Mário Soares – Diário
de Notícias, opinião
Já escrevi sobre o
atual Papa Francisco e sobre quanto me têm impressionado positivamente as suas
posições, ao lado dos pobres. Como disse: "Sentir-se pecador é uma das
coisas mais bonitas que há, no sentido em que Santo Agostinho, ao falar de
redenção, ao conhecer o pecado de Adão e Eva e a redenção de Jesus, comenta:
feliz pecado que nos merece uma tal redenção." Cantamos isto na noite da
Páscoa: "Feliz culpa, feliz pecado." E acrescenta: "Quando uma
pessoa toma consciência de que é pecador e que é salvo por Jesus, descobre como
é grande a vida, que há alguém que a ama profundamente e que deu a sua vida por
ela (vide a pequena brochura, traduzida em português, intitulada "Papa
Francisco, conversa com Jorge Bergoglio").
Mas é, quanto a
mim, no plano social e da relação com os outros - os mais pobres, os
desempregados, os presos e as mulheres - que Sua Santidade vai mais longe e
pretende fazer, ao que parece, uma "revolução pacífica" no Vaticano:
contra a corrupção, contra a pobreza, o desemprego, face à riqueza do Vaticano
e contra, obviamente, a pedofilia e outros maus costumes.
Não se trata de uma
tarefa fácil. Mas a determinação de Sua Santidade que dialoga com agnósticos e
ateus, de igual para igual e com representantes de outras religiões e que quer
ver as mulheres em igualdade com os homens, prepara seguramente um novo ciclo
no Vaticano, que pode conduzir a outro Concílio Vaticano II (então III). Oxalá
que sim.
No plano social,
Sua Santidade vê a crise económica, política, social e ética europeia por uma
forma muito crítica. Por isso apoiou logo a recondução do novo mandato do
Presidente Giorgio Napolitano, de quem é amigo, e apoiou desde o início o
primeiro-ministro de Itália, Enrico Letta, que parece vir a ser um dos grandes
primeiros-ministros do nosso tempo.
O novo Papa, logo
no início do seu mandato, disse ser contra o "capitalismo selvagem" e
contra a globalização desregulada, o economicismo e as políticas de austeridade
impostas pela luterana e ex-comunista chanceler Angela Merkel e os seus obedientes
servidores, os dirigentes ultrarreacionários dos diferentes Estados europeus e
os tecnocratas ultra-conservadores que dirigem as instituições europeias, às
ordens de Merkel.
É bom que Sua
Santidade seja argentino, de origem italiana, e compreenda que a criação da
União Europeia foi obra de duas famílias políticas e ideológicas europeias: o
socialismo democrático (ou social-democracia ou trabalhismo, conforme a
denominação utilizada pelos diferentes Estados) e a democracia cristã. Ora, nos
últimos anos, ambas as famílias político-ideológicas e sociais foram
substituídas por partidos ultraconservadores neoliberais, inspirados pelos
presidentes americanos Ronald Reagan (amigo do peito da defunta Senhora
Thatcher) e pelo presidente Bush Filho, de má memória. Desde então os Partidos
Democratas Cristãos praticamente desapareceram, bem como a doutrina social da
Democracia Cristã. Exceto talvez na América Latina, donde vem o Papa Francisco.
E não foi por acaso que isso aconteceu.
Agora que o
neoliberalismo começa a estar em descrédito, não só nos Estados da Europa do
Sul, mas quase em toda a União, é importante e oportuno que Sua Santidade
estimule o aparecimento em força de partidos democratas cristãos, que possam
entender-se com os socialistas ou social-democratas a sério, para acabar com as
políticas de austeridade que estão a levar a União Europeia para o descrédito e
podem conduzir - se não houver mudança de paradigma - à destruição da União dos
Estados membros, que abandonaram a solidariedade entre eles e porventura a um
novo conflito europeu e mesmo mundial. É a consciência desse risco que devem
ter os europeus, não só do Sul, mas todos, porque todos, sem exceção, vão
sofrer as consequências dessa verdadeira tragédia de nível mundial...
É em virtude desse
perigo que tenho visto a Igreja portuguesa, que sempre foi mais aberta do que a
espanhola, desde que houve as duas transições democráticas ibéricas, muito
silenciosa em relação aos perigos que Portugal está a correr com a política
inaceitável e irresponsável do atual Governo português, que está a destruir a
nossa Pátria, que já fez um milhão de desempregados, que só defende e se
interessa pelo dinheiro e ignora as pessoas, por piores condições em que
estejam, como é o caso da grande maioria.
Porque tem estado
tão calada a Igreja portuguesa, parecendo ignorar a destruição da nossa Pátria,
o crescente desemprego, o impulso para a emigração a que submete as nossas
melhores cabeças, o crescimento da miséria, que está a afetar os próprios
bancos, a incapacidade da Justiça, a paralisação do Estado e a ruína da nossa
classe média?
Não compreende a
Igreja portuguesa as palavras de Sua Santidade? Ou está de novo, como nos
ominosos tempos da ditadura, em silêncio com medo do que lhe possa acontecer?
Esqueceu-se da generosidade com que a Revolução dos Cravos a tratou, ignorando
então, consciente e propositadamente, o seu silêncio?
De qualquer modo
não se compreende o silêncio da Igreja Católica portuguesa, excecionando
algumas raras figuras eclesiásticas e alguns frades.
Será que o senhor
cardeal-patriarca, em fim de carreira, teme ter problemas com o atual Governo,
que está moribundo, ou teme que a Igreja possa perder alguns privilégios que o
Estado democrático, nascido do 25 de Abril e da Constituição da República, que
é laica, lhe trouxe? Seja como for, o silêncio da Igreja portuguesa parece
contrariar o pensamento de Sua Santidade o Papa, o que para os verdadeiros
católicos deve ser uma vergonha.
Há dias vi e ouvi,
na televisão, um cristão democrata, deputado do Porto que se dizia, batendo com
a mão no peito, partidário da austeridade e da política do atual Governo.
Certamente ignora o pensamento de Sua Santidade ou por interesse pessoal não
quer pensar nisso. Pobre Igreja portuguesa, com "fiéis" deste
calibre...
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