Rui Peralta, Luanda
Venezuela
VI - E se o
processo revolucionário bolivariano não for, afinal, um processo
revolucionário? Se for apenas um processo estrutural de reformas, que tomou a
forma de processo revolucionário para fazer face á desintegração que afectava a
sociedade venezuelana, em particular o Estado? Se for um projecto estrutural de
reformas que, para melhor superar os sintomas de degradação, junta em torno de
si as camadas mais desfavorecidas (e as mais afectadas) da desintegração que
afectava a sociedade venezuelana? E que melhor discurso a adoptar senão o
discurso bolivariano, o discurso nacionalista burgues de raiz, que esteve na
base da emancipação da região e na formação dos estados latino-americanos?
Se assim for não
estamos na presença de um processo revolucionário mas de um processo populista,
profundamente reformador (e reformulador), consequência de uma reacção aos
acentuados níveis de desintegração a que a sociedade venezuelana foi conduzida
pela oligarquia. A desintegração atingiu níveis elevados, afectando o
funcionamento do Estado, em particular as Forças Armadas. Taxas de desemprego
galopantes, inflacção descontrolada, profunda crise económica e social, a
oligarquia a salvaguardar os seus interesses no estrangeiro, a elite política
oligárquica com um comportamento idêntico ao das baratas quando ficam
estonteadas pelo efeito da desinfestação, a falência do Estado, a falência das
empresas públicas, mistas e privadas e a falência dos serviços públicos
básicos, eram manifestos no período anterior ao processo bolivariano.
Tanto o
proletariado, como as camadas intermediárias do corpo social (pequena e média
burguesia, quadros técnicos médios e superiores, etc.) foram os sujeitos mais
vulneráveis a esta situação, os mais atingidos e afectados. Mas o proletariado
não se encontrava em posição de dar uma resposta á situação. Não enquanto força
isolada, porque foi o mais afectado e atingido e porque não existia nenhuma
força política e social proletária que assumisse as reivindicações dessas
camadas. Os sindicatos sofreram o desgaste dos compromissos, as foças políticas
da esquerda, sofreram o processo de desintegração da sociedade, umas, ou foram
vítimas da sua miopia, outras.
A resposta veio do
interior do aparelho do Estado. Em particular dos sectores mais politizados e
instruídos das Forças Armadas e dos quadros médios e superiores da função
pública. Estes constituíam a única força capaz de travar o processo de
desintegração do Estado e da sociedade, não só pela sua capacidade organizativa,
mas porque o vazio criado pela oligarquia proporcionou uma situação favorável á
ocupação do aparelho pelos seus funcionários.
Mas por si só estas
camadas não poderiam efectuar o processo de revitalização institucional.
Necessitavam do apoio e da mobilização das amplas camadas populares,
principalmente das mais desfavorecidas, ou seja, necessitavam do apoio e da
mobilização do proletariado.
VII - Uma coisa é
necessitar de um apoio outra coisa é desencadear dinâmicas incontroláveis e
perder o controlo da situação. Como conseguir o apoio do proletariado e de
outras camadas sociais, sem perder o controlo do processo desencadeado?
Primeiro, através de um projecto elaborado em torno de um discurso
socializador. Segundo, assentar a base do discurso do projecto numa raiz
identitária que conduza á identificação dos sujeitos sociais com o projecto.
Eis os papéis do socialismo XXI (para o primeiro factor) e do retomar do
projecto nacionalista burgues de Bolivar (o segundo factor), sendo este um
projecto identitário no imaginário latino-americano e no seu processo histórico
emancipador.
Sobre o socialismo
XXI, ou o socialismo do seculo XXI, nada mais há a dizer. Ele é um espelho das
contradições inerentes ao processo. Sobre a raiz, Bolivar e o projecto
Bolivariano, apenas gostaria de acrescentar algumas palavras.
Algumas linhas
acima referi-o como um projecto nacionalista burguês. Sei que isto fere
susceptibilidades e que pode ser considerado um ultraje á memória histórica dos
revolucionários sul-americanos. Corro esse risco e assumo-o. Li alguns autores
marxistas revolucionários sul e centro-americanos que quando confrontados com
um texto de Marx sobre Bolivar, não esconderam o seu desagrado e reagiram de
uma forma desonesta para com o seu próprio mestre, acusando Marx de
eurocêntrico, ou de ser um desconhecedor dos processos de descolonização. Marx
pode ser acusado de muita coisa (que o diga Bakunine, por exemplo, ou os
socialistas de raiz libertária de várias matizes e os anarco-comunistas) mas
não de eurocêntrico, ou de desconhecer as questões relacionadas com a
colonização e respectivos processos de descolonização. Ele conhecia-os
profundamente e não vou agora perder tempo com este tema, mas bastaria os
intelectuais marxistas latino-americanos lerem com mais atenção a forma como o
seu mestre Marx abordava o tema das situações coloniais na Europa e a forma
como abordou o tema nos seus escritos referentes aos USA (uma vez que não
gostam da forma como Marx abordou a questão na América Latina, nesse
inteligente texto sobre Bolivar).
Rectifico no
entanto que o projecto de Bolivar não era, de facto, nacionalista burguês. Era
pan-nacionalista burguês. Não era nacionalista porque transportava a questão
nacional para todas as colónias espanholas da América do Sul, assumindo um
projecto que não era federativo nem confederativo, mas Pan-Nacional, ou seja, a
Pátria Grande, a Nação plurinacional, um produto de um somatório de produtos.
VIII - De uma coisa
tenho a certeza: o processo bolivariano em curso é um processo revolucionário, desde
o seu início até á fase actual. Porque mesmo que tenha sido iniciado como
projecto populista e reformista, foi como processo revolucionário que ele se
implementou e implementa e isso devido às tais dinâmicas incontroladas e
incontroláveis, desencadeadas por estes processos. É revolucionário e
profundamente anti-imperialista. É revolucionário e inovadoramente socialista,
por enquanto.
O aprofundar destes
elementos revolucionários (socialista e anti-imperialista) é o factor que
determinará a continuidade do processo revolucionário. Estes dois elementos
preponderantes evoluem de forma conjugada. O aprofundar da vertente socialista
implica o aprofundar da vertente anti-imperialista, e vice-versa.
Se o elemento
socialista não for aprofundado o processo assumir-se-á como projecto
reformista, de cariz populista, que não hesitará em utilizar a arma
anti-imperialista, mas em que o elemento socialista será colocado na gaveta,
mesmo que permaneça ao nível do discurso (até porque herdará o arsenal teórico
do socialismo do seculo XXI). Neste caso o processo desembocará,
inevitavelmente no capitalismo BRICS, o que atendendo á importância da economia
venezuelana a tornará, no médio prazo, numa candidata a acrescentar mais uma
inicial á sigla.
IX - Algumas das
conquistas alcançadas durante o processo bolivariano em curso são
demasiadamente importantes para poderem ser revertidas. Os seus beneficiários
não abrirão mão delas e criarão um elemento de desestabilização, contrário aos
objectivos das camadas não revolucionárias do processo. A nova burguesia
nacional vai necessitar de tempo e de estabilidade, dois factores essenciais
para o seu enraizamento. Quanto aos restantes sectores burgueses a aposta na
desestabilização só vai até ao ponto do embate politico. Nada de confrontações
com vastas camadas da população.
Para uns e para
outros o elemento de estabilidade é fundamental, porque com mais discurso
social ou com mais medidas liberais, qualquer um dos sectores não irá mexer com
algumas das conquistas alcançadas pelo processo bolivariano, enquanto a sua
liderança não estiver segura. Por outro lado o imperialismo norte-americano,
com os seus testa de ferro no país, não se encontra em condições de criar
situações de instabilidade de alta frequência no continente, preferindo as
medidas criadoras de insatisfação, pontuadas aqui e ali por factores de
instabilidade controlada, ou inserida, mas programada.
Ao nível interno e
externo a actual situação da fase de transição é pantanosa. O imperialismo, as
camadas da burguesia nacional oriundas da oligarquia e os aspirantes á nova
burguesia nacional apostam na manutenção desta situação pantanosa, que os
favorece no medio e longo prazo. A manutenção da situação apenas desfavorece a
continuidade dos elementos revolucionários do processo, em particular, do
elemento socialista e sem ele o processo assume-se como reformista.
Por fim uma outra
expectativa foi criada: a da saúde de Chávez, directamente relacionada com a
continuidade da sua liderança. E este factor é demonstrativo da fragilidade do
processo, porque assente num consenso das camadas populares em torno da figura
de Chávez, sem existirem forças alternativas á questão da liderança que
garantem a continuidade dos factores revolucionários do processo bolivariano.
Uma certeza porém
existe. Chávez sabe, o proletariado venezuelano sabe, as forças vivas do
processo revolucionário em curso sabem: A Luta Continua!
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