domingo, 24 de março de 2013

HERANÇAS E HERDEIROS




Martinho Júnior, Luanda

1 – Assinala-se hoje, dia 23 de Março de 2013, o 25º aniversário da batalha do Cuito Cuanavale, a maior batalha travada a sul do Equador em África, uma batalha que se estendeu praticamente a toda a Frente Sul de Angola, numa área superior a três superfícies de Portugal e se revelaria decisiva para desencadeamento de profundas alterações sócio-políticas na África Austral.

A batalha inscreve-se numa longa luta travada pelo povo angolano, primeiro pela sua independência contra o colonialismo português e a guerra de agressão de Henry Kissinger, depois contra o regime do “apartheid” na África do Sul, depois ainda contra as sequelas do colonialismo e do “apartheid”, quando Savimbi levou a cabo a “guerra dos diamantes de sangue”, encadeada com a “Iª Guerra Mundial Africana”…

2 – Alcançou-se a independência de Angola tal como ocorreu nas outras antigas colónias portuguesas, o colonialismo foi banido da África Austral conseguindo o campo progressista a independência da Namíbia e do Zimbabwe enquanto na África do Sul a democracia representativa sucedeu por fim ao renitente “apartheid” que só foi possível ter sobrevivido tantos anos com o beneplácito dos interesses ligados aos poderosos carteis da indústria mineira, como das potências ocidentais regedoras desses mesmos interesses.

As sequelas do colonialismo e do “apartheid” tiveram uma trajectória mais radical com a “guerra dos diamantes de sangue”, mas em cada uma das nações da África Austral as sequelas não se extinguiram e procuram, no quadro da globalização perspectivada pelo capitalismo neo liberal ao sabor do império, através de várias vias e processos, a continuidade de sua expressão, ou mesmo um revigoramento de velhos programas, métodos e objectivos…

Que heranças assumem aqueles que dão seguimento à luta de libertação em África, quando ainda muitos que estiveram presentes nos campos de batalha, dum lado e do outro das frentes, estão vivos?

Aqueles que se bateram (e batem) pelo movimento de libertação terão sabido traduzir em benefício dos povos, de todos os povos da África Austral, conforme às aspirações de então, os ganhos conseguidos com tanto sacrifício nos campos de batalha?

3 – Na África do Sul as elites herdeiras da saga de Cecil John Rhodes mantêm o seu enorme poder económico e financeiro revertido numa preponderância abissal nos domínios do saber científico e técnico e procurando não dar espaço à emergência de outros sectores da sociedade sul-africana, particularmente aqueles ligados a outras sensibilidades políticas, inclusive as afectas ao próprio ANC…

O vulcão sul africano, um tema já por mim abordado, mantém-se e necessário é incentivar-se o diálogo e a busca de consensos na África do Sul, respondendo muito mais e melhor aos anseios e expectativas das classes sociais mais deserdadas da sociedade sul africana…

Na Namíbia e no Botswana, os benefícios da independência redundaram particularmente a favor dum elitismo que gira à volta da indústria mineira fundada por Cecil John Rhodes e com aplicações tão diversas que levam até a captar em seu principal proveito as experiências relativas à natureza, aos Parques Naturais, à integração de comunidades nos seus próprios projectos, ao turismo de elevado padrão e qualidade que atrai outros membros das elites de todo o mundo ávidas por experimentar e deixar-se emocionar, ainda que por alguns dias, na cinegética singular de África…

No Zimbabwe o rescaldo da Conferência de Lancaster House provocou rupturas sócio-políticas que ainda não estão saradas, atirando o país para enormes dificuldades…

Um a um os países da África Austral “interiorizaram” heranças que se foram adaptando aos impactos do capitalismo neo liberal e ao diktat económico e financeiro do império, esbatendo-se as barricadas que estiveram face a face nos antigos campos de batalha…

4 – Em Angola, em especial depois do entendimento do Luena a 4 de Abril de 2002, as barricadas de guerra extinguiram-se, mas as sequelas do colonialismo e do “apartheid” são persistentes num quadro de neo liberalismo, até por que em muitos dos laboratórios do capitalismo de choque, a abertura das fronteiras às multinacionais só são possíveis ou com ditaduras fascistas, ou com democracias envenenadas pelas oligarquias clientes do império, ou com ideologias refractárias e quantas vezes ultra conservadoras nas intenções de ruptura étnica e cultural ao sabor dos grandes interesses!…

As sequelas repercutem-se hoje no campo sócio-político como nunca antes se experimentou em Angola desde 4 de Abril de 2002!

As elites que se propõem a tal em função dos factores mais conservadores intervenientes na sociedade angolana, esquecem ou renegam visceralmente o movimento de libertação, fazem por acabar com a história, se necessário obliterando a sua saga pessoal na história, fugindo à lógica com sentido de vida e assumem-se num quadro de desequilíbrio, de desagregação e de ingerência, recorrendo a provocações, subterfúgios, ambiguidades, manipulações, divisões, com o poder no horizonte de suas intenções!...

São capazes até de buscar argumentos típicos do século XIX, para tentar fazer prevalecer seus interesses, buscando todo o tipo de aliciamentos e alianças “contra natura” no interior como no exterior do espaço nacional que os viu nascer… como se fossem os mais abjectos mercenários!

…Um indelével cheiro a enxofre vai ficando no ar por que em África o diabo está forte e procura estender seu raio de acção!...

5 – As heranças do movimento de libertação são antes de mais a possibilidade de afirmação das nações cujas independências foram arrancadas a ferro e fogo, de armas na mão e por isso são heranças ávidas de paz, da possibilidade de democracia, de possibilidade de desenvolvimento, reconstrução e reconciliação, mas como é evidente ciosas de unidade em prol das causas comuns, ciosas das identidades nacionais que têm sido conseguidas à custa de tantos sacrifícios e procurando vencer tantos obstáculos.
A sociedade angolana reflecte as heranças e os cenários têm a animação dos respectivos herdeiros, num campo de manobra sócio-político que se pode radicalizar, mas hoje ainda, para muitos, apresenta contornos difusos, vagos, aparentemente sujeitos a mais ingredientes de força, a outras aspirações e expectativas que também têm “uma palavra a dizer”…

As heranças mobilizam campos de energia e os cenários são montados como se fossem espelhos do passado numa “nova” atmosfera e, mesmo que surgem ingredientes que antes não foram sentidos, a tentação de polarização parece ganhar pouco a pouco consistência por que corresponde a um padrão que está a ser agora alimentado em África por interesses sobretudo neo coloniais ligados às potências ocidentais, no seu afã de não perder hegemonia, nem espaço geo estratégico, nem riquezas naturais, nem oportunidade de rapina...

Para os velhos combatentes do movimento de libertação, ao relembrarem as aspirações e convicções forjadas na luta ao longo de sua intrépida trilha em pleno século XX, as heranças são claras e têm como objectivo resgatar os povos da África Austral do subdesenvolvimento e das sequelas coloniais e do “apartheid”, alargando os benefícios a todos, sem excepção.

É esse o caminho que honra o sacrifício de tantos heróis e mártires e dá uma outra garantia às gerações que preencherão o futuro!

Para tal as políticas de reconstrução e reconciliação são prioritárias, por que com a recuperação de infra-estruturas e estruturas será mais fácil realizar sustentabilidade alargada em matéria de desenvolvimento.

Esse desiderato é muitas vezes visto por parte das potências ocidentais, como contraditório às suas ementas sócio-políticas, económicas e financeiras, contraditório aos seus interesses e por isso no mínimo os factores de progresso são encarados com desconfiança e sujeitos à “vigilância dos deuses”...

Imaginam se Angola consegue garantir os níveis de paz e de democracia que obteve durante os últimos 10 anos, durante os próximos 25 anos?

5 – No momento em que se completaram 25 anos após a batalha do Cuito Cuanavale, os desafios são enormes por que muitos obstáculos vão-se ter de ultrapassar e sejamos claros: se Angola tem progredido penosamente, degrau a degrau, conforme os dados fornecidos pelos Relatórios Anuais dos Índices de Desenvolvimento Humano, é por que estes 10 anos de ausência de tiros foram mesmo assim insuficientes, é por que o trabalho realizado foi insuficiente, é por que os grandes desafios continuam a ser muito maiores que nossa capacidade, por muita inteligência, abnegação e trabalho que haja…

Isso significa que nossos esforços comuns face às aspirações, expectativas e esperanças que advêm do passado e transmitidos pelo movimento de libertação devem ser redobrados e mais inteligentes, a fim de tudo fazer para que Angola saia do quadro dos Índices de Desenvolvimento Humano Baixos.

As heranças do movimento de libertação implicam que os angolanos, de Cabinda ao Cunene e do mar ao leste, sejam capazes de cerrar fileiras para que os resgates que há que realizar ganhem consistência e por isso, aqueles que procuram a confusão semeando divergências, aqueles que possuem agendas tendentes à desagregação, abrindo-se às manipulações e às ingerências externas com vista a pôr em causa a independência, a soberania, a necessidade premente de unidade na acção em prol da coesão da identidade nacional, esses herdeiros que dão corpo às sequelas do colonialismo e do “apartheid”, devem procurar que suas energias sejam corrigidas em termos de orientação patriótica e ganhar capacidade integrando seus programas, vocações e objectivos efectivamente em proveito de todo o povo angolano e dos povos das regiões onde Angola se insere.

O reforço das organizações sociais com quadros, em especial das organizações sociais que se identificam com as aspirações dos trabalhadores e dos mais deserdados, é legítimo, é em muitos casos premente, é muito importante como um factor vocacionado à unidade de acção e respeitador de identidade nacional, mas será um esforço em vão se alguém procurar conduzir agendas desagregadoras, se for feito no sentido da divisão, do regionalismo, do tribalismo, ao serviço de grupos que até com a história e a antropologia cultural fazem manipulação!

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