António Marinho
Pinto – Jornal de Notícias, opinião
Estará a democracia
representativa em falência? Estarão os alicerces da democracia política
corroídos por degenerescências que ameaçam a sua própria sustentação? Seja qual
for a resposta uma coisa é certa: a democracia representativa está doente,
muito doente - pelo menos em Portugal.
O que,
verdadeiramente, distingue um sistema democrático de qualquer outro regime
político é o respeito pela vontade popular. Por isso, nunca será
verdadeiramente democrático um sistema político cujos titulares se desvinculam
da vontade dos que dizem representar. As piores ameaças à democracia política
são protagonizadas por aqueles que se acham superiores ao comum dos cidadãos ou
então que se julgam portadores de verdades inquestionáveis. Os exemplos mais
recentes são os totalitarismos da primeira metade do século XX, alguns dos
quais ainda hoje persistem como fósseis de um passado de terror, enquanto
outros só desapareceram depois de cataclismos bélicos cuja memória nos
interpela como a terrível pergunta: "Como foi possível?".
Os ditadores
suprimem a auscultação da vontade popular através da imposição dos seus axiomas
políticos e exploraram com desbragado oportunismo as imperfeições dos regimes
democráticos. Aproveitam-se inescrupulosamente das suas fragilidades e
transformam algumas das virtudes das democracias em defeitos tenebrosos. Para
qualquer ditador, real ou em potência, o povo nunca está preparado para exercer
em plenitude as liberdades ou para escolher em consciência os seus próprios
dirigentes. O povo deve apenas obedecer porque mandar é tão difícil que só
homens superiores estão aptos a fazê-lo. As liberdades - dizem - conduzem à
anarquia social e, por isso, o povo não deve ser chamado a decidir o seu
próprio destino, antes deve ser conduzido pelas suas elites, sejam elas
iluminadas vanguardas políticas ou simplesmente um caudilho de ocasião. Para
eles, o conjunto dos cidadãos constitui uma massa ignara que serve apenas para
aplaudir e aclamar as decisões dos seus dirigentes mas nunca para as questionar
e muito menos para pôr em causa quem está nas ingratas funções do mando. Os
ditadores garantem sempre que as suas medidas são as melhores ou as únicas
viáveis, mas como o povo quase nunca percebe isso elas têm de ser impostas.
Esta
"cultura" está hoje subjacente à atuação de muitos dirigentes
políticos das democracias formais, os quais se consideram, igualmente,
portadores de verdades que o povo não aceitaria se fosse consultado. Por isso é
que as suas verdades ou os benefícios que nos oferecem têm de nos ser impostos
para o nosso próprio bem ou para o bem geral.
Nas democracias
formais já não é o uso da força que garante a emergência e subsistência desses
iluminados, mas antes o ardil, o engano, o logro e a mentira. Esses
criptoditadores recuperaram um dos mais emblemáticos paradigmas das tiranias,
ou seja, a distinção entre a vontade e o interesse do povo ou, se se preferir,
entre o interesse geral da governação (a que também chamam nação) e os
interesses dos governados. E, tal como qualquer ditador, dizem que a sua ação é
sempre em favor do interesse geral ainda que contra a vontade dos seus
beneficiários, ou seja, de quem os elegeu. E porque o povo raramente aceitaria
a preponderância do interesse geral é que surge essa casta de esclarecidos
sempre com a missão de cumprir um grande desígnio patriótico.
Por isso é que o
mais importante para eles é a conquista do poder, pois sabem que a seguir tudo
é permitido, tudo se legitima por si próprio sem qualquer responsabilização. Os
benefícios do poder são tão grandes para os seus titulares (e para as suas
clientelas) que vale tudo para o alcançar e para o manter. Depois, perde-se
todo o sentido da honradez e da ética política, bem como todo o respeito pela
verdade e pela vontade dos eleitores. Aliás, para eles, a ética política está
exclusivamente nas leis que eles próprios fazem à medida dos seus interesses.
São estas situações que levam ao apodrecimento da democracia e à descrença de
muitos cidadãos nas suas virtudes. É neste ambiente de degradação ética da
política e de degenerescência moral da democracia que as serpentes costumam pôr
os seus ovos.
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