Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Afinal o 15 de
Setembro não foi um episódio. Afinal, não se resumia tudo à Taxa Social Única,
a que se seguiu o massacre fiscal. Afinal, uma parte muito expressiva de
portugueses não está à espera dos humores do CDS, que o Presidente da República
acorde do seu sono profundo ou que a chamada oposição interna do PSD ache que
chegou a sua hora. Afinal, as pessoas foram para a rua no meio de uma avaliação
da troika mostrar que não são o "povo bom" que um dos seus burocratas
acreditava aqui viver.
Não foram manifestações
antipolíticos, apesar da evidente antipatia que toda a classe política parece
hoje merecer. Foram manifestações mais tristes e desalentadas do que as de
Setembro. Mas não foram, ainda, manifestações desesperadas. Foram
manifestações com conteúdo político e, em toda a sua simbologia, enquadradas
por sentimentos democráticos. E isso é, tendo em conta a situação social que
vivemos e o bloqueio institucional que presenciamos, extraordinário. Talvez
apenas explicável pelo facto da nossa democracia ser relativamente jovem.
Disse
"ainda" porque, se a oposição não conseguir dar a esta revolta
uma resposta, construindo uma alternativa credível - e não apenas preparando a
alternância ou tentando capitalizar apoio para os próximas eleições -, o
próximo momento pode ser bem diferente. Acredito que se no próximo ano
surgisse qualquer coisa no espectro eleitoral capaz de entusiasmar ou prender a
atenção das pessoas teria um resultado surpreendente. E que essa coisa pode ser
boa mas é mais provável que seja inconsistente. Ou até politicamente perigosa.
Olhando para as
manifestações de sábado, uma coisa salta à vista: a sua composição social e
etária. Sendo transversal e longe de ter sido uma manifestação de velhos,
notou-se, no entanto, mais do que a 15 de Setembro, a presença de muitos reformados.
Neles concentram-se todos os problemas. O problema de terem nascido e crescido
num País social, económica e culturalmente atrasado. E de carregarem, mais do
que todos os outros, o fardo desse atraso. As reformas miseráveis que grande
parte deles recebem, como prova esmagadora de que a ideia em que Passos
acredita, e em que quer que o País acredite, de que temos um Estado Social
demasiado generoso, só pode vir de uma cabeça de quem não conhece o País fora
das sedes partidárias e dos escritórios das empresas dos amigos. As
dificuldades dos filhos, incapazes de, hoje, garantirem a estabilidade
económica das suas famílias.
Uma das coisas que
mais se falou no sábado foi dos filhos que emigravam, que estavam
desempregados, que estavam desesperados. E a falta de perspectivas dos netos. Numa
sociedade como a portuguesa, onde a família é uma espécie de Estado Social
complementar (ou mesmo principal), os velhos acumulam o sofrimento de todas as
gerações. E são, eles próprios, os mais sacrificados entre os sacrificados.
Muitos dos
reformados que no sábado foram para a rua participaram na sua primeira
manifestação de sempre. Ou seja, passaram pela ditadura, pelo PREC e por toda a
democracia sem usarem desse direito. E só agora, com mais de 60 anos de vida e
quase 40 de democracia, é que se sentiram empurrados para a rua. Não se trata,
por isso, de um sentimento passageiro ou que dependa de cada momento mediático.
Foi, aliás, esta convicção, que me fez estranhar que tantos achassem que a
simulação de ida aos mercados tinha sido um novo fôlego para o governo. Portugal
não é o País mediático. Não ziguezagueia tão depressa entre a depressão e a
euforia. Porque as dificuldades sociais são bem mais lentas, quotidianas e
repetitivas do que os ciclos dos telejornais. E muitíssimo mais profundas
nos seus efeitos.
Num País
envelhecido, os reformados são quem decide quem governa. E têm sido a base
eleitoral fundamental do PSD. Sem eles, a direita não ganha eleições. Se
Pedro Passos Coelho conseguir cumprir o seu mandato até ao fim essa pode ser a
maior tragédia para o PSD. Viverá a sua "pasokização" (os socialistas
do PASOK eram o principal pilar do sistema partidário grego e acabaram, nas
últimas eleições, com 13%). Que será para durar.
Vivemos um momento
de revolta pacifica e que ainda se enquadra no sistema político, tal como o
conhecemos até hoje. Mas ele está na sua fase decadente. Se o mundo político
teimar em não responder ao País, coisas imprevisíveis acontecerão. Penso (ou
pelo menos espero) que acontecerão no espaço da democracia e não a pondo em
causa. Mas tudo pode mudar com mais dois anos de austeridade e miséria. Na
contestação social, já tudo mudou muito. Ela já não é apenas corporizada -
nem sequer já é hegemonizada - pelas estruturas sindicais e partidárias. Não
sei se isso é bom ou mau. É assim.
Ouvi, na televisão,
Ricardo Costa prever que este governo levará o seu mandato até ao fim. Se
a sua profecia estiver correta, as legislativas de 2011 podem ter sido as
últimas de um ciclo político nascido em 1976. Outro ciclo poderá nascer e é
impossível saber em que cenário se fará política em 2015. Porque, mesmo que
pensemos o contrário, não somos assim tão diferentes dos gregos e dos
italianos. E não estou a desenhar cenários pré-insurrecionais com que alguns
continuam a sonhar. Estou a pensar em bloqueios políticos como os que a Itália
vive hoje.
Se a oposição
continuar a não conseguir corporizar uma alternativa credível e o principal
partido da direita portuguesa entrar em desagregação, os primeiros a
aproveitar este momento, sejam sérios ou populistas, comediantes ou estadistas,
poderão causar um terramoto político. Porque o terramoto social, esse, já está
a acontecer. Sem que, aparentemente, as instituições e os partidos reajam
a isso.
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