É assim que os
atuais apologistas do mercado, em um sequestro ideológico sem precedentes,
explicam a crise de 2008: não foi o fracasso do livre mercado que a provocou,
mas sim a excessiva regulação estatal; o fato de que nossa economia de mercado
não foi um verdadeiro Estado de bem-estar social, mas esteve, em vez disso, nas
garras desse Estado. O artigo é de Slavoj Zizek.
Slavoj Zizek - Blog
da Boitempo – Carta Maior
A edição de natal da revista britânica The Spectator publicou um editorial
chamado “Por que 2012 foi o melhor ano de todos?” (disponível aqui, em inglês). O texto criticava a ideia de
que vivemos em “um mundo perigoso e cruel, em que as coisas estão ruins e ainda
pioram”. Eis o parágrafo de abertura: “Talvez não pareça, mas 2012 foi o ano
mais formidável na história mundial. Essa afirmação soa algo extravagante, mas
pode ser corroborada pelos fatos. Nunca houve menos fome, menos doenças ou mais
prosperidade. O ocidente permanece em um marasmo econômico, mas a maioria dos
países em desenvolvimento está progredindo e as pessoas estão saindo da pobreza
a uma velocidade jamais registrada. Felizmente o número de mortos pela guerra
ou por doenças naturais também está baixo. Estamos vivendo na idade do ouro.”
Essa mesma ideia tem sido fomentada de modo sistemático em uma série de
bestsellers, que vai de Rational Optimist, de Matt Ridley, a Better
Angels of Our Nature, de Steven Pinker. Também há uma versão mais prática que
se costuma ouvir na mídia, principalmente nos países fora da Europa: crise, que
crise? Vejamos os chamados países do BRIC – Brasil, Rússia, Índia e China –, ou
países como Polônia, Coreia do Sul, Singapura, Peru, até mesmo vários Estados
da África subsaariana: todos estão progredindo. Os perdedores são a Europa
Ocidental e, até certo ponto, os Estados Unidos – então não estamos lidando com
uma crise global, mas simplesmente com a mudança do progresso, que se afasta do
Ocidente. Um símbolo poderoso dessa mudança não seria o fato de que,
recentemente, muita gente de Portugal, país em crise profunda, está voltando
para Moçambique e Angola, ex-colônias de Portugal, mas dessa vez como
imigrantes econômicos, e não como colonizadores?
Até mesmo com respeito aos direitos humanos: a situação na China e na Rússia
não é melhor agora do que há 50 anos? Descrever a crise existente como um
fenômeno global, como dizem, é uma típica visão eurocentrista advinda dos esquerdistas
que geralmente se orgulham de seu antieurocentrismo. Nossa “crise global”, na
verdade, é um mero abalo local em uma história mais ampla do progresso geral.
Mas é preciso conter nossa alegria. A pergunta que deve ser feita é: se a
Europa, sozinha, está em declínio gradual, o que está substituindo sua
hegemonia? A resposta é: “o capitalismo de valores asiáticos” – o que,
obviamente, não tem nada a ver com o povo asiático e tudo a ver com a tendência
nítida e atual do capitalismo contemporâneo em limitar ou até mesmo suspender a
democracia.
Essa tendência não contradiz de modo nenhum o tão celebrado progresso da
humanidade – ela é sua característica imanente. Todos os pensadores radicais,
de Marx aos conservadores inteligentes, eram obcecados por esta questão: qual é
o preço do progresso? Marx era fascinado pelo capitalismo, pela produtividade
sem precedentes que ele desencadeava; mas Marx também frisava que esse sucesso
engendra antagonismos. Devemos fazer o mesmo hoje: ter em vista a face obscura do
capitalismo global que fomenta revoltas.
As pessoas se rebelam não quando as coisas estão realmente ruins, mas quando
suas expectativas são frustradas. A Revolução Francesa ocorreu apenas quando o
rei e os nobres começaram a perder o poder; a revolta anticomunista de 1956 na
Hungria eclodiu depois que Imre Nagy já era primeiro-ministro há dois anos,
depois de debates (relativamente) livres entre os intelectuais; as pessoas se
rebelaram no Egito em 2011 porque houve certo progresso econômico sob o governo
de Mubarak, dando origem a uma classe de jovens instruídos que participavam da
cultura digital universal. E é por isso que o pânico dos comunistas chineses
faz sentido: porque, no geral, as pessoas hoje estão vivendo melhor do que há
quarenta anos – os antagonismos sociais (entre os novos ricos e o resto)
explodem e as expectativas são muito mais elevadas.
Eis o problema com o desenvolvimento e o progresso: são sempre desiguais, dão
origem a novas instabilidades e antagonismos, geram novas expectativas que não
podem ser correspondidas. No Egito, pouco antes da Primavera Árabe, a maioria
vivia um pouco melhor do que antes, mas os padrões pelos quais mediam sua
(in)satisfação eram muito mais altos.
Para não perder o elo entre progresso e instabilidade, é preciso realçar sempre
como aquilo que, à primeira vista, parece ser a realização incompleta de um
projeto social na verdade sinaliza sua limitação imanente. Existe uma história
(apócrifa, talvez) sobre o economista keynesiano de esquerda John Galbraith: antes de uma viagem à URSS no final da
década de 1950, ele escreveu para seu amigo anticomunista Sidney Hook: “Não se
preocupe, não me deixarei seduzir pelos soviéticos e voltarei para casa dizendo
que eles têm socialismo!”. Hook respondeu imediatamente: “Mas é isso que me
preocupa – que você volte dizendo que a URSS não é socialista!”. O que Hook
temia era a defesa ingênua da pureza do conceito: se as coisas derem errado com
a construção de uma sociedade socialista, isso não invalida a ideia em si, mas
significa apenas que não a executamos apropriadamente. Essa mesma ingenuidade
não é detectada nos fundamentalistas de mercado da atualidade?
Durante um recente debate televisivo na França, quando o filósofo e economista
francês Guy Sorman afirmou que a democracia e o capitalismo necessariamente
andam juntos, não pude me negar fazer esta óbvia pergunta: “Mas e a China?”, ao
que ele me repreendeu: “Na China não há capitalismo!” Para o pós-capitalista
fanático Sorman, um país não é verdadeiramente capitalista se não for
democrático, exatamente da mesma maneira que, para os comunistas democráticos,
o stalinismo simplesmente não era uma forma autêntica de comunismo.
É assim que os atuais apologistas do mercado, em um sequestro ideológico sem
precedentes, explicam a crise de 2008: não foi o fracasso do livre mercado que
a provocou, mas sim a excessiva regulação estatal; o fato de que nossa economia
de mercado não foi um verdadeiro Estado de bem-estar social, mas esteve, em vez
disso, nas garras desse Estado. Quando rejeitamos as falhas do capitalismo de
mercado como infortúnios acidentais, acabamos em um “progress(ism)o” que encara
a solução como um uso mais “autêntico” e puro de uma noção, tentando assim
apagar o fogo com gasolina.
Tradução: Roberto Bettoni
(*) Artigo
públicado originalmente no Blog da Boitempo
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