Leonardo Sakamoto*
em seu blogue
O júri condenou, na madrugada deste domingo (21), 23 dos 26
policiais militares acusados pela morte de 13 detentos (eram 15, mas o
Ministério Público retirou dois casos), durante o Massacre do Carandiru,
em outubro de 1992. As penas são de 156 anos em regime fechado. Outros 53
policiais ainda devem ser julgados até o final do ano.
É uma decisão de
primeira instância e, a ela, cabe recurso. Mas a turminha da escola de samba
“Unidos da Lei de Talião”, que canta o lema “olho por olho, dente por dente”,
desde que o mundo é mundo, vai ter que engolir o recado: funcionários públicos
não possuem o direito de executar sumariamente alguém e ignorar que a pena de
morte inexiste no Brasil. Pelo menos, não em tese.
E, se assim
fizerem, serão condenados por isso. Pelo menor, por agora. Carandiru não é
Raccon City e o Coronel Ubiratan Guimarães (que a terra lhe seja leve) não é
Mila Jovovich. Não importa quem, não importa onde, não importa que o Datena
diga que não, todos têm direitos. De um julgamento justo, de poderem cumprir
sua pena, de serem reintegrados à sociedade sem o risco de um massacre no meio
do caminho.
Contudo, estamos
falando do estranho sistema judicial paulista, que mantém perigosas senhoras
presas por conta do roubo de um xampu, e, por isso, tudo pode acontecer daqui
para frente. Vale lembrar que o povo de São Paulo, em 2001, condenou Ubiratan,
o comandante da operação no Carandiru, a 632 de prisão. Mas nosso amado
Tribunal de Justiça aceitou um recurso, cinco anos mais tarde, e o absolveu. A
defesa de Ubiratan afirmou que ele estaria agindo no “estrito cumprimento do
dever” quando ordenou a invasão do Pavilhão 9 da Casa de Detenção – a mesma
justificativa dos réus de agora. Seu chefe, Luiz Antônio Fleury Filho, então
governador do Estado de São Paulo, não foi envolvido como réu no caso. Pelo
contrario, acabou arrolado como testemunha de defesa. Fascinante.
A justificativa
dada após a sentença pela advogada de defesa Ieda Ribeiro de Souza é de uma
sinceridade contundente: “Não é essa a vontade da sociedade brasileira”. E não
é mesmo. A massa, não raro, opta pela saída mais fácil, é manipulável, tem medo
de tudo. O indivíduo, ele sim, é mais racional. Mas se Justiça fosse pesquisa
de opinião, era só acionar o Datafolha e o Ibope e deixar a massa se manifestar
antes do martelinho do juiz gongar a mesa.
Como já disse
antes, o que ocorreu naquele 2 de outubro de 1992 foi um servicinho sujo que
parte de nós, paulistas, desejava (e ainda deseja) em seus sonhos mais íntimos:
que bandido esteja morto. A sociedade demorou para julgar esse caso porque não
suportava um espelho no banco dos réus. Muitos dos presos perderam a vida por
conta de uma irracionalidade coletiva pois, para muita gente, essas limpezas
sumárias são lindas, sejam feitam pelas mãos da população, sejam pelas do
próprio Estado, ao caçar traficantes em morros cariocas ou na periferia da
capital paulista. Se com o devido processo legal, inocentes amargam anos de
cadeia devido a erros, imagine sem ele.
Momentos como o
julgamento que se encerrou nesta madrugada são importantes para que a sociedade
consiga saldar as contas com seu passado, revelando-o, discutindo-o,
entendendo-o. Para evitar que ele aconteça de novo.
Mais do que um país
sem memória e com pouca Justiça, temos diante de nós um Brasil conivente com a
violência como principal instrumento de ação policial. E uma coisa está
diretamente relacionada a outra. Durante os anos de chumbo, o regime dos
verde-oliva cometeram crimes contra a humanidade – que a esvaziada Comissão da
Verdade, criada pelo governo Dilma, está agora remexendo para tentar
restabelecer o que realmente ocorreu naquele tempo. Vai ter algum efeito, mas
não conseguirá ir a fundo, como deveria. E não foi organizada para punir e sim
para resgatar os fatos. Punições que seriam didáticas para o país
.
Não estou
esquecendo que existe uma Lei da Anistia, que está em vigor, e que o Supremo
Tribunal Federal (infelizmente) decidiu por mantê-la quando questionado pela
Corte Interamericana dos Direitos Humanos. A discussão aqui não é legal, ou
seja, não é um debate sobre a mudança da lei e sim sobre a percepção coletiva
sobre a impunidade de um Estado que serve a si mesmo e a grupos sociais que o
controlam.
Ao contrário de
outros países, como a Argentina (eles têm Messi, eles têm o papa, eles quitam
melhor as contas com o passado…), o Brasil não conseguiu tratar suas feridas
para que cicatrizassem. Apenas as tapou com a cordialidade que nos é peculiar,
o bom e velho, deixa-pra-lá, em nome de um suposto equilíbrio e da
governabilidade. Dessa forma, o Estado não deixou claro aos seus quadros que
usar da violência, torturar e matar não são coisas aceitáveis. E com a anuência
da Justiça que, através do seu silêncio, manteve aqueles crimes impunes. E, ei,
para o pessoal que só aciona o seu Tico-e-Teco bissextamente: estou falando de
violência de quem deve zelar pela integridade da população.
Enquanto não
acertarmos as contas com o nosso passado, não teremos capacidade de entender
qual foi a herança deixada por ele – na qual estamos afundados até o pescoço e
nos define. Foram-se as garrafas, ficaram-se os rótulos. A ditadura se foi, sua
influência permanece. Não somos um país que respeita os direitos humanos e não
há perspectivas para que isso passe a acontecer pois, acima de tudo, falta
entendimento e, consequentemente, apoio, da própria população.
O impacto desse
não-apoio se faz sentir no dia-a-dia dos distritos policiais, nas salas de
interrogatórios, nas periferias das grandes cidades, nos grotões da zona rural,
em presídios, com o Estado aterrorizando parte da população (normalmente mais
pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica). A ponto de ser
banalizada em filmes como Tropa de Elite, em que parte de nós torceu para os
mocinhos que usavam o mesmo tipo de método dos bandidos no afã de arrancar a
“verdade”.
A justificativa é a
mesma usada nos anos de chumbo brasileiros ou nas prisões no Iraque e em
Guantánamo, em Cuba: estamos em guerra. Guerra contra a violência, guerra
contra as drogas, guerra contra inimigos externos. Ninguém explicou, contudo
que essa guerra é contra os valores que nos fazem humanos e que, a cada
batalha, vamos deixando um pouco para trás.
Não é de estranhar
que boa parte da sociedade que grita que “bandido bom é bandido morto” também
esteja entre os 93% de paulistanos que concorda com a redução da maioridade
penal para os 16 anos e fique radiante com as ações truculentas da polícia
militar na Cracolândia do Centro de São Paulo. São as mesmas pessoas que, no
fundo, pensam “Bem feito!” ao lembrar dos 19 sem-terra mortos na Chacina de
Eldorado dos Carajás, no Pará, que completou 17 anos no ultimo dia 17.
Não querem discutir
(atenção, discutir, não empurrar goela abaixo) propostas para garantir direitos
pela mesma razão que não se importam se alguma pessoa foi tratada de forma
injusta por forças de segurança do Estado. São seguidores da doutrina: “se você
apanhou da polícia é porque alguma culpa tem”. E se não se importam com
inocentes, imagine então com quem é culpado. Para eles, é pena de morte e
depois derrubar a casa e salgar o terreno onde a pessoa nasceu, além de
esterilizar a mãe para que não gere outro meliante.
Enfim, não estou
falando de qualquer espelho que deveria estar no banco dos réus. A verdade é
que não queremos olhar para um retrovisor por ele mostrar nossa cara hoje, mas
também por nos lembrar que , apesar de um longo caminho percorrido, temos a
mesma cara do passado que, só em tese, deixamos para trás.
* Leonardo Sakamoto
é jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu conflitos armados e o
desrespeito aos direitos humanos em Timor Leste, Angola e no Paquistão.
Professor de Jornalismo na PUC-SP, é coordenador da ONG Repórter Brasil e seu
representante na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.
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