Ana Sá Lopes –
Jornal i, opinião
Para Portugal é
urgente a libertação de uns certos demónios
A Igreja Católica
voltou a estar preocupada com o diabo: do exorcismo realizado pelo papa
Francisco na Praça de São Pedro até à contratação urgente de especialistas na
matéria que o cardeal Rouco se propõe fazer em Espanha, a hierarquia católica
dedicou-se furiosamente a esconjurar o demónio nestes últimos 15 dias. Os
agnósticos têm dificuldade em lidar com estas coisas, mas é por vezes difícil
encontrar outra explicação coerente para algumas ocorrências que não provenha
da mão do diabo - ou da sua instalação nos detalhes.
Vejamos a decisão
do governo de realizar uma das mais brutais "reformas" dos últimos
tempos através de portaria - a dos despedimentos na função pública. O ministro
Luís Marques Guedes veio ontem comunicar oficialmente a armadilha diabólica
decidida pelo governo para esconder o debate político e impedir que outros
órgãos de soberania - Presidente da República, Assembleia da República - se
pronunciem sobre uma das mais fracturantes decisões deste governo. O facto de
os despedimentos na função pública, ou do seu "anteprojecto", estarem
a ser discutidos na Concertação Social não é razão aceitável para que entrem em
vigor através de uma portaria. Em qualquer altura, uma reforma deste género
decidida através de portaria seria surreal, mas quando a legitimidade do governo
é, neste momento, meramente formal - a maioria parlamentar em que se sustenta
dá todos os dias sinais de se desmoronar -, avançar com os despedimentos da
função pública através de uma portaria só pode revelar o mais completo e
acabado divórcio entre o governo e os portugueses.
Se o procedimento é
miserável, o acto em si é mais um contributo para a destruição da economia
nacional e a consumação de uma campanha que, desde o início, o governo
desencadeou contra "os funcionários públicos" - assim como contra os
reformados -, equiparando-os a pouco mais do que párias do regime. Bem pode
Vítor Gaspar fazer o exorcismo - repetindo muitas vezes "este é o momento
do crescimento" - quando, a começar nos funcionários públicos despedidos e
nos reformados cujas pensões foram cortadas, não vai haver ninguém para comprar
produtos às empresas que poderão agora recorrer à diminuição do IVA. A economia
não cresce por portaria nem com os discursos de Gaspar contra os críticos da
troika: diz o ministro que qualquer palavra contra "os nossos
credores" é uma palavra contra o país. Para Portugal, é urgente a
libertação de uns certos demónios.
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