tendência e, porventura, merecerá na Europa, dos 24 países sob olhar da
OCDE, o epíteto de “Terra da Desigualdade”.
A vida em Portugal
é tão desigual, entre quem tem mais rendimentos e quem menos possui, que os
nossos coeficientes de desigualdade do rendimento disponível nos colocam sempre
pior que o Reino Unido (o país mais desigual da Europa do Norte) e logo atrás
dos EUA (o país só destronado na desigualdade pela Turquia, México e Chile).
Mesmo quando pensamos na desigualdade de rendimentos oriundos do chamado
capitalismo popular, ou seja, da suposta “democratização” dos ganhos em bolsa,
também aí conseguimos ser tão maus quanto o Reino Unido e ainda piores do que
os EUA na concentração de riqueza nos mais ricos.
O que assistimos em
Portugal, e nos restantes países da OCDE para os quais há dados, são duas
décadas de aplicação da regra "Jesse James" (ou pelo menos como foi
retratado o famoso fora-da-lei na história do cowboy que dispara mais rápido
que a sua sombra, Lucky Luke). Isto é, “roubar muitos pobres equivale a roubar
um rico” ou, adaptando esse dizer da BD à nossa análise, para que a
concentração de riqueza nuns poucos continue a aumentar é necessário que muitos
percam o seu pouco dinheiro. Pois, como sabemos, a evolução do modelo de
mercado de capitais tem vindo cada vez mais a aproximar-se da lógica dos
casinos em que para alguns ganharem é necessário que muitos percam, num jogo de
quase soma nula.
No relatório da
OCDE Divided We Stand é apontada a razão do crescente aumento da
desigualdade nas sociedades estudadas, e também da portuguesa: a razão reside
na crescente desigualdade de salários. Os dados sugerem que a desigualdade
salarial entre cidadãos assenta no facto de o progresso tecnológico ter tido
impacto salarial maior nos trabalhadores com mais competências e escolaridade;
que as reformas laborais, introduzindo maior flexibilidade, criaram mais
empregos, mas substituíram empregos mais bem pagos por empregos mais mal pagos;
que o aumento de trabalho part-time e de contratos precários contribuiu também
para maior desigualdade salarial; que as novas famílias tendem a ser
constituídas por pessoas com o mesmo nível de rendimentos, em vez de
demonstrarem diversidade salarial, criando menor mobilidade social e de
rendimento; que os rendimentos oriundos de fora dos salários, nomeadamente os
obtidos nos mercados de capitais, aumentaram ainda mais desigualmente do que os
com origem em salários, concentrando-se ainda mais em menos pessoas; e que, por
último, a redistribuição de rendimento via actuação dos Estados tem sido
diminuída em muitos países pelos cortes de benefícios sociais, pelo apertar das
regras de acesso e pelas falhas na capacidade da administração de efectuar
transferências para quem mais delas necessita – embora em Portugal tais
práticas tenham sido temperadas nas duas últimas décadas até à crise de 2008,
pelos governos de diferentes cores, as mesmas foram depois aceleradas a partir
do acordo com a Troika.
Tal como o Portugal
de hoje, os Estados Unidos da América deixaram de ser a terra da oportunidade
para todos e passaram a ser a terra das oportunidades de uns poucos. Daí que a
população norte-americana se tenha manifestado (alguns) e apoiado (a grande
maioria) o grito de que nós somos os 99% espoliados pelo 1% dos mais ricos –
algo que seria inimaginável nesse país há duas décadas atrás. Como Robert Reich
mostra no seu documentário “Desigualdade para Todos”, premiado em Janeiro no
festival de Sundance, os desequilíbrios económicos estão agora a um nível
histórico sem precedentes. A desigualdade de rendimentos na América só no ano
de 1928 foi tão alta como em 2007 – isto é, os anos que antecederam os dois
grandes desastres económicos dos dois últimos séculos foram também os mais
desiguais de sempre.Em 1978 o trabalhador típico dos EUA ganhava em média
anualmente 48,302 dólares enquanto o 1% dos mais ricos ganhava, em média,
393,682 dólares ano. Saltemos para 2010. Há três anos atrás, o mesmo
trabalhador típico ganhava o equivalente a 33,751 dólares enquanto o 1% do topo
da pirâmide salarial atingia a casa do milhão de dólares – mais concretamente
1,101.089 dólares. Ou seja, quem menos ganhava perdeu cerca de 30% do salário
auferido na década de setenta, enquanto os detentores de salários mais elevados
mais do que duplicaram o seu salário. Como Reich explica, hoje os 400
americanos mais ricos têm mais riqueza do que 150 milhões de norte-americanos
juntos.
Mas o que tem a ver
connosco, os portugueses, o que se passa nos EUA e no resto da Europa? Eu diria
tudo, pois nós não nos limitamos a copiar estilos de vida, práticas de consumo
e formas de estudar. Também copiamos formas de organizar a nossa sociedade, o
nosso Estado e a forma como gerimos organizações. Para Portugal os Estados
Unidos da América, em primeiro lugar, e depois a União Europeia, constituem o
nosso benchmarking, ou se preferirmos, numa linguagem mais crua, são aqueles
que copiamos. E isso é hoje terrível para nós. Pois estamos entalados entre a
cópia de uma sociedade cada vez mais desigual, a americana, e sociedades
obcecadas pelos cortes e a submissão de tudo o resto ao “corte” orçamental, ou
seja, as sociedades da União Europeia, contribuindo assim ainda mais para
aumentar as desigualdades.
Na União Europeia,
quer na Comissão quer na maioria das práticas governativas nacionais, a grande
preocupação é a estabilidade do euro – mesmo para os que estão fora dele. Isso
faz com que, por exemplo, se considere que hoje as grandes ameaças à
estabilidade dos mercados sejam as generalizadas suspeitas de corrupção em
Espanha, que colocam em causa a credibilidade do actual primeiro ministro Rajoy
e da restante cúpula directiva do Partido Popular ou a incerteza eleitoral em
Itália quanto aos resultados das próximas eleições. Ou seja, estamos a chegar a
um ponto onde podemos imaginar que alguém (um funcionário da Comissão ou um
representante de um país da União) poderá afirmar em off, a outrém, que há um
preço a pagar pela estabilidade do euro e que esse preço será pago em
democracia! Pagar-se-á através do fazer de conta que não se liga às suspeitas
de corrupção em Espanha, na crença de que é preferível tolerar a corrupção do
que colocar em causa a estabilidade do euro, ou que se houver possibilidade de
manipulação eleitoral da opinião publica em Itália, tal será desculpável desde
que seja para o bem da estabilidade política no resultado de maiorias claras –
a bem da estabilidade do euro, é claro. O problema reside no facto de ser
precisamente o Estado a única entidade que pode reduzir as desigualdades mas
que hoje se auto-limita nesse papel ora com medo da hipotética reacção dos
mercados ora por ter adoptado genuinamente, sem ter a noção das suas
consequências, práticas de gestão indutoras de desigualdades.
Portugal vê-se hoje
colhido por este modo de pensar Europeu – por enquanto maioritário – ao mesmo
tempo que foi adoptando, ao longo de duas décadas, um modelo de gestão
importado das melhores escolas (pois foi oriundo das Business Schools dos EUA e
dos seus MBA), causador das piores práticas de gestão (com resultados à vista
na viabilidade de muitos dos nossos bancos e empresas) e produzindo a
financialização da nossa economia. Ou seja, uma forma de praticar a gestão que
implica a necessidade de apresentar sempre altas taxas de remuneração dos investidores
que detêm acções das companhias industriais e de serviços. Criando, assim, uma
“lógica” que contaminou a grande maioria das práticas de gestão portuguesas.
Essa contaminação passa pela necessidade de apresentar não apenas lucros, mas
também de optar por os não reinvestir nas empresas para poder pagar sempre
altos dividendos aos accionistas.
Noutra esfera de
decisão, essa contaminação da gestão leva a que se tenha sempre de actuar com o
intuito de baixar os custos do trabalho numa lógica anual, podendo para tal
tomar duas opções: despedir localmente ou deslocalizar a produção para outras
zonas de salários mais baixos – introduzindo a actual crise a legitimação de
uma terceira opção, a qual era antes tabu, a baixa de salários.
O que é singular
nesta descrição é que não se trata de decisões motivadas pela necessidade de
viabilidade económica das empresas, mas sim de decisões motivadas pela
necessidade de remunerar financeiramente os acionistas em percentagens, senão
de dois dígitos, pelo menos bastante acima do valor dos juros bancários. Este
triunfo de uma nova moda da gestão, a da Gestão Financeira da Produção,
tornou-se também num modelo para a prática política, naquilo que é hoje
designado por Democracia de Gestão – por oposição à tradicional Democracia
Política. A Democracia de Gestão é, no fim de contas, simplesmente a adopção
dos valores da prática da gestão financeira da produção à gestão dos bens
públicos e da democracia, algo retratado nas diferentes práticas governativas
nacionais na Europa e que levaram à aprovação de um orçamento europeu de cortes
– aumentando ainda mais as desigualdades europeias. O mais curioso é que, na
maioria dos casos, os próprios actores políticos não têm a consciência de
estarem a agir segundo esta lógica.
A análise realizada,
ao longo dos diferentes scrolls de ecrã que fez até aqui chegar, não
é uma declaração de ataque a quem mais ganha ou à diferenciação salarial ou
ainda ao empreendedorismo, pois só com diversidade e liberdade há criatividade
e inovação e se cria riqueza. Mas também sabemos que quando a desigualdade
atinge certos patamares cerceia a capacidade criativa, o empreendedorismo, a
democracia e a própria liberdade de negócio. Eu não quero viver num mundo
assim, nem creio que a maior parte dos que lerem este artigo o desejem, porque
já viveram em mundos melhores, ou porque já experimentaram mundos piores, ou
porque simplesmente acreditam na nossa capacidade individual de fazermos coisas
fantásticas em conjunto. Perceber que vivemos em “Portugal Terra da Desigualdade”
e quais as suas causas são apenas um princípio para darmos juntos o próximo
passo na sua resolução - pois mesmo na Europa há outros modelos menos desiguais
à espera de serem experimentados (e quem o sugere é o liberal The
Economist).
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