António Veríssimo –
Página Lusófona
Hoje é sábado,
amanhã é domingo. Um lugar em que todos os dias são iguais, afundados no
desespero. Na venda do Monturjão entram logo cedo os que precisam de comprar
fiado. Ficam a dever ao Isaías… “por enquanto e como der”. A fome não é
solução para quem deve e tem de comer todos os dias “nem que seja uma côdea”,
diz Isaías, o dono da venda, com a sua habitual bonomia e amizade por muitos
dos velhos que o viram nascer e crescer. E lá vai fiando ao “ti” Manel, à “ti”
Engrácia, à velhota Pestes e ao Enforcado. Estes dois últimos os muito mais
velhos lá na localidade. Arrastam-se. “A velhota Pestes…” (assim alcunhada por
ser má-língua e causar às vezes desaforos, anda curvada de modo impressionante,
quase de gatas) … já nem tem família. É a última da família, está quase com 100
anos”. Esclarece Isaías. “Qual 100 anos, se tiver 90 já é demais!” Contrapõe o
Enforcado. “Ela anda quasi a ter com a cabeça no chão por cauda do trabalho no
campo, pela monda e por essas e outras. Muito trabalhinho, para agora nada ter
a não ser fome e miséria.” Remata. E vai. Todos vão. Isaías fica a vê-los
enquanto pendura uns tachos de alumínio no expositor que construiu – tachos
unidos por uma corda de sisal e pendurados num prego alojado na parede.
“O Enforcado,
porque tem aquela alcunha?” pergunto-lhe. “Ah, não sabe? Tá bem de ver. Porque
se enforcou além numa oliveira, não longe daqui, nas Cumeirinhas.” Responde
Isaías, e completa. “Foi no tempo desse Cavaco Silva em primeiro-ministro, que
nos fez a vida negra. O homem entrou em desespero e tentou suicidar-se.
Salvou-o um filho que já morreu. Sim senhor.”
Finalmente os
tachos ficam no prego (expositor) nos modos que Isaías queria. Fê-lo com
esforço. Também já não está nada novo. Uns 70 anos com mais de 10 de imigração
em França. O que lhe deu algum dinheiro para “montar a venda – a loja mais
moderna em Monturjão”, como diz, vaidoso. Continua na fala: “Esse Cavaco Silva
também foi um bom malandro em primeiro-ministro. Agora ainda é mais sabido. Os
da raça dele enriqueceram todos. Fartou-se de roubar, o magano. E fez-nos
sofrer até mais não. Houve fome nesses tempos que até estalava. Muitos se
suicidaram por aqui nas redondezas. O Das Silvas, o Trambolho, o Cinco
Alqueires. O Janota, que veio de Lisboa para se pendurar numa oliveira que o
viu nascer. E houve mais. Um malandro, esse Cavaco. Dará contas a Deus?... E
agora é presidente da República. Imaginem só o desaforo. Por isso temos fome,
por isso há tanta miséria. Dali dele e dos da sua laia nunca vem coisa boa.
Prantam-se ali no poderio e zás! Escangalham tudo, roubam, desbaratam e levam
os desesperados a pendurarem-se nas cordas. É assim. Manda quem pode.” Acaba a
fala de Isaías, olhando com tristeza o vazio da paisagem disposta em frente,
com uma estrada em terra e terreno a perder de vista com oliveiras, sob um céu
cinzento chumbo. Muitas oliveiras para os Enforcados.
Monturjão, uma
paisagem qualquer de Portugal, no sul. Portugueses, na miséria. À babuja de
côdeas, quando há. E tantos cavacos a estragarem o miolo do pão, a substancia.
Há fome? Há miséria? Há suicídios? Pudera. Porque há cavacos.
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