segunda-feira, 4 de março de 2013

A COSMOVISÃO DE BOLIVAR (4)




Rui Peralta, Luanda

Venezuela

VI - E se o processo revolucionário bolivariano não for, afinal, um processo revolucionário? Se for apenas um processo estrutural de reformas, que tomou a forma de processo revolucionário para fazer face á desintegração que afectava a sociedade venezuelana, em particular o Estado? Se for um projecto estrutural de reformas que, para melhor superar os sintomas de degradação, junta em torno de si as camadas mais desfavorecidas (e as mais afectadas) da desintegração que afectava a sociedade venezuelana? E que melhor discurso a adoptar senão o discurso bolivariano, o discurso nacionalista burgues de raiz, que esteve na base da emancipação da região e na formação dos estados latino-americanos?

Se assim for não estamos na presença de um processo revolucionário mas de um processo populista, profundamente reformador (e reformulador), consequência de uma reacção aos acentuados níveis de desintegração a que a sociedade venezuelana foi conduzida pela oligarquia. A desintegração atingiu níveis elevados, afectando o funcionamento do Estado, em particular as Forças Armadas. Taxas de desemprego galopantes, inflacção descontrolada, profunda crise económica e social, a oligarquia a salvaguardar os seus interesses no estrangeiro, a elite política oligárquica com um comportamento idêntico ao das baratas quando ficam estonteadas pelo efeito da desinfestação, a falência do Estado, a falência das empresas públicas, mistas e privadas e a falência dos serviços públicos básicos, eram manifestos no período anterior ao processo bolivariano.

Tanto o proletariado, como as camadas intermediárias do corpo social (pequena e média burguesia, quadros técnicos médios e superiores, etc.) foram os sujeitos mais vulneráveis a esta situação, os mais atingidos e afectados. Mas o proletariado não se encontrava em posição de dar uma resposta á situação. Não enquanto força isolada, porque foi o mais afectado e atingido e porque não existia nenhuma força política e social proletária que assumisse as reivindicações dessas camadas. Os sindicatos sofreram o desgaste dos compromissos, as foças políticas da esquerda, sofreram o processo de desintegração da sociedade, umas, ou foram vítimas da sua miopia, outras.

A resposta veio do interior do aparelho do Estado. Em particular dos sectores mais politizados e instruídos das Forças Armadas e dos quadros médios e superiores da função pública. Estes constituíam a única força capaz de travar o processo de desintegração do Estado e da sociedade, não só pela sua capacidade organizativa, mas porque o vazio criado pela oligarquia proporcionou uma situação favorável á ocupação do aparelho pelos seus funcionários.

Mas por si só estas camadas não poderiam efectuar o processo de revitalização institucional. Necessitavam do apoio e da mobilização das amplas camadas populares, principalmente das mais desfavorecidas, ou seja, necessitavam do apoio e da mobilização do proletariado.

VII - Uma coisa é necessitar de um apoio outra coisa é desencadear dinâmicas incontroláveis e perder o controlo da situação. Como conseguir o apoio do proletariado e de outras camadas sociais, sem perder o controlo do processo desencadeado? Primeiro, através de um projecto elaborado em torno de um discurso socializador. Segundo, assentar a base do discurso do projecto numa raiz identitária que conduza á identificação dos sujeitos sociais com o projecto. Eis os papéis do socialismo XXI (para o primeiro factor) e do retomar do projecto nacionalista burgues de Bolivar (o segundo factor), sendo este um projecto identitário no imaginário latino-americano e no seu processo histórico emancipador.

Sobre o socialismo XXI, ou o socialismo do seculo XXI, nada mais há a dizer. Ele é um espelho das contradições inerentes ao processo. Sobre a raiz, Bolivar e o projecto Bolivariano, apenas gostaria de acrescentar algumas palavras.

Algumas linhas acima referi-o como um projecto nacionalista burguês. Sei que isto fere susceptibilidades e que pode ser considerado um ultraje á memória histórica dos revolucionários sul-americanos. Corro esse risco e assumo-o. Li alguns autores marxistas revolucionários sul e centro-americanos que quando confrontados com um texto de Marx sobre Bolivar, não esconderam o seu desagrado e reagiram de uma forma desonesta para com o seu próprio mestre, acusando Marx de eurocêntrico, ou de ser um desconhecedor dos processos de descolonização. Marx pode ser acusado de muita coisa (que o diga Bakunine, por exemplo, ou os socialistas de raiz libertária de várias matizes e os anarco-comunistas) mas não de eurocêntrico, ou de desconhecer as questões relacionadas com a colonização e respectivos processos de descolonização. Ele conhecia-os profundamente e não vou agora perder tempo com este tema, mas bastaria os intelectuais marxistas latino-americanos lerem com mais atenção a forma como o seu mestre Marx abordava o tema das situações coloniais na Europa e a forma como abordou o tema nos seus escritos referentes aos USA (uma vez que não gostam da forma como Marx abordou a questão na América Latina, nesse inteligente texto sobre Bolivar).

Rectifico no entanto que o projecto de Bolivar não era, de facto, nacionalista burguês. Era pan-nacionalista burguês. Não era nacionalista porque transportava a questão nacional para todas as colónias espanholas da América do Sul, assumindo um projecto que não era federativo nem confederativo, mas Pan-Nacional, ou seja, a Pátria Grande, a Nação plurinacional, um produto de um somatório de produtos.

VIII - De uma coisa tenho a certeza: o processo bolivariano em curso é um processo revolucionário, desde o seu início até á fase actual. Porque mesmo que tenha sido iniciado como projecto populista e reformista, foi como processo revolucionário que ele se implementou e implementa e isso devido às tais dinâmicas incontroladas e incontroláveis, desencadeadas por estes processos. É revolucionário e profundamente anti-imperialista. É revolucionário e inovadoramente socialista, por enquanto.

O aprofundar destes elementos revolucionários (socialista e anti-imperialista) é o factor que determinará a continuidade do processo revolucionário. Estes dois elementos preponderantes evoluem de forma conjugada. O aprofundar da vertente socialista implica o aprofundar da vertente anti-imperialista, e vice-versa.

Se o elemento socialista não for aprofundado o processo assumir-se-á como projecto reformista, de cariz populista, que não hesitará em utilizar a arma anti-imperialista, mas em que o elemento socialista será colocado na gaveta, mesmo que permaneça ao nível do discurso (até porque herdará o arsenal teórico do socialismo do seculo XXI). Neste caso o processo desembocará, inevitavelmente no capitalismo BRICS, o que atendendo á importância da economia venezuelana a tornará, no médio prazo, numa candidata a acrescentar mais uma inicial á sigla.

IX - Algumas das conquistas alcançadas durante o processo bolivariano em curso são demasiadamente importantes para poderem ser revertidas. Os seus beneficiários não abrirão mão delas e criarão um elemento de desestabilização, contrário aos objectivos das camadas não revolucionárias do processo. A nova burguesia nacional vai necessitar de tempo e de estabilidade, dois factores essenciais para o seu enraizamento. Quanto aos restantes sectores burgueses a aposta na desestabilização só vai até ao ponto do embate politico. Nada de confrontações com vastas camadas da população.

Para uns e para outros o elemento de estabilidade é fundamental, porque com mais discurso social ou com mais medidas liberais, qualquer um dos sectores não irá mexer com algumas das conquistas alcançadas pelo processo bolivariano, enquanto a sua liderança não estiver segura. Por outro lado o imperialismo norte-americano, com os seus testa de ferro no país, não se encontra em condições de criar situações de instabilidade de alta frequência no continente, preferindo as medidas criadoras de insatisfação, pontuadas aqui e ali por factores de instabilidade controlada, ou inserida, mas programada.

Ao nível interno e externo a actual situação da fase de transição é pantanosa. O imperialismo, as camadas da burguesia nacional oriundas da oligarquia e os aspirantes á nova burguesia nacional apostam na manutenção desta situação pantanosa, que os favorece no medio e longo prazo. A manutenção da situação apenas desfavorece a continuidade dos elementos revolucionários do processo, em particular, do elemento socialista e sem ele o processo assume-se como reformista.

Por fim uma outra expectativa foi criada: a da saúde de Chávez, directamente relacionada com a continuidade da sua liderança. E este factor é demonstrativo da fragilidade do processo, porque assente num consenso das camadas populares em torno da figura de Chávez, sem existirem forças alternativas á questão da liderança que garantem a continuidade dos factores revolucionários do processo bolivariano.

Uma certeza porém existe. Chávez sabe, o proletariado venezuelano sabe, as forças vivas do processo revolucionário em curso sabem: A Luta Continua!


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