terça-feira, 9 de abril de 2013

A INSUPORTÁVEL E PREPOTENTE PRESENÇA DO NEOFASCISMO ESPANHOL




A primeira pessoa que sentará no banco dos réus na história da Espanha pelos crimes do fascismo espanhol, 35 anos depois da morte do general golpista, não será alguém que tenha feito parte daquela infâmia infinita, ou algum apologista de sua bondade e necessidade histórica, mas sim o juiz Baltasar Garzón, que tentou, com maior ou menor acerto, usar algumas armas jurídicas para superar a Lei do Ponto Final, como foi chamada a Lei da Anistia, de 1977. O artigo é de Salvador López Arnal, do Rebelión.

Salvador López Arnal – Rebelión – Carta Maior

Ignácio Escolar (1) apontou aquele que provavelmente seja – para além do sofrimento e desespero de tantos cidadãos e cidadãs espanhóis em situação cada vez mais difícil, debilitada, subordinada e desesperançada – o paradoxo mais sangrento e insuportável da política espanhol, um insulto à memória de tantos lutadores perseguidos e assassinados pelo franquismo: a primeira pessoa que sentará no banco dos réus na história da Espanha pelos crimes do fascismo espanhol, 35 anos depois da morte do general golpista, não será alguém que tenha feito parte daquela infâmia infinita, ou algum apologista de sua bondade e necessidade histórica, mas sim um juiz que tentou, com maior ou menor acerto, usar algumas armas jurídicas para superar aquela Lei do Ponto Final, como foi chamada a Lei da Anistia, de 1977.

Uma lei em relação à qual seguem tão contentes personagens como o senhor Santiago Carrillo, agora um velho dirigente político, que aproveita a apresentação de um de seus últimos livros para arremeter contra o PCE e a Esquerda Unida como se essas organizações fossem os nós essenciais da situação de debilidade das esquerdas espanholas que ele mesmo abona nas filas do PSOE. Não se trata, desde logo, de esquecer a história do senhor Garzón. Tampouco aqui pode habitar o esquecimento. Nem deve. Nem todo Garzón é impoluto e digno de admiração, desde uma perspectiva de esquerda, por mais moderada que essa possa ser. A esquerda já denunciou, com razão e razões, algumas, muitas, de suas atuações jurídico-políticas, e sai não rara subordinação aos interesses e finalidades do poder político-governamental. 

Não é para menos. É razoável que sua raiva se acumule ante a desonra e a perseguição. Mas não é isso que está em questão agora. O que está diante dos olhos da cidadania, quase sem ocultações, é, por uma parte, o papel de Garzón no caso Gürtel, uma fonte quase interminável de corrupção, servilismo, despotismo e financiamento irregular do PP, instâncias amigas e afins (seguem acreditando que a Espanha é uma fazenda de sua propriedade exclusiva) e, sobretudo, sua tentativa de superar a lei de ferro que protege o fascismo espanhol. Isso não se toca, com isso não se brinca. O fato de a Falange Espanhola (partido violento e assassino do fascismo espanhol, partido dos rapazes violadores espanhóis) ser uma peça destacada dessa rede mostra com nitidez o essencial da situação.

Essa situação deixa bem às claras as entranhas da Administração do Estado, o que nos bons tempos chamávamos, com abuso de metáforas biológico-técnicas, de “aparatos burocráticos do Estado burguês”. Um Estado bem fechado, que segue parcialmente em mãos dos herdeiros daquela camarilha de golpistas e personagens sem escrúpulos. Há um exemplo lembrado recentemente por Jean Guy Allard. Quando ocorreu o golpe de Estado contra o presidente venezuelano Hugo Chávez em 2002 – o que motivou seus protestos posteriores e aquele chulo,monárquico e prepotente grito “borbónico” do “por qué no te callas” -, o embaixador espanhol, junto com o norte-americano, visitou o “presidente golpista Pedro Carmona. Nunca se desculpou por isso. De que, pensaria, desculpar-me do quê, exclamaria o senhor embaixador, se ele é dos meus.

O embaixador em questão, Manuel Viturro de la Torre, ainda ativo se não me engano, foi membro de uma horda fascista que, no final do franquismo, se dedicava a atacar estudantes de esquerda da Universidade de Madri. Segundo um informa da Esquerda Unida, Viturro seguia tendo uma fotografia de Franco em seu escritório oficial. O embaixador negou. Podemos acreditar ou não. Mas ficou provado que em sua seção consular operava um grupo do serviço secreto espanhol a mando de Jesús Calderón.

Mas mudemos de cenário e de fascismo. Rafael Poch assinalou no La Vanguardia (2) que um recente filme recorda que a “renazificação” experimentada na restauradora Alemanha de Adenauer teve gloriosas exceções. A de Fritz Bauer, por exemplo, um resistente anti-nazistas, ex-preso, exilado na Dinamarca e na Suécia, preso pela Gestapo em 1933 por ser membro do Partido Social Democrata e expulso da magistratura por sua origem judia. Bauer deveria entrar na história alemã por vários motivos, sustenta o excelente correspondente do La Vanguardia. Por ter sido o iniciador do “Processo Remer”, de março de 1952, contra o general nazista Otto Ernst Remer, por difamação e calúnia contra os conspiradores da “Operação Valkiria” que tentou matar Hitler no dia 20 de julho de 1944. Remer os chamou de “traidoresda pátria”. Foi condenado a três meses de prisão. Conseguiu escapar, fugindo para a Espanha, onde morreu em Marbella, em 1997, feliz da vida e negando o holocausto. A resistência, lembra Poch de Feliu, foi reabilitada: desde então já não se pode mais chamar seus protagonistas de “traidores”.

Bauer foi promotor em 1958 dos Processos de Auschwitz: seis julgamentos realizados entre 1963 e 1968, vinte anos depois de finalizada a Segunda Guerra, contra 27 responsáveis diretos de campos de extermínio, oficiais da SS e da Gestapo. Na Alemanha Ocidental, em termos gerais, assinala Poch, não houve desnazificação: “Os julgamentos aliados na Alemanha contra os nazistas foram pouca coisa e o novo Estado alemão os protegeu e anistiou. O tribunal de Nuremberg que se propunha a levar a julgamento cinco mil pessoas, não julgou mais do que 210 (...). Mais de 90% dos membros das SS não foram a julgamento”. Poch recorda também uma observação do catedrático Ossip K. Flechtheim nos anos oitenta:

“Não só não houve desnazificação, como ocorreu sim uma renazificação, não no sentido de que os ex-nazistas estivessem outra vez em seus postos para construir um novo Auschwitz, mas sim no de que ajudaram a levantar essa Alemanha conservadora, democrática e capitalista” (3).

Até aqui Alemanha. Não só não houve desnazificação, como ocorreu uma renazificação, observou Ossip K. Flechteim. O que poderia se dizer então da Espanha? Houve uma “desfascistização”? Não parece. Nem um só criminoso franquista – e houve muitos – foi julgado? Ocorreu uma “refascistização”? Tudo parece apontar para uma resposta positiva a esta última pergunta. O julgamento de Baltasar Garzón é um elo a mais desta longa cadeia de presença e ação não dissimulada do fascismo espanhol.

Postas assim as coisas, rebelar-se, protestar, mobilizar-se, denunciar – sem incorrer em nenhuma apologia da vítima, volto a insistir – parece claramente uma das tarefas da hora. “Não passarão”, disseram nossos antepassados. Passaram com muita ajuda, É certo. Mas vamos interceptá-los. Ou tentar ao menos. 

PS: Escobar baseia seu paradoxo no Caso Gürtel, diminuindo talvez a importância da Filesa, aquela velha fonte de financiamento irregular do PSOE. Seis milhões frente a 201, 33 vezes mais a favor de Gürtel, calcula Escolar. Mas não é certo que o caso Filesa envolva só 6 milhões de euros. Sem esquecer que os 6 milhões de 20 anos atrás não representam o mesmo valor hoje. Tanto faz, não é o ponto essencial. Escolar parece esquecer outros problemas, que não são comparáveis como, por exemplo, a operação Pretoria [Saqueo, Marbella, Operação Malaya, caso Gürtel e Operação Pretória são processos envolvendo casos de corrupção política, de 1999 a 2009. A Operação Pretória envolveu financiamento ilegal de partidos].

Aproveitando que o fascismo é o tema do dia, vale a pena também recordar as recentes declarações do senhor Barrionuevo a um canal de televisão. O ex-ministro do Interior do primeiro governo González-Guerra - que segue sendo militante do PSOE, salvo erro da minha da parte – justificou com total clareza, com meio sorriso nos lábios e uma expressão dura na face, o terrorismo de Estado do governo do qual fez parte. Ele disse claramente: foi em legítima defesa, em todos seus extremos e atuações. Ou seja, não só não pediu desculpas pelo seqüestro de S. Marey, por exemplo, como voltou a defender sua opinião de sempre: foi justo e necessário que o Estado, dirigido por seu governo, assassinasse e/ou seqüestrasse militantes e simpatizantes do ETA ou pessoas que nada tinham a ver com a organização. Não há na Espanha nenhum Fritz Bauer que seja capaz de impedir a propagação desta infâmia? 

NOTAS
[1] Ignacio Escolar, “Otro día más en la Justicia española”. Público, 8 de abril de 2010, p. 56.
[2] http://www.lavanguardia.es/lv24h/20100405/53901298496.html. Rebelión reproduziu a notícia no dia 8 de abril de 2010.
[3] Poch de Feliu recorda que Flechtheim, um colega de Bauer, promotor em vários processos de Nuremberg, não chegou a conhecer (ele morreu em 1998) nem um só caso de juristas da administração nazista que tenham sido julgados e punidos nos tribunais. A maior parte dos 25 membros da comissão de assessores do Conselho Constituinte que redigiu a Constituição alemã de 1949 estava na ativa durante o nazismo.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

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