A primeira pessoa
que sentará no banco dos réus na história da Espanha pelos crimes do fascismo
espanhol, 35 anos depois da morte do general golpista, não será alguém que
tenha feito parte daquela infâmia infinita, ou algum apologista de sua bondade
e necessidade histórica, mas sim o juiz Baltasar Garzón, que tentou, com maior
ou menor acerto, usar algumas armas jurídicas para superar a Lei do Ponto
Final, como foi chamada a Lei da Anistia, de 1977. O artigo é de Salvador López
Arnal, do Rebelión.
Salvador López
Arnal – Rebelión – Carta Maior
Ignácio Escolar (1) apontou
aquele que provavelmente seja – para além do sofrimento e desespero de tantos
cidadãos e cidadãs espanhóis em situação cada vez mais difícil, debilitada,
subordinada e desesperançada – o paradoxo mais sangrento e insuportável da
política espanhol, um insulto à memória de tantos lutadores perseguidos e
assassinados pelo franquismo: a primeira pessoa que sentará no banco dos réus
na história da Espanha pelos crimes do fascismo espanhol, 35 anos depois da
morte do general golpista, não será alguém que tenha feito parte daquela
infâmia infinita, ou algum apologista de sua bondade e necessidade histórica,
mas sim um juiz que tentou, com maior ou menor acerto, usar algumas armas
jurídicas para superar aquela Lei do Ponto Final, como foi chamada a Lei da
Anistia, de 1977.
Uma lei em relação à qual seguem tão contentes personagens como o senhor
Santiago Carrillo, agora um velho dirigente político, que aproveita a
apresentação de um de seus últimos livros para arremeter contra o PCE e a
Esquerda Unida como se essas organizações fossem os nós essenciais da situação
de debilidade das esquerdas espanholas que ele mesmo abona nas filas do PSOE.
Não se trata, desde logo, de esquecer a história do senhor Garzón. Tampouco
aqui pode habitar o esquecimento. Nem deve. Nem todo Garzón é impoluto e digno
de admiração, desde uma perspectiva de esquerda, por mais moderada que essa
possa ser. A esquerda já denunciou, com razão e razões, algumas, muitas, de suas
atuações jurídico-políticas, e sai não rara subordinação aos interesses e
finalidades do poder político-governamental.
Não é para menos. É razoável que sua raiva se acumule ante a desonra e a
perseguição. Mas não é isso que está em questão agora. O que está diante dos
olhos da cidadania, quase sem ocultações, é, por uma parte, o papel de Garzón
no caso Gürtel, uma fonte quase interminável de corrupção, servilismo,
despotismo e financiamento irregular do PP, instâncias amigas e afins (seguem
acreditando que a Espanha é uma fazenda de sua propriedade exclusiva) e,
sobretudo, sua tentativa de superar a lei de ferro que protege o fascismo
espanhol. Isso não se toca, com isso não se brinca. O fato de a Falange
Espanhola (partido violento e assassino do fascismo espanhol, partido dos
rapazes violadores espanhóis) ser uma peça destacada dessa rede mostra com
nitidez o essencial da situação.
Essa situação deixa bem às claras as entranhas da Administração do Estado, o
que nos bons tempos chamávamos, com abuso de metáforas biológico-técnicas, de
“aparatos burocráticos do Estado burguês”. Um Estado bem fechado, que segue
parcialmente em mãos dos herdeiros daquela camarilha de golpistas e personagens
sem escrúpulos. Há um exemplo lembrado recentemente por Jean Guy Allard. Quando
ocorreu o golpe de Estado contra o presidente venezuelano Hugo Chávez em 2002 –
o que motivou seus protestos posteriores e aquele chulo,monárquico e prepotente
grito “borbónico” do “por qué no te callas” -, o embaixador espanhol, junto com
o norte-americano, visitou o “presidente golpista Pedro Carmona. Nunca se
desculpou por isso. De que, pensaria, desculpar-me do quê, exclamaria o senhor
embaixador, se ele é dos meus.
O embaixador em questão, Manuel Viturro de la Torre, ainda ativo se não me engano,
foi membro de uma horda fascista que, no final do franquismo, se dedicava a
atacar estudantes de esquerda da Universidade de Madri. Segundo um informa da
Esquerda Unida, Viturro seguia tendo uma fotografia de Franco em seu escritório
oficial. O embaixador negou. Podemos acreditar ou não. Mas ficou provado que em
sua seção consular operava um grupo do serviço secreto espanhol a mando de
Jesús Calderón.
Mas mudemos de cenário e de fascismo. Rafael Poch assinalou no La
Vanguardia (2) que um recente filme recorda que a “renazificação”
experimentada na restauradora Alemanha de Adenauer teve gloriosas exceções. A
de Fritz Bauer, por exemplo, um resistente anti-nazistas, ex-preso, exilado na
Dinamarca e na Suécia, preso pela Gestapo em 1933 por ser membro do Partido
Social Democrata e expulso da magistratura por sua origem judia. Bauer deveria
entrar na história alemã por vários motivos, sustenta o excelente
correspondente do La Vanguardia. Por ter sido o iniciador do “Processo
Remer”, de março de 1952, contra o general nazista Otto Ernst Remer, por
difamação e calúnia contra os conspiradores da “Operação Valkiria” que tentou
matar Hitler no dia 20 de julho de 1944. Remer os chamou de “traidoresda
pátria”. Foi condenado a três meses de prisão. Conseguiu escapar, fugindo para
a Espanha, onde morreu em Marbella, em 1997, feliz da vida e negando o
holocausto. A resistência, lembra Poch de Feliu, foi reabilitada: desde então
já não se pode mais chamar seus protagonistas de “traidores”.
Bauer foi promotor em 1958 dos Processos de Auschwitz: seis julgamentos
realizados entre 1963 e 1968, vinte anos depois de finalizada a Segunda Guerra,
contra 27 responsáveis diretos de campos de extermínio, oficiais da SS e da
Gestapo. Na Alemanha Ocidental, em termos gerais, assinala Poch, não houve
desnazificação: “Os julgamentos aliados na Alemanha contra os nazistas foram
pouca coisa e o novo Estado alemão os protegeu e anistiou. O tribunal de
Nuremberg que se propunha a levar a julgamento cinco mil pessoas, não julgou
mais do que 210 (...). Mais de 90% dos membros das SS não foram a julgamento”.
Poch recorda também uma observação do catedrático Ossip K. Flechtheim nos anos
oitenta:
“Não só não houve desnazificação, como ocorreu sim uma renazificação, não no
sentido de que os ex-nazistas estivessem outra vez em seus postos para
construir um novo Auschwitz, mas sim no de que ajudaram a levantar essa
Alemanha conservadora, democrática e capitalista” (3).
Até aqui Alemanha. Não só não houve desnazificação, como ocorreu uma renazificação,
observou Ossip K. Flechteim. O que poderia se dizer então da Espanha? Houve uma
“desfascistização”? Não parece. Nem um só criminoso franquista – e houve muitos
– foi julgado? Ocorreu uma “refascistização”? Tudo parece apontar para uma
resposta positiva a esta última pergunta. O julgamento de Baltasar Garzón é um
elo a mais desta longa cadeia de presença e ação não dissimulada do fascismo
espanhol.
Postas assim as coisas, rebelar-se, protestar, mobilizar-se, denunciar – sem
incorrer em nenhuma apologia da vítima, volto a insistir – parece claramente
uma das tarefas da hora. “Não passarão”, disseram nossos antepassados. Passaram
com muita ajuda, É certo. Mas vamos interceptá-los. Ou tentar ao menos.
PS: Escobar baseia seu paradoxo no Caso Gürtel, diminuindo talvez a importância
da Filesa, aquela velha fonte de financiamento irregular do PSOE. Seis milhões
frente a 201, 33 vezes mais a favor de Gürtel, calcula Escolar. Mas não é certo
que o caso Filesa envolva só 6 milhões de euros. Sem esquecer que os 6 milhões
de 20 anos atrás não representam o mesmo valor hoje. Tanto faz, não é o ponto
essencial. Escolar parece esquecer outros problemas, que não são comparáveis
como, por exemplo, a operação Pretoria [Saqueo, Marbella, Operação Malaya, caso
Gürtel e Operação Pretória são processos envolvendo casos de corrupção
política, de 1999 a 2009. A Operação Pretória envolveu financiamento ilegal de
partidos].
Aproveitando que o fascismo é o tema do dia, vale a pena também recordar as
recentes declarações do senhor Barrionuevo a um canal de televisão. O
ex-ministro do Interior do primeiro governo González-Guerra - que segue sendo
militante do PSOE, salvo erro da minha da parte – justificou com total clareza,
com meio sorriso nos lábios e uma expressão dura na face, o terrorismo de
Estado do governo do qual fez parte. Ele disse claramente: foi em legítima
defesa, em todos seus extremos e atuações. Ou seja, não só não pediu desculpas
pelo seqüestro de S. Marey, por exemplo, como voltou a defender sua opinião de
sempre: foi justo e necessário que o Estado, dirigido por seu governo,
assassinasse e/ou seqüestrasse militantes e simpatizantes do ETA ou pessoas que
nada tinham a ver com a organização. Não há na Espanha nenhum Fritz Bauer que
seja capaz de impedir a propagação desta infâmia?
NOTAS
[1] Ignacio Escolar, “Otro día más en la Justicia española”. Público, 8 de
abril de 2010, p. 56.
[2] http://www.lavanguardia.es/lv24h/20100405/53901298496.html. Rebelión
reproduziu a notícia no dia 8 de abril de 2010.
[3] Poch de Feliu recorda que Flechtheim, um colega de Bauer, promotor em
vários processos de Nuremberg, não chegou a conhecer (ele morreu em 1998) nem
um só caso de juristas da administração nazista que tenham sido julgados e
punidos nos tribunais. A maior parte dos 25 membros da comissão de assessores
do Conselho Constituinte que redigiu a Constituição alemã de 1949 estava na ativa
durante o nazismo.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
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