Rui Peralta, Luanda
I - O presidente
francês François Hollande foi galardoado com o Prémio Félix Houphouet-Boigny
para a Busca da Paz. O presidente francês foi nomeado devido á sua contribuição
para a “paz e estabilidade em África” tendo o júri levado em conta a “a solidariedade
manifestada pela França aos povos africanos.”
Não é a nomeação ou
a figura do nomeado que me surpreende, atendendo á figura que deu nome ao
Prémio (Félix Houphouet-Boigny), até achei natural que o premio fosse a
demonstração da habitual bajulação com que os lambe-botas se referem aos
patrões, mas os motivos oficiais da nomeação: o papel de François Hollande na
paz e estabilidade no continente e a solidariedade manifestada pela França aos
povos africanos.
Pelos vistos os
mentores do prémio consideram que a acção da França no Mali, actualmente, é uma
missão de paz e que as violações, assassinatos, destruição do património e a
vaga de repressão que assolam o Mali é um factor de estabilidade. Estranha
forma de solidariedade e estranho conceito sobre paz, têm os mentores deste
prémio. É no mínimo estranho (para não dizer pior e limitarmos a linguagem) que
exista gente em África que considere as acções de rapina praticadas pela França
no continente, um gesto de solidariedade.
II - Procurei na lista dos premiados anteriores o
nome de Cuba e de Fidel. Se de facto fosse a solidariedade e a Busca pela Paz
os motivos da atribuição do Prémio, seriam dois nomes obrigatórios. Mas não. Na
lista dos premiados podemos encontrar os nomes de Mandela e De Klerk, de Isac
Rabin, Shimon Peres e Arafat, do rei Juan Carlos de Espanha (provavelmente
pelas demonstrações de solidariedade que ele anualmente executa quando vem
caçar nas reservas do continente, ou então porque mandou calar Chávez) e do
ex-presidente Lula. Nada de Fidel ou de Cuba. Estranho conceito de
solidariedade…
Mas de outra forma
não poderia ser. Comecemos por Félix Houphouet Boigny, a figura que o Prémio
homenageia. Já em 1950, Boigny demonstra a sua apetência, quando no quadro da
União Francesa (implantado por De Gaulle e governada pela direita francesa)
rompe com o Partido Comunista Francês - partido com o qual as organizações
africanas da União Francesa, mantinham estreitos acordos tácticos, para acção
parlamentar, inclusive a organização de Senghor, afecta á Secção Francesa da
Internacional operária (SFIO, tendência maioritária e histórica dos socialistas
franceses) - e assina um acordo secreto com o partido de François Mitterrand, a
União Democrática e Socialista da Resistência (UDSR), instalando uma profunda
divisão no seio das organizações que na altura lutavam pela independência das
colonias francesas.
A UDSR propunha um
acordo com a direita gaullista no sentido de reformar a União Francesa e
permitir que aos deputados eleitos pelos círculos africanos fossem agentes
responsáveis pelos processos de autonomia, fazendo tábua rasa das declarações
assinadas entre os deputados africanos (reunidos no Congresso de Bamaco, em
1946) e a esquerda francesa (PCF e SFIO). É claro que o acordo com o PCF e a
SFIO aprisionava os processos independentistas á politica interna francesa (só
com a vitoria eleitora da esquerda, os processos autonómicos que gerariam as
independências seguiriam livre curso), mas este acordo assinado por Boigny
colocava nas mãos de Mitterrand e dos seus acordos com os gaullistas, questões
tao simples como a mera discussão da legalidade da questão autonómica.
III - As ligações
de Boigny aos interesses franceses foram conduzidas por Mitterrand, o
presidente da USDR, que tornou-se seu mentor nos corredores políticos
franceses. Esta relação criou algumas clivagens com outros personagens
africanos do mesmo sector, como Senghor, que sentiram-se despromovidos pelos
patrões franceses, face á ligeireza de movimentações de Boigny.
É este percurso
sinuoso que Boigny trilha até á independência da Costa do Marfim, proclamada a
7 de Agosto de 1960. Passados que foram os primeiros momentos da independência
e a absorção de actividades que estas fases implicam, a voz de Boigny torna-se
a fazer ouvir nos fóruns internacionais em Dezembro de 1961, quando reclama da
urgência em realizar uma conferência geral africana, declaração que surpreende
tanto os partidários como os adversários e mesmo alguns dos dirigentes
africanos, que conheciam as opções micronacionalistas de Boigny.
A conferência não
se realiza no ano de 1962, conforme Boigny reclamava, mas em 1963, logo em
Janeiro, é descoberta uma conspiração na Costa do Marfim, prontamente abafada.
Aliás esse ano de 1963 foi fértil para a implementação no poder de Boigny, pois
em Setembro foi descoberta nova conspiração. Por cada nova conspiração Boigny
aumentava os seus poderes e implementava o seu domínio nas estruturas politicas
internas. Só no plano internacional é que ninguém lhe prestava atenção, a não
ser os franceses, claro, os seus colegas africanos (inclusive o seu velho amigo
e companheiro Senghor, agora o maître da África francófona e que contava com
todos os apoios da França) não lhe prestavam muita atenção. Para o comprovar
basta ver a forma como responderam ao apelo de Boigny, feito em Dezembro de
1962 sobre a urgência de uma conferência africana: A conferência foi realizada
em Adis Abeba em Maio de 1963 (a assinatura da carta da OUA).
Boigny constrói em
silêncio a sua teia de poder interno e só em finais de 1967 dá sinais de vida
para o exterior, iniciando uma digressão pelo continente africano, voltando,
depois, ao seu casulo marfinense. Os países vizinhos da Costa do Marfim passam
grande parte deste período dos anos sessenta, mergulhados numa profunda instabilidade
política, mas da Costa do Marfim não chegam ao exterior quaisquer notícias de
conturbações sociais.
Em Junho de 1970
Boigny vista o Eliseu, poucos dias depois de Vorster. Que esteve em Paris no
mesmo mês. Em Outubro do mesmo ano Boigny proclama, em Abidjan, num congresso
do seu partido, a política de diálogo com a África do Sul, politica que ele
expõe em público numa conferência de imprensa realizada em Novembro. Uma semana
depois desta conferência de imprensa Boigny está em Paris, para assistir ao
funeral do presidente francês De Gaulle. É filmado e fotografado (ele e o seu
amigo de sempre, Senghor) ao lado de Marcelo Caetano (Portugal) e de Muller
(África do Sul).
A 29 de Novembro
desse ano é reconfirmado no cargo, por um plebiscito curioso, denominado de
eleições automáticas (?). Em Fevereiro de 1971, recebe, em Abidjan, Pompidou.
Mas no mês seguinte a Universidade de Abidjan é encerrada devido a uma
prolongada greve estudantil. Curiosamente no mesmo dia em que a Universidade
foi encerrada (30 de Março de 1971), Vorster declara-se preparado para receber
os chefes de estado africanos em Pretória. Um mês depois Boigny declara a sua
disposição em visitar a África do Sul. Em finais de Outubro anuncia medidas de
austeridade na Costa de Marfim, enquanto centenas de sindicalistas e dirigentes
camponeses são detidos.
IV - Este breve
período (o que vem da década de setenta para a frente, não difere do passado)
acima abordado descreve o essencial da característica de Boigny: a colagem mais
absoluta aos interesses franceses. Absoluta e assumida. Repare-se nas
declarações de Boigny na Conferencia de Adis Abeba, a conferência de assinatura
da carta da OUA: “Todos estamos de acordo ao reconhecer que o desenvolvimento
de África só pode efectuar-se num clima de paz. Mas é também necessário que
África, depois de ter eliminado todos os elementos internos de discórdia, possa
manter-se afastada da competição a que se entregaram os dois blocos ideológicos
rivais e que estes não consigam transpor a sua rivalidade para este
continente.” (as declarações poderão ser lidas na integra em algum exemplar
histórico da Présence Africaine, de Maio de 1964. Este extracto foi retirado do
notável trabalho de Yves Benot, Ideológies des independences africaines,
Maspero, 1969).
Estas declarações
foram exatamente no mesmo ano em que um dos blocos está presente e em força no
continente, através de trinta e cinco mil soldados franceses (segundo o Le
Monde de 25 de Fevereiro de 1964), estacionados em 13 estados africanos. O
número de soldados franceses ultrapassava o número de efectivos dos exércitos
dos 13 estados africanos (cerca de vinte e nove mil homens) onde estavam
estacionados. Mas para Boigny o importante era combater a influência comunista
e afastar o Pacto de Varsóvia do continente africano, mesmo que para tal fosse
suportada a presença norte-americana através da França.
Na competição
ideológica em curso na época, Boigny já tinha feito a sua escolha e pretende
manter e ampliar o combate á influência do Bloco de Leste.
V - Não há, portanto,
melhor vencedor para este prémio, do que François Hollande. E mais. Deveriam
ser atribuídos Prémios Félix Houphouet-Boigny, a todos os presidentes
franceses, desde De Gaulle, a título póstumo. Isto para comprovar o autêntico
objectivo do Prémio: o de premiar as figuras que relevam a pax (não a Romana,
mas a dos Francos) podre que o capitalismo impõe ao continente africano.
Proponho ainda uma
segunda hipótese aos mentores do Prémio: Os estados africanos colocarem nas
suas insígnias oficiais e preâmbulos constitucionais o seguinte dístico: “Cada
um com o seu colono.” Talvez assim conseguíssemos destrinçar melhor os bosses e
os respectivos boys, para além dos nossos filhos e netos perceberem melhor o
que eram os sipaios e os mainates.
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