sábado, 16 de março de 2013

PORTUGAL, ONDE TODOS OS DIAS SÃO IGUAIS AO PIOR E AFUNDADOS NO DESESPERO

 


António Veríssimo – Página Lusófona
 
Hoje é sábado, amanhã é domingo. Um lugar em que todos os dias são iguais, afundados no desespero. Na venda do Monturjão entram logo cedo os que precisam de comprar fiado. Ficam a dever ao Isaías… “por enquanto e como der”. A fome não é solução para quem deve e tem de comer todos os dias “nem que seja uma côdea”, diz Isaías, o dono da venda, com a sua habitual bonomia e amizade por muitos dos velhos que o viram nascer e crescer. E lá vai fiando ao “ti” Manel, à “ti” Engrácia, à velhota Pestes e ao Enforcado. Estes dois últimos os muito mais velhos lá na localidade. Arrastam-se. “A velhota Pestes…” (assim alcunhada por ser má-língua e causar às vezes desaforos, anda curvada de modo impressionante, quase de gatas) … já nem tem família. É a última da família, está quase com 100 anos”. Esclarece Isaías. “Qual 100 anos, se tiver 90 já é demais!” Contrapõe o Enforcado. “Ela anda quasi a ter com a cabeça no chão por cauda do trabalho no campo, pela monda e por essas e outras. Muito trabalhinho, para agora nada ter a não ser fome e miséria.” Remata. E vai. Todos vão. Isaías fica a vê-los enquanto pendura uns tachos de alumínio no expositor que construiu – tachos unidos por uma corda de sisal e pendurados num prego alojado na parede.
 
“O Enforcado, porque tem aquela alcunha?” pergunto-lhe. “Ah, não sabe? Tá bem de ver. Porque se enforcou além numa oliveira, não longe daqui, nas Cumeirinhas.” Responde Isaías, e completa. “Foi no tempo desse Cavaco Silva em primeiro-ministro, que nos fez a vida negra. O homem entrou em desespero e tentou suicidar-se. Salvou-o um filho que já morreu. Sim senhor.”
 
Finalmente os tachos ficam no prego (expositor) nos modos que Isaías queria. Fê-lo com esforço. Também já não está nada novo. Uns 70 anos com mais de 10 de imigração em França. O que lhe deu algum dinheiro para “montar a venda – a loja mais moderna em Monturjão”, como diz, vaidoso. Continua na fala: “Esse Cavaco Silva também foi um bom malandro em primeiro-ministro. Agora ainda é mais sabido. Os da raça dele enriqueceram todos. Fartou-se de roubar, o magano. E fez-nos sofrer até mais não. Houve fome nesses tempos que até estalava. Muitos se suicidaram por aqui nas redondezas. O Das Silvas, o Trambolho, o Cinco Alqueires. O Janota, que veio de Lisboa para se pendurar numa oliveira que o viu nascer. E houve mais. Um malandro, esse Cavaco. Dará contas a Deus?... E agora é presidente da República. Imaginem só o desaforo. Por isso temos fome, por isso há tanta miséria. Dali dele e dos da sua laia nunca vem coisa boa. Prantam-se ali no poderio e zás! Escangalham tudo, roubam, desbaratam e levam os desesperados a pendurarem-se nas cordas. É assim. Manda quem pode.” Acaba a fala de Isaías, olhando com tristeza o vazio da paisagem disposta em frente, com uma estrada em terra e terreno a perder de vista com oliveiras, sob um céu cinzento chumbo. Muitas oliveiras para os Enforcados.
 
Monturjão, uma paisagem qualquer de Portugal, no sul. Portugueses, na miséria. À babuja de côdeas, quando há. E tantos cavacos a estragarem o miolo do pão, a substancia. Há fome? Há miséria? Há suicídios? Pudera. Porque há cavacos.
 

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