terça-feira, 5 de março de 2013

O PRÉMIO




Rui Peralta, Luanda

I - O presidente francês François Hollande foi galardoado com o Prémio Félix Houphouet-Boigny para a Busca da Paz. O presidente francês foi nomeado devido á sua contribuição para a “paz e estabilidade em África” tendo o júri levado em conta a “a solidariedade manifestada pela França aos povos africanos.”

Não é a nomeação ou a figura do nomeado que me surpreende, atendendo á figura que deu nome ao Prémio (Félix Houphouet-Boigny), até achei natural que o premio fosse a demonstração da habitual bajulação com que os lambe-botas se referem aos patrões, mas os motivos oficiais da nomeação: o papel de François Hollande na paz e estabilidade no continente e a solidariedade manifestada pela França aos povos africanos.

Pelos vistos os mentores do prémio consideram que a acção da França no Mali, actualmente, é uma missão de paz e que as violações, assassinatos, destruição do património e a vaga de repressão que assolam o Mali é um factor de estabilidade. Estranha forma de solidariedade e estranho conceito sobre paz, têm os mentores deste prémio. É no mínimo estranho (para não dizer pior e limitarmos a linguagem) que exista gente em África que considere as acções de rapina praticadas pela França no continente, um gesto de solidariedade.

II  - Procurei na lista dos premiados anteriores o nome de Cuba e de Fidel. Se de facto fosse a solidariedade e a Busca pela Paz os motivos da atribuição do Prémio, seriam dois nomes obrigatórios. Mas não. Na lista dos premiados podemos encontrar os nomes de Mandela e De Klerk, de Isac Rabin, Shimon Peres e Arafat, do rei Juan Carlos de Espanha (provavelmente pelas demonstrações de solidariedade que ele anualmente executa quando vem caçar nas reservas do continente, ou então porque mandou calar Chávez) e do ex-presidente Lula. Nada de Fidel ou de Cuba. Estranho conceito de solidariedade…

Mas de outra forma não poderia ser. Comecemos por Félix Houphouet Boigny, a figura que o Prémio homenageia. Já em 1950, Boigny demonstra a sua apetência, quando no quadro da União Francesa (implantado por De Gaulle e governada pela direita francesa) rompe com o Partido Comunista Francês - partido com o qual as organizações africanas da União Francesa, mantinham estreitos acordos tácticos, para acção parlamentar, inclusive a organização de Senghor, afecta á Secção Francesa da Internacional operária (SFIO, tendência maioritária e histórica dos socialistas franceses) - e assina um acordo secreto com o partido de François Mitterrand, a União Democrática e Socialista da Resistência (UDSR), instalando uma profunda divisão no seio das organizações que na altura lutavam pela independência das colonias francesas.

A UDSR propunha um acordo com a direita gaullista no sentido de reformar a União Francesa e permitir que aos deputados eleitos pelos círculos africanos fossem agentes responsáveis pelos processos de autonomia, fazendo tábua rasa das declarações assinadas entre os deputados africanos (reunidos no Congresso de Bamaco, em 1946) e a esquerda francesa (PCF e SFIO). É claro que o acordo com o PCF e a SFIO aprisionava os processos independentistas á politica interna francesa (só com a vitoria eleitora da esquerda, os processos autonómicos que gerariam as independências seguiriam livre curso), mas este acordo assinado por Boigny colocava nas mãos de Mitterrand e dos seus acordos com os gaullistas, questões tao simples como a mera discussão da legalidade da questão autonómica.

III - As ligações de Boigny aos interesses franceses foram conduzidas por Mitterrand, o presidente da USDR, que tornou-se seu mentor nos corredores políticos franceses. Esta relação criou algumas clivagens com outros personagens africanos do mesmo sector, como Senghor, que sentiram-se despromovidos pelos patrões franceses, face á ligeireza de movimentações de Boigny.

É este percurso sinuoso que Boigny trilha até á independência da Costa do Marfim, proclamada a 7 de Agosto de 1960. Passados que foram os primeiros momentos da independência e a absorção de actividades que estas fases implicam, a voz de Boigny torna-se a fazer ouvir nos fóruns internacionais em Dezembro de 1961, quando reclama da urgência em realizar uma conferência geral africana, declaração que surpreende tanto os partidários como os adversários e mesmo alguns dos dirigentes africanos, que conheciam as opções micronacionalistas de Boigny.

A conferência não se realiza no ano de 1962, conforme Boigny reclamava, mas em 1963, logo em Janeiro, é descoberta uma conspiração na Costa do Marfim, prontamente abafada. Aliás esse ano de 1963 foi fértil para a implementação no poder de Boigny, pois em Setembro foi descoberta nova conspiração. Por cada nova conspiração Boigny aumentava os seus poderes e implementava o seu domínio nas estruturas politicas internas. Só no plano internacional é que ninguém lhe prestava atenção, a não ser os franceses, claro, os seus colegas africanos (inclusive o seu velho amigo e companheiro Senghor, agora o maître da África francófona e que contava com todos os apoios da França) não lhe prestavam muita atenção. Para o comprovar basta ver a forma como responderam ao apelo de Boigny, feito em Dezembro de 1962 sobre a urgência de uma conferência africana: A conferência foi realizada em Adis Abeba em Maio de 1963 (a assinatura da carta da OUA).

Boigny constrói em silêncio a sua teia de poder interno e só em finais de 1967 dá sinais de vida para o exterior, iniciando uma digressão pelo continente africano, voltando, depois, ao seu casulo marfinense. Os países vizinhos da Costa do Marfim passam grande parte deste período dos anos sessenta, mergulhados numa profunda instabilidade política, mas da Costa do Marfim não chegam ao exterior quaisquer notícias de conturbações sociais.

Em Junho de 1970 Boigny vista o Eliseu, poucos dias depois de Vorster. Que esteve em Paris no mesmo mês. Em Outubro do mesmo ano Boigny proclama, em Abidjan, num congresso do seu partido, a política de diálogo com a África do Sul, politica que ele expõe em público numa conferência de imprensa realizada em Novembro. Uma semana depois desta conferência de imprensa Boigny está em Paris, para assistir ao funeral do presidente francês De Gaulle. É filmado e fotografado (ele e o seu amigo de sempre, Senghor) ao lado de Marcelo Caetano (Portugal) e de Muller (África do Sul).

A 29 de Novembro desse ano é reconfirmado no cargo, por um plebiscito curioso, denominado de eleições automáticas (?). Em Fevereiro de 1971, recebe, em Abidjan, Pompidou. Mas no mês seguinte a Universidade de Abidjan é encerrada devido a uma prolongada greve estudantil. Curiosamente no mesmo dia em que a Universidade foi encerrada (30 de Março de 1971), Vorster declara-se preparado para receber os chefes de estado africanos em Pretória. Um mês depois Boigny declara a sua disposição em visitar a África do Sul. Em finais de Outubro anuncia medidas de austeridade na Costa de Marfim, enquanto centenas de sindicalistas e dirigentes camponeses são detidos.

IV - Este breve período (o que vem da década de setenta para a frente, não difere do passado) acima abordado descreve o essencial da característica de Boigny: a colagem mais absoluta aos interesses franceses. Absoluta e assumida. Repare-se nas declarações de Boigny na Conferencia de Adis Abeba, a conferência de assinatura da carta da OUA: “Todos estamos de acordo ao reconhecer que o desenvolvimento de África só pode efectuar-se num clima de paz. Mas é também necessário que África, depois de ter eliminado todos os elementos internos de discórdia, possa manter-se afastada da competição a que se entregaram os dois blocos ideológicos rivais e que estes não consigam transpor a sua rivalidade para este continente.” (as declarações poderão ser lidas na integra em algum exemplar histórico da Présence Africaine, de Maio de 1964. Este extracto foi retirado do notável trabalho de Yves Benot, Ideológies des independences africaines, Maspero, 1969).

Estas declarações foram exatamente no mesmo ano em que um dos blocos está presente e em força no continente, através de trinta e cinco mil soldados franceses (segundo o Le Monde de 25 de Fevereiro de 1964), estacionados em 13 estados africanos. O número de soldados franceses ultrapassava o número de efectivos dos exércitos dos 13 estados africanos (cerca de vinte e nove mil homens) onde estavam estacionados. Mas para Boigny o importante era combater a influência comunista e afastar o Pacto de Varsóvia do continente africano, mesmo que para tal fosse suportada a presença norte-americana através da França.

Na competição ideológica em curso na época, Boigny já tinha feito a sua escolha e pretende manter e ampliar o combate á influência do Bloco de Leste.

V - Não há, portanto, melhor vencedor para este prémio, do que François Hollande. E mais. Deveriam ser atribuídos Prémios Félix Houphouet-Boigny, a todos os presidentes franceses, desde De Gaulle, a título póstumo. Isto para comprovar o autêntico objectivo do Prémio: o de premiar as figuras que relevam a pax (não a Romana, mas a dos Francos) podre que o capitalismo impõe ao continente africano.

Proponho ainda uma segunda hipótese aos mentores do Prémio: Os estados africanos colocarem nas suas insígnias oficiais e preâmbulos constitucionais o seguinte dístico: “Cada um com o seu colono.” Talvez assim conseguíssemos destrinçar melhor os bosses e os respectivos boys, para além dos nossos filhos e netos perceberem melhor o que eram os sipaios e os mainates.

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