Rui Peralta, Luanda
I - Quando penso,
falo ou escrevo sobre o Mali, fico rodeado de questões, interligadas,
conectadas, criando um emaranhado de pontos de interrogação. O Mali
converteu-se em quê? Converteram o Mali em quê? O capitalismo fez o quê do
Mali? No que é que o neocolonialismo converteu o Mali? O que é que a França fez
do Mali? O que fazem os franceses no Mali? E os malianos foram convertidos em
quê? Ou será que se converteram? E nesse caso, converteram-se em quê? Será que
foram os Planos de Ajuste Estrutural, a massacrá-los durante 30 anos, que os
converteu? Ou terá sido que se converteram, como consequência dos Planos de
Ajuste Estrutural durante 30 anos? E como foi possível que vastos sectores da
sociedade maliana tenham encarado François Hollande – um personagem típico da
pobreza de espirito da Gauche – como libertador e a Operação Serval – que
introduziu a escória militarista dos Enfants de la Patrie, no Mali – como a
solução para os seus problemas com a Al-Qaeda, os bandos de Ansar Dine e dos
restantes grupos fascistoides que pululam pelo Mali? Será que pensaram que a
vida iria ser como antes? Mas, antes do quê? Antes da independência? Antes dos
Planos de Ajuste Estrutural?
Este emaranhado de
questões conduz a um emaranhado de respostas, que depois de ponderadas poderão,
ou não, conduzir a um novo emaranhado de perguntas. No entanto, quem não quer
saber de perguntas, nem de respostas, é François Hollande, que quando passou em
Bamaco, assumiu uma postura (ou uma impostura?) de Cesárix (uma mistura de
Julius César com Asterix) e (levando a sério o seu papel de César Gaulês)
prometeu que o Mali, com a ajuda da França, teria uma nova independência “não
contra o colonialismo, mas contra o terrorismo”.
Um facto é que a
intervenção militar não resolveu grande coisa, embora possa ter reduzido alguma
capacidade operacional dos fascistas islâmicos. Mas nas cidades ocupadas pelos
franceses, Gao e Tombuctu, os bandos armados fascistoides e da Al Qaeda continuam
com os atentados e Kidal permanece sob controlo do Movimento de Libertação Nacional
de Azawad (MNLA). Por isso os franceses reveem os seus efectivos militares e
reavaliam os seus objectivos.
A cooperação dos
franceses com a CEDAO na mobilização de forças africanas da Missão
Internacional de apoio ao Mali (MISMA) não é satisfatória e a França não
participa na Missão das Nações Unidas no Mali, a MINUSMA, que iniciará as suas
funções no terreno em Julho. Fica longe do discurso de Césarix, a intervenção
francesa. Das palavras inflamadas, Hollande passou, muito pouco tempo depois,
ao cálculo racional das contas da mercearia, embora ainda esteja longe da única
atitude de bom senso: retirar.
II - O problema do
Mali não pode ser explicado pela crise humanitária e pela insegurança no Norte
do país, provocada pela Al Qaeda e pelos bandos fascistoides islâmicos e
bantos, ou ainda menos pela crise institucional vivida a sul e que gerou o
golpe de estado em 22 de Março de 2012. Estas não são causas, factores geradores
da actual situação, mas sim consequências, factores gerados pelo problema
principal. E o problema principal não á apenas o ajustamento estrutural, o FMI
e o Banco Mundial. Essas são, também, consequências e não causas.
E por muitas voltas
que alguns sectores malianos queiram dar ao assunto e atirar as culpas ao
neoliberalismo e às prácticas neoliberais encetadas pelas elites dirigentes do
Mali nos anos oitenta, nunca conseguirão sair do círculo vicioso da crise,
enquanto não assumirem a realidade e não identificarem a raiz do problema.
O cerne da questão
foi ignorado pelo movimento de libertação nacional e nisto o Mali não é caso
único, mas apenas o caso normal do continente africano (e também na Ásia). Ao
ignorarem o problema fundamental, os movimentos de libertação, que
transportaram para o seu seio todas as contradições do mundo que os rodeava,
adiaram a resolução das contradições e não as resolveram. E ao não resolverem
as contradições foram resolvidos por elas.
O cerne da questão
é o capitalismo. E essa envolvente é de difícil contorno para os países
periféricos que resolveram romper com o colonialismo. Muitos deles (o caso do
Mali, também) tentaram inicialmente “as vias do desenvolvimento não
capitalista” e assumiram um discurso (umas vezes vago, ás vezes inflamado e
noutras incoerente) socialista e uma práctica conducente, que sofria dos mesmos
problemas do discurso. Como as contradições internas nunca foram resolvidas e
em determinado momento do percurso, os elementos vivos da contradição
tornaram-se pantanosos (porque minados pelo neocolonialismo) as independências
resultaram em meros factores históricos de acumulação de capital, mesmo que (e
principalmente nesses casos) o discurso e a praxis do Estado fossem
socialistas.
O neoliberalismo na
periferia africana (uma periferia periférica a outras periferias) não é mais do
que o resultado lógico a que os processos de independência chegaram na década
de oitenta. E o Mali é um exemplo típico desse processo. Por não resolver as
contradições internas, todas as políticas de desenvolvimento tentadas,
frustraram-se no lamaçal do subdesenvolvimento, até chegarem ao ponto de
ruptura com a situação anterior, que representou o assumir do neoliberalismo.
O que aconteceu com
as outras tentativas de desenvolvimento aconteceu também com o neoliberalismo,
no Mali e no resto do continente, E o que se está a passar no Mali não é mais
do que o resultado do falhanço de mais uma tentativa de desenvolvimento. Por
outro lado, dizer que as políticas desta fase neoliberal tiveram fortes
repercussões no empobrecimento, não é verdade. Tiveram as mesmas que as
anteriores, só que com maior impacto, porque as elites dirigentes perderam a
fatia do poder que lhes permitia esconder a realidade.
Por isso a pobreza,
a ausência e/ou incipiência dos sistemas públicos de saúde e de educação, de
politicas de habitação e urbanismo, aparecem agora tão evidentes. Mas o neoliberalismo
não as causou ou agravou. A pobreza, herança do colonialismo, é a mesma, hoje
como ontem. Pode ter sido colmatada, pelas independências, mas nunca resolvida.
Os sectores públicos não foram destruídos, pela simples razão de que nunca
existiram, ou quando existiam não funcionavam, ou mal se faziam sentir, para
além dos limites dos principais centros administrativos.
A única realização
do neoliberalismo no Mali foi a formação de uma nova elite económica, que
chegou ao momento de necessitar de transformar-se em elite política e que disputa
o poder com a anterior elite, responsável pelo período de acumulação de
capital. Nada mais. A decomposição do processo neoliberal gerou o resto, que já
vinha de trás e que deixou de estar comprimido na imensa panela de pressão
criada pelas políticas de acumulação da fase pós-independência: a rebelião
tuaregue, o desemprego, a fome, a miséria e a ausência de alternativas
conducentes a uma vida melhor.
Os factores
externos, aliados á decomposição interna geraram o resto: a Al Qaeda, os bandos
fascistoides, o aproveitamento do neocolonialismo francês, a inserção falhada
na economia global, a crise sistémica global, o deslocamento dos centros
financeiros, o movimento das periferias, etc.. E todos estes factores externos
e internos entrecruzaram-se em 2011-2012, com as greves, as marchas de protesto
contra o custo de vida, a precariedade, o desemprego, o referendo
constitucional, as questões culturais identitárias, as questões territoriais, a
corrupção e a impunidade.
III - A esquerda
neocolonialista francesa olha para África com a mesma atitude preconceituosa da
direita francesa. A diferença entre a Gauche e a Direita sobre África não está
na atitude perante o continente, que ambas as forças consideram ser o seu pátio
das traseiras (tal como os USA têm o seu pátio na América Central e do Sul, a
França considera ser da sua responsabilidade histórica ter um pátio, também),
mas sim na atitude em relação aos USA.
A Gauche é lambe-botas
por natureza. Hollande olha para Obama com um misto de admiração,
deslumbramento e temor. É uma atitude imbecil, mas é o espelho da Gauche. A
direita divide-se, neste campo. Sarkozy e os seus correligionários abraçam a
bandeira dos USA e deleitam-se nela, não com temor, mas apenas com
contentamento, como qualquer funcionário eficiente perante o patrão
beneplácito. Já os gaullistas duros seguem a preceito as fórmulas do seu “maître”
De Gaulle e assumem uma atitude desconfiada em relação aos seus aliados
norte-americanos (e estes consideram-nos comedores de batatas fritas).
Mas Hollande tem
ainda outro problema. Ele é de uma Gauche que não sabe nada de África, deixando
as suas decisões ao sabor da sua ignorância. É evidente que o dossier do Mali
está entregue a funcionários do Eliseu, absolutamente conhecedores do que estão
a fazer (civis e militares). Mas Hollande, cada vez que abre a boca sobre o
Mali ou sobre África, deixa escapar a sua imbecilidade e resvala para o
absurdo. E neste sentido segue as pisadas de Sarkozy.
IV - África é, para
França (e para o Ocidente e Oriente) um fundo estratégico. E este fundo
estratégico assume maior importância desde que surgiu uma crença, baseada numa
previsão que assume contornos de profecia, nos meios ocidentais e nos meios
africanos: a crença que em 2050 África terá sete vezes a população que tinha em
1950, que eram duzentas e cinquenta milhões de pessoas. Esta previsão
demográfica vale o que vale, como previsão. Se olharmos para a História do
continente, observaremos que nos períodos em que a população atingiu picos
demográficos, uma série de acontecimentos (alterações do curso dos rios, secas
prolongadas, guerras internas, movimentos migratórios que originaram guerras de
conquista, problemas ambientais, epidemias, o colonialismo e o consequente
genocídio do negocio dos escravos) repunham os baixos níveis demográficos.
Sem pretender, de
forma alguma, discutir a validade da previsão e os pressupostos em que tal
previsão se baseia, ressalto, no entanto, que nos meios ocidentais e nos
frenéticos partidários do capitalismo africano (desde os mais racistas
defensores do “black capitalism”, aos primaveris liberalizadores, no norte do
continente, passando pelos “comrades” do ANC, na África do Sul, pelo “African
rainbow” e outros sectores, mais abrangentes em questões raciais, defensores do
afro-capitalismo) esta previsão assumiu o contorno de uma profecia e originou
uma crença. Este sonho neocolonial,
ultrapassa todas as quimeras do colonialismo e todas as mitologias africanas da
época pré-colonial. Para além da extrema riqueza em recursos naturais, para
além de ser um paraíso das matérias-primas, África seria, também, um enorme
mercado consumidor. É só esperar cinquenta anos e zás, vamos ter a Era
Africana, a Grande Quimera do ouro, do uranio, do que quisermos e com toneladas
de consumidores no continente. É o imbondeiro das patacas, o African Dream e o
African Way of Life.
E esperemos que
sim. Mas enquanto a tal questão central não for resolvida, tudo não passará de
uma Utopia das novas elites globais, que se transformará, em África, com o
passar do tempo, em mais um discurso do poder, destinado a alimentar alienadas
almas famintas e que - no ocidente e no oriente - revelar-se-á como mais uma
golpada que permitiu movimentar capitais excedentes e ganhar mais uns pontos no
continente.
O Mali, enquanto
parte do fundo estratégico, continuará subjugado aos interesses neocoloniais e
ao jogo do retraçar de fronteiras, mesmo que, por obra do acaso, os
bem-intencionados críticos malianos do neoliberalismo, tomem as rédeas do país,
acabando por transformar-se em “ François Hollande´s”, quando verificarem que
de boas intenções estão o mundo e a História, carregados.
V - Um dos
argumentos de peso, utilizados pelos neocolonialistas franceses de esquerda,
nesta sua incursão no Mali, foram as mulheres. Quando, um dia, Sarkozy
perguntou a Hollande o que é que o exército francês fazia no Mali (como se ele,
Sarkozy, não soubesse) provocou em Hollande uma reacção indignada (digna do
melhor teatro francês do século XVIIII) que respondeu, exaltado, serem as
mulheres malianas, o motivo. Mulheres vítimas da opressão do uso do véu e que
não se atrevem a saírem de casa.
A resposta pode ter
provocado um grande efeito, mas não se coaduna com a realidade. O véu a que
oprime as malianas (e as africanas, em geral) é o mesmo que oprime os malianos
(e os africanos, em geral). É o véu que os converte em matéria-prima eleitoral,
que os chama ao voto, só para demonstrar como África é democrática e aparecerem
nas televisões ocidentais e orientais, filas enormes de africanos a votar. O
mesmo véu que os afasta de qualquer tipo de participação nas decisões dos seus
países e do continente que os alberga, porque já “participaram”, quando
elegeram os “representantes” e participam de xis em xis anos, para elegerem
mais “representantes”, que os mantêm afastados dos centros de decisão, que não
os querem ouvir, nem ver e muito menos saber das suas opiniões e da sua
participação.
Uma coisa que não
passa pela cabeça de Hollande é a coragem e a capacidade de resistência das
mulheres africanas, dos milhões de mães que travam lutas quotidianas para alimentar
os filhos e dar-lhes a educação que irá, supostamente, permitir que tenham uma
vida melhor que os pais. Dos milhões de cidadãs activas, que no Mali e no resto
do continente, participam arduamente na batalha pelo desenvolvimento, criando
riqueza, para que os seus “representantes” utilizem em seu próprio proveito,
esbanjando e exportando capitais para as metrópoles do Ocidente e do Oriente,
deixando aos povos as migalhas bolorentas.
Hollande não
conhece. Não imagina que por parte das mulheres, o exército francês nunca teria
posto o pé no Mali, ou que quando a bota francesa pisasse o solo maliano, não
seria mais do que uma bota, sem pé. Hollande desconhece que as mulheres de
África não precisam de representação e muito menos de defensores. Basta-lhes a
sua coragem, inteligência e a sua indomável tenacidade.
VI - Opor aos
bandos armados, apenas a solução armada, não é política que vá levar a lado
algum. Ao optar pelo exclusivo da solução militar, o Mali abriu as portas á
corrida armamentista e fechou as janelas á reflexão necessária para solucionar
o problema. Os bandos armados fascistoides islâmicos e ultranacionalistas
actuam onde o Estado não se faz sentir e onde a autonomia cidadã foi amordaçada
pela representatividade. O outro lado da questão é mais trágico. É que a guerra
é uma forma de injectar capital, na moribunda economia maliana.
E essa é a razão
pela qual o governo francês, de forma frenética, tenta quebrar as dúvidas dos
seus parceiros europeus, que até agora apenas cooperaram na formação do
exército do Mali, tentando fazer aprovar pela União Europeia, um vasto programa
de ajuda ao Mali. Numa tentativa desesperada, os franceses pressionam a
partilha do esforço financeiro conjunto europeu, para defesa dos seus
objectivos na região Oeste africana.
Mas a França não
tenta captar apenas capital europeu e traçou um plano de acções prioritárias,
para 2013 e 2014. O ministro francês do Desenvolvimento e o ministro francês
das Relações Exteriores anunciaram um programa de duzentos e quarenta milhões
de euros para financiar o relançamento agrícola e serviços básicos no norte do
Mali. Só que a paz e a reconstrução nacional do Mali, não são apenas assuntos
de ajuda externa e muito menos no Norte do Mali, onde o dinheiro do
narcotráfico circula abertamente, sem que tal facto pareça perturbar as elites
malianas e muito menos os franceses.
VII - A
militarização irá absorver cade vez mais recursos e os franceses farão cada vez
mais projectos e a corrupção será cada vez maior e os problemas irão permanecer,
assim como a divisão do Mali e o problemas dos tuaregues e os bandos armados. O
desemprego será uma constante e a pobreza o pano de fundo.
A solução não é uma
mudança de paradigma, conforme defendem algumas vozes bem-intencionadas da
intelectualidade do Mali. Porque se fosse um problema de paradigmas, haveria
muitos paradigmas para mudar, a começar pela Tradição e a acabar na Economia. A
gravidade da situação exige algo mais realista e sentido pelas populações do
que a questão do paradigma da intelectualidade. Exige uma política baseada no
conhecimento do ferreiro da aldeia, do artesão, do camponês na lavra, do
operário, do professor, da criança que vai á escola e da criança que não tem
meios para ir á escola, do desempregado, do jovem que é tentadoramente
recrutado pelos bandos armados e pelo narcotráfico, por todos aqueles malianos
e malianas que sofrem, sempre que existe uma mudança…de paradigma.
Porque, desde a independência
política os paradigmas foram mudando e a situação piorando. Cada novo sonho
transforma-se num novo pesadelo. E pesadelo, após pesadelo, o fardo tornou-se
insuportável. O neoliberalismo foi uma mudança de paradigma. E no que deu? De início
ia ser tudo rico, todos iam ser proprietários, todos iam fazer negócios, todos
iam ter chorudas contas bancarias. A África Negra iría ser cor-de-rosa, até. E
hoje? Mas e no período anterior ao neoliberalismo, o que aconteceu? A via
não-capitalista, socializante, umas vezes mais, outras vezes menos, consoante
os gostos e os gastos das elites administrativas, levou ao quê? Levou ao
neoliberalismo. Foi um passo lógico.
Atribuir as culpas às
políticas neoliberais é esquecer o passado, que conduziu até aí. E mudar de
paradigma é continuar no mesmo ciclo de expansão-retracção. Quando tudo parece
que vai, para todos, tudo começa a ir só para alguns. E essa é a base de todos
os paradigmas: O tudo para todos. E como não se define o tudo nem o todos, o
principal acaba nas mãos de poucos. É esse o paradigma.
VIII - Se é certo
que a via exclusivamente militar, não é solução, um facto é que ela é parte da
solução. Impõe-se a extinção dos bandos armados, religiosos, políticos,
identitários e do narcotráfico, como passo necessário para a reconstrução. E
essa extinção não passa pelas palavras nem pelas ideias, mas pelas armas. Esse
é um passo indispensável na reconstrução do Mali. O segundo passo é a
restruturação do Estado e a reposição do funcionamento institucional. E essa é
uma questão de fundo, paradigmática, se assim quiserem e se desse tipo de
linguagem gostarem.
É fundamental
porque é nessa fase de restruturação que se colocam as opções do caminho a
seguir. Que Estado? Que funcionamento institucional? Que mecanismos de poder
popular? Quais os instrumentos da autonomia dos cidadãos? Quais as formas de
controlo e de fiscalização da administração central? Que modelos de
administração local?
É nesta fase que se
tornam evidentes as opções e os interesses a elas subjacentes. Se os interesses
forçarem a um Estado blablá, este será sempre limitado pelos interesses e nunca
será suficientemente forte para impor os interesses de Estado. Se as
instituições forem frágeis, os mecanismos institucionais ficam facilmente
absorvidos pela corrupção e pelas negociatas e deixam de funcionar. Se os
mecanismos diversos de poder popular não existirem, a democracia e todo a
arquitectura constitucional fica comprometida e torna-se presa fácil da
burocracia e dos grupos de interesse. E se isso acontecer a soberania popular
fica enfraquecida e com o enfraquecimento da soberania popular, enfraquece a
soberania nacional.
O Mali não precisa
de 15 mil soldados franceses. Fariam falta se não fossem soldados, mas sim
professores, médicos, engenheiros, profissionais que quisessem fazer a sua vida
no Mali, se fossem imigrantes. Assim como os milhares de milhões de euros apregoados
nos programas de reconstrução seria bem-vindos ao Mali se fossem aplicados nos
sectores necessitados, de forma a serem uma plataforma de descolagem, assente
em políticas integradas de desenvolvimento.
E as politicas
integradas de desenvolvimento apenas são possíveis quando Tuaregues, Árabes,
Berberes, Bambaras, Peuls, Songhays, enfim, quando as culturas e as identidades
que povoam o território do Mali, construírem uma abordagem pluridimensional,
que lhes permita a convivência franca e aberta, onde as reivindicações sejam
colocadas na mesa e discutidas em situação de igualdade. E aí começa a
autonomia cidadã, factor indispensável e fonte das liberdades, direitos e
garantias. Segue-se a reapropriação dos recursos e esse é um passo
imprescindível no processo de reconstrução da soberania nacional e popular.
IX - Está o Mali
nessa via? Ainda, mas está a construir, nas reflexões de cada cidadão, uma
alternativa. É que o Mali, ao contrário do que pensa o governo francês e as xenófobas
elites francesas, existe. Existe como povo, que são povos, como Estado e como
nação, que são nações, culturas, homens e mulheres. E tem dignidade, ao
contrário dos cães que lambem as mãos dos donos e dos donos que gostam de ter
as mãos lambidas pelos cães.
Fontes
Sachs, Wolfgang et
Esteva, Gustavo: Des ruines du développememnt. Les Editions Ecosociété 1996
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