Para Washington
Novaes indignação não basta. Reinventar política exige conhecimento,
alternativas e relações sofisticadas de autoridade, como… as dos índios!
Entrevista a Inês
Castilho, editora da série Outra Política – Outras Palavras
As sociedades indígenas
podem ser exemplos inspiradores para nós, caras pálidas. Estamos condicionados
a observar apenas suas carências. Não enxergamos outro aspecto, que poderia nos
inspirar: “São sociedades sofisticadas”. Cultivam as relações horizontais, a
liberdade de não receber ordem de ninguém; o acesso livre à informação;
respeito e liberdade nas relações entre homem e mulher. Quem convida a esta
nova mirada é o jornalista Washington
Novaes, voltado há mais de 50 anos ao exame de assuntos ligados a ambiente,
desenvolvimento e democracia. Autor do documentário “Xingu, a terra ameaçada”,
reconhecido por inúmeros prêmios nacionais e internacionais, autor de treze
livros, Novaes foi entrevistado no âmbito do estudo Política Cidadã,
produzido pelo instituto Ideafix para o IDS (Instituto Democracia e
Sustentabilidade).
Décadas de convívio
com grupos indígenas levaram-no, por exemplo, a observar que, entre eles,
ninguém se apropria da informação para transformá-la em poder político ou
econômico. E a sugerir que talvez a era da internet, e o fim da comunicação de
massas, tenham recriado condições para isso entre nós – desde que alcançadas
certas condições políticas. “Para ser democrática, a informação tem que
pertencer à sociedade. Mas não há legislação que proteja isso.”
Outra lição a
aprender com os índios é o modo como evitam a sobrecarga dos recursos
ambientais, ao dividir a aldeia cada vez que a população se torna excessiva.
“Não construir megaconcentrações humanas é de uma enorme sabedoria”. Nós, ao
contrário, elegemos o padrão das metrópoles como modelo de cidade, com ruas
entupidas de prédios e carros. “O sujeito faz cinco torres de 40 pavimentos, e
isso vai provocar um impacto enorme no trânsito, nas necessidades de água e
esgoto, no lixo, na energia.“. Para ele, é possível construir vidas mais
autônomas, mais livres, mais seguras. Mas para isso é preciso ir além da
retórica da indignação. “Parte da sociedade vive nessa inação porque sonega
impostos, suborna guarda, fura fila, não respeita a lei.”
Superar a condição
de indivíduos alienados: essa é a difícil missão que nós e nossas próximas
gerações temos de encarar, segundo Novaes. “Cada cidadão precisa pensar nos
impactos que produz e em como reduzi-los. Isso vai implicar mudanças nos
modelos de construção, nos modelos de energia. Porque, da forma que está,
estamos caminhando para impasses gigantescos”, alerta o jornalista. Ele lembra
que, em 1997, quando foi aprovado o protocolo de Kyoto, estabeleceu-se que em
15 anos, até 2012, os países industrializados reduziriam suas emissões de gases
poluentes em 5,10%. “Pois ao invés de diminuírem 5,2%, as emissões aumentaram
45%. Estamos consumindo recursos mais de 30% além da capacidade de reposição do
planeta. Isso é insustentável.”
Washington
considera que só indo além das fronteiras do Estado-Nação, e definindo
princípios de governança global democrática a humanidade poderá sair do
atoleiro em que está mergulhada. “Como é que vamos continuar dessa forma, em
que os países industrializados, com menos de 20% da população, consomem 80% dos
recursos e têm quase 80% da renda do mundo? Não se trata de ter um governo
mundial, mas de ter princípios universais”. A seguir, a entrevista.
Qual é a sua
percepção sobre a participação política do brasileiro?
Penso que a
sociedade brasileira está em um momento crítico, porque vive indignada com a
incompetência administrativa, o descaso, a corrupção, mas em geral se limita ao
que eu chamo de retórica da indignação. Fica indignada, mas incapaz de
movimentos que possam mudar o quadro.
Parte da sociedade
vive nessa inação porque são muitos os cidadãos que sonegam impostos, subornam
guarda, furam fila, não respeitam a lei. É preciso mudar isso. E também
aprender a organizar-se em grupos para discutir os assuntos que incomodam, e
chamar para ajudar na discussão o ministério público, a universidade etc. Para
a partir daí criar objetivos concretos e levar ao campo da política – ou tudo
vai continuar como hoje. Seria muito importante também para a universidade, que
foi muito perseguida durante a ditadura militar e se fechou para os problemas
da sociedade.
O problema é
complexo e grave. Estava relendo os relatórios do PNUD (Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento) do começo da década de 1990, e eles dizem uma
coisa em que é preciso pensar: no mundo moderno, o Estado se tornou pequeno
demais para enfrentar os grandes problemas do mundo, e ao mesmo tempo grande
demais, incapaz de se aproximar dos problemas do cidadão comum. O Estado ficou
imobilizado pelos dois lados, e a sociedade precisa aprender a romper com isso.
É preciso ter macropolíticas capazes de responder aos grandes problemas da
sociedade, mas também uma descentralização que leve o poder a se aproximar do
cotidiano do cidadão.
Principalmente
nesse mundo de hoje, em que a metrópole está se tornando um padrão. São Paulo,
por exemplo, é um padrão de metrópole que foi se estendendo pelo interior, ao
longo do eixo que passa por Jundiaí, Campinas, Ribeirão Preto, Uberaba,
Uberlândia, até o Centro-Oeste, em Goiânia. E mesmo em lugares mais distantes,
como Manaus, Belém e Boa Vista, vai-se encontrar essa mesma coisa. Em uma
daquelas grandes avenidas de Manaus não vai se ver floresta, característica da
Amazônia – só se veem prédios, só torres. Em Belém, a mesma coisa. Em Porto
Velho o trânsito é um inferno. É preciso repensar isso, não manter esse modelo
de transportes. Ou vamos continuar despejando centenas de milhares de carros
por mês em lugares onde já não há mais como se mover? Centenas de milhares de
motocicletas?
Quais os temas
capazes de mobilizar a sociedade brasileira hoje, a seu ver?
A questão do
transporte, certamente, é um deles. A segurança pública é outro tema. Penso
também que o financiamento de campanhas, se houver uma discussão bem conduzida,
pode ser muito eficaz. Porque hoje a influência de quem financia as campanhas
se tornou muito grande. Os financiamentos vêm principalmente das grandes
construtoras, das grandes empresas de coleta de lixo. E isso acaba determinando
rumos para a política. É preciso que se discuta: não seria o caso de
caminharmos para o financiamento público das campanhas? Os críticos desse
modelo dizem que o financiamento pode ser público e, por trás do pano,
continuar tendo financiamento privado. Não sei, é preciso discutir isso. Será
que o caminho é o modelo do representante distrital, para aproximar a discussão
das comunidades? O financiamento das campanhas precisa ser discutido porque, do
jeito que está, eu às vezes penso, ironicamente, que talvez o modelo mais
democrático tenha sido o da ditadura militar, em que só se podia botar na
televisão o retrato 3×4 e três linhas de biografia. Aí se igualavam as
possibilidades.
Acho também que,
nessa questão das macropolíticas, é preciso discutir como é que se vai
fazer, porque tudo o que o ser humano faz tem um impacto sobre o meio físico.
No grande meio urbano esses impactos são grandes, e não são compensados por
quem os provoca. Por exemplo, o sujeito faz cinco torres de 40 pavimentos, e
isso vai provocar um impacto enorme no trânsito, nas necessidades de água e
esgoto, no lixo e na energia. E quem é que paga por isso? Vivem abrindo
exceções para deixar construir além do gabarito, de modo a não cobrar os
impactos. Isso precisa mudar, a sociedade precisa discutir isso.
Trata-se de
repensar nosso modo de vida em vários aspectos, não é?
Cada cidadão
precisa pensar nos impactos que produz e em como reduzi-los. Isso vai implicar
mudanças nos modelos de construção, nos modelos de energia. Porque, da forma
que está, estamos caminhando para impasses gigantescos. Esses dias saiu uma
notícia assim: em 97, quando foi aprovado o protocolo de Kyoto, se estabeleceu
que os países industrializados reduziriam as suas emissões de gases poluentes
em 5,10% até 2012. O balanço diz que essas emissões aumentaram 45%, e não
diminuíram 5,2%. Os relatórios do programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente mostram que estamos consumindo recursos mais de 30% além da capacidade
de reposição do planeta. Isso é insustentável.
Tudo continua sendo
regido pelas lógicas financeiras – sejam os países, sejam as empresas, até as
próprias pessoas. Mas estamos caminhando para problemas graves. Primeiro,
porque a situação do mundo está muito difícil. Já temos um bilhão de pessoas
passando fome, e a chamada crise da água ameaça dois terços da humanidade. O
Kofi Annan, que foi secretário-geral da ONU durante uma década – um homem
experiente, informado – tem repetido e repetido o seguinte: hoje, os problemas
centrais do nosso tempo não estão no terrorismo, mas nas mudanças climáticas e no
consumo de recursos além da capacidade de reposição do planeta – Eles são uma
ameaça à sobrevivência da espécie humana. Ainda mais lembrando que tudo isso
vai ser agravado, porque a previsão dos demógrafos da ONU é de mais três
bilhões de pessoas no mundo. Agora em novembro [de 2011] chegamos a sete, não
é?
E há um ângulo que
praticamente não se discute, que é o direito da sociedade à informação. Não
estou falando em censura, ausência de liberdade de pensamento – não é isso.
Estou falando o seguinte: hoje se sabe que quem tem mais informação tem mais
poder. Mas não há nenhuma legislação que diga a quem pertence essa informação –
porque, para ser democrática, ela tem que pertencer à sociedade. Se quem tem
mais informação tem mais poder, a informação tem que ser democrática para que o
mundo seja democrático, não é? Mas não há legislação que proteja isso.
Uma forma de
regulação da mídia?
A meu ver, seria
preciso escrever na Constituição que a informação é um direito, um bem da
sociedade. É preciso legislar para regulamentar e proteger este direito. Não há
nada, hoje, que diga aos meios de comunicação como devem proceder. Quer dizer,
o meio de comunicação publica ou bota no ar o que ele quer. O critério é dele.
Nisso aí está implícito o direito de omitir informação. É preciso reconhecer
que há um direito da sociedade à informação, definir como isso vai ser colocado
na Constituição e qual é a legislação que vai proteger esse direito.
Isso me faz lembrar
as sociedades indígenas, nas quais a informação circula livremente. Haverá
outras lições para nós, nessas sociedades?
A nossa visão de
brancos, vamos chamar assim, sobre as sociedades indígenas, é muito peculiar,
porque olha o índio não pelo que ele tem, mas pelo que ele não tem. Vê que o
índio anda nu, que não tem isso, não tem aquilo. E não enxerga que as
sociedades indígenas talvez estejam apontando em direção à utopia humana.
Uma delas é que, no
seu formato tradicional, não há nas sociedades indígenas delegação de poder. O
chefe não tem poder para dar ordem. Numa sociedade que se mantém viva, se um
índio der ordem para outro, o outro vai achar aquilo engraçado, alguém dar
ordem para ele. O chefe é o que mais sabe da cultura, o que mais sabe da
divisão do trabalho, é o grande mediador de conflitos, tem de falar melhor. É o
que mais sofre, também. Mas não dá ordem a ninguém. Nós, brancos, não
enxergamos que luxo é viver, nascer e morrer numa sociedade sem nunca receber
ordem de ninguém.
Da mesma forma,
também nos esquecemos de que, quando uma sociedade indígena está na força da
sua cultura, um índio é autossuficiente, não depende de ninguém para nada. Ele
sabe fazer sua casa, sabe fazer sua lavoura, sabe fazer sua canoa, sabe fazer
seus instrumentos de trabalho, a sua rede, os seus objetos de adorno, sabe
identificar na natureza espécies que sejam úteis. Quer dizer, ele não recebe
ordem de ninguém e não depende de ninguém para nada, a vida inteira.
E a informação é
aberta – o que um sabe, todos podem saber. Ninguém se apropria da informação
para transformá-la em poder político ou econômico. Além de aquelas sociedades
darem muita atenção ao seu entorno: nos lugares que conheço, quando uma aldeia
chega a 300, 400 pessoas, ela costuma se dividir, exatamente para que não haja
uma sobrecarga dos recursos ambientais dos quais a aldeia depende. Isso também
é de uma enorme sabedoria, não construir megaconcentrações humanas.
E quanto ao
relacionamento entre os gêneros?
Sobre a relação
entre homem e mulher, eu sempre cito um aspecto para o qual o Orlando Villas
Boas me chamou a atenção: em geral são sociedades em que a união entre homem e
mulher é absolutamente livre. Casa e descasa quando quer, ninguém tem nada a
dizer, não há nenhuma sanção social. Digamos que o homem não esteja satisfeito
com a mulher, porque ela não está trazendo água limpa para casa, e isso é uma
tarefa da mulher. Se ele quiser, pode simplesmente dizer “não tenho água,
vou-me embora” – e ir embora. Mas, se ele quiser continuar com a mulher, não
vai sequer dizer a ela que não está satisfeito, porque isso pressupõe que ele
tem direito a que ela traga água para casa e pode reclamar se ela não trouxer –
e ele não tem esse direito, ela traz se quiser. Está nas divisões de trabalho:
é uma tarefa da mulher trazer água limpa para casa. Mas, se ela não quiser, não
traz – e o homem não pode se queixar.
O que ele pode
fazer é procurar o chefe, os mais velhos, e dizer: “olha, minha mulher não está
trazendo água limpa para casa”, e eles provavelmente vão reunir os homens e as
mulheres e explicar como é a divisão de trabalho na etnia deles, porque tais
tarefas cabem aos homens e tais tarefas cabem às mulheres, e entre essas
tarefas está trazer a água limpa para casa. Se a mulher quiser botar a
carapuça, ela bota; se não quiser, também não bota. Mas não há sequer o direito
de queixa.
É muito
sofisticado, isso. São utopias em direção às quais a nossa sociedade precisa
olhar, principalmente na crise em que estamos mergulhados. Temos que mudar os
nossos modos de viver, eles são insustentáveis, incompatíveis com as
possibilidades do planeta. Temos que encontrar outros caminhos.
A liberdade sempre
foi uma bandeira de luta. Ainda é, hoje?
A gente falou das
sociedades indígenas onde isso, digamos assim, chega ao extremo possível. No
extremo possível da liberdade. Já os nossos modos de viver restringem cada vez
mais a nossa liberdade. Estamos dependentes de uma porção de coisas fora de
nós. Precisamos repensar nossos modos de viver para ter vidas mais autônomas,
mais livres, mais seguras.
Sou de uma pequena
cidade do interior de São Paulo, Vargem Grande do Sul. Com cinco ou seis anos
de idade, eu andava sozinho pela cidade inteira e isso não implicava nenhum
risco. Era uma cidade pequena, não tinha trânsito, todas as pessoas me
conheciam. Meu pai era professor primário e minha mãe, costureira. E no entanto
tínhamos um nível de vida que, para que eu pudesse proporcionar isso hoje, para
meus filhos e netos, precisaria ser muito rico. Por exemplo, alimentação: um
verdureiro trazia verduras na porta de casa, orgânicas, da mais alta qualidade;
um leiteiro trazia o leite; e o pão era comprado ali na esquina. Ninguém tinha
geladeira, então se comprava de manhã a carne abatida na madrugada e depois
outra, abatida na parte da tarde, para ter sempre carne fresca. Era um alto
nível de sofisticação alimentar. Nossa vida foi ficando cada vez mais complexa
e difícil.
Considerando que
não é possível voltar ao passado, como você enxerga as novas gerações vivendo
nesse planeta?
Penso que as novas
gerações estão muito envolvidas nesta sociedade complexa e tecnológica porque
nunca conheceram outras possibilidades. O jovem hoje passa metade do dia na
frente de uma tela de computador, até porque não tem outra possibilidade. Outra
possibilidade implicaria o quê? Insegurança, sair de casa, riscos com o
trânsito, com assaltos, perder tempo no transporte. Então, ele fica preso
nisso.
Você pensa que a
tecnologia, as redes sociais têm um papel nos processos de mobilização
política?
A tecnologia tem
muitos papeis e muitos caminhos, bons e ruins. A tecnologia implica um consumo
de recursos naturais e de energia elétrica muito grande, implica caminhos que
também precisam ser revistos. Exige um uso de minérios que está em crise,
inclusive o de minérios mais raros, que têm grande aplicação na área
tecnológica, computadores, celulares – há um impacto sobre isso, também.
Pensando no que
falou até aqui, você imagina novas formas de fazer política?
A mesma coisa que a
sociedade precisa fazer, tem que fazer também quem quer fazer política: chamar
a sociedade para discutir. Ouvir a sociedade, ouvir as pessoas, ouvir o
conhecimento, ser capaz de formular projetos e, depois, batalhar por eles. Não
pode, repito, continuar nesta mera retórica da indignação.
Você imagina uma
governança global no futuro?
Não sei se haverá
uma governança global. Penso que, se a humanidade conseguir encontrar um rumo
para sair deste imenso atoleiro no qual está mergulhada, vai ter que definir
regras para todos os países. Porque veja, por exemplo, o impasse em que está a
Convenção do Clima: os países emergentes e os países pobres dizem: quem tem de
reduzir as emissões são os países industrializados, que emitem há muito mais
tempo e em maior quantidade. Aí os países industrializados dizem: mas se os
emergentes e os outros não aderirem não vai adiantar, porque hoje os emergentes
e os pobres juntos já emitem mais do que os industrializados.
Como é que vamos
continuar dessa forma, em que os países industrializados, com menos de 20% da
população, consomem 80% dos recursos e têm quase 80% da renda do mundo? Como
vamos fazer com isso aí? Vai continuar? Um habitante de um país industrializado
consome 15 vezes mais energia que um habitante de um país pobre. Então, sobre
regras de governança: não se trata de ter um governo mundial, mas de ter
princípios universais.
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