Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
O Presidente que
inventou as escutas feitas pelo anterior governo a Belém e que, na sua tomada
de posse, apelou à revolta nacional contra os sacrifícios impostos pelos
sucessivos PEC deixou de se poder apresentar como alguém que tem uma visão
minimalista do seu magistério de influência. Não faz, por isso, sentido dizer
que estamos perante um presidente discreto que está a fazer o seu trabalho na
sombra. Quando quis, quando lhe interessou, Cavaco Silva foi muitíssimo
indiscreto. Até demais.
É, por isso, difícil
defender que a colaboração e apoio que Cavaco Silva dá a este governo resulta
de uma qualquer interpretação das funções do Presidente e de uma solidariedade
institucional a que se sinta obrigado. É uma escolha político-partidária. Que
foi reforçada pelo atestado de subjugação ao governo que assinou no dia em
que Passos Coelho, depois de atacar o Tribunal Constitucional, lhe exigiu,
invertendo assim a hierarquia institucional. E voltou a ser reafirmado quando, no
último 25 de Abril, dedicou a sua intervenção a explicar a inutilidade de
qualquer alternativa a este primeiro-ministro e às suas políticas. Se já
não o fosse antes, Cavaco Silva é hoje uma figura decorativa sem
qualquer função que não seja a da vã tentativa de recuperar da mais baixa
popularidade que algum presidente já conheceu na nossa democracia.
Mesmo assim, o
Presidente continua, como é natural, a fingir que preside. Marcou, por isso, um Conselho
de Estado. A coisa está de tal forma esvaziada pela irrelevância do nosso chefe
de Estado que foi anunciada por um dos comentadores-ex-líderes-do-PSD num
telejornal da SIC. Nunca a função presidencial e o político que a ocupa foram
de tal forma tratados como banalidades: um ato que se espera carregado de
dramatismo e solenidade transforma-se num fait divers que não provoca
qualquer expectativa.
Cavaco Silva
transformou-se num porta-voz confuso e contraditório de um governo em
decomposição. Reserva para si próprio o papel de último garante da
preservação de um governo, e não, como lhe compete segundo a Constituição da
República Portuguesa, de garante do regular funcionamento das instituições. Não
é porta-voz dos portugueses, é porta-voz de uma fação da maioria parlamentar.
Nada do que venha a ser dito no Conselho de Estado muda seja o que for. É de
tal forma irrelevante que foi o ainda mais irrelevante Marques Mendes a
anunciá-lo, com duas semanas de antecedência.
Num momento de
descrédito quase absoluto do Estado, das suas instituições e dos políticos, fazia
falta um Presidente com autoridade política e moral. Que, em atos e palavras,
conseguisse dar aos portugueses a sensação de que, no meio da miséria e da
desgraça, alguma coisa funciona na nossa democracia. Infelizmente, o Presidente
é Cavaco Silva. Não conta. Tem a autoridade formal de ter sido eleito. Mas não
tem a autoridade política que apenas dele dependia.
Podemos achar o que
quisermos de Ramalho Eanes, Mário Soares e Jorge Sampaio. Mas não nos
custará imaginar que, com qualquer um dos três na Presidência, neste momento de
crise social, económica e política (sim, vivemos numa profunda crise política),
o País teria os olhos postos em Belém. Com Cavaco Silva isso não acontece. Dali
não se espera mais do que frases ocas e autoelogios. Por isso, o Conselho
de Estado servirá para Cavaco Silva picar o ponto e dizer que cumpre as suas
funções. Mais nada.
O tema do Conselho
de Estado diz tudo: Portugal pós-troika. Quando se assiste a um clima
insustentável no governo e a uma extraordinária confusão em relação às
medidas que apresenta, o Presidente dedica-se a organizar chás de reflexão
com conselheiros de Estado. Não estou a dizer que o futuro não é importante. É
fundamental. Só que o futuro está, com algumas das decisões tomadas pelo
governo nesta semana, a decidir-se agora. Os cortes estruturais e definitivos
no Estado e as mudanças nas reformas e na administração pública são uma parte
fundamental do que será o País depois da troika. E é agora, e não daqui a uns
anos, que o Presidente deve exercer as suas funções. É sobre as decisões que
estão a ser tomadas agora, e não sobre as que serão tomadas daqui a um ano, que
Cavaco Silva deveria ouvir os portugueses (e, se assim o entendesse, os
conselheiros de Estado).
Percebe-se a
escolha do tema. Foi este o guião da sua desastrosa intervenção no 25 de Abril.
Foi por isto que o Presidente, qual mestre-escola, veio dizer: "depois
não digam que eu não avisei". E para o Presidente o País resume-se a
ele próprio. Ao que disse, ao que avisou, ao que queria dizer, ao que não foi
ouvido do que ele disse. O resto é ruído que desconcentra os portuguesas da
única coisa relevante: as suas próprias palavras.Cavaco Silva dedica-se a
preparar as suas memórias futuras, comporta-se como um Presidente em reforma
antecipada, não como Presidente em exercício.
Como conseguiu um
Presidente, cujo poder de influência dificilmente desgasta, pôr-se nesta
posição irrelevante? Toda a história de Cavaco Silva, em mais de três décadas
de uma carreira política o explicam. O cargo de Presidente depende mais da
inteligência e coragem políticas de quem o exerce do que das suas competências
constitucionais. E o atual Presidente não tem nenhuma delas: a sua vaidade embrutece-o,
a sua cobardia política paralisa-o.
Por tudo isto, o
Conselho de Estado de dia 20 de Maio não será mais do que um ritual mediático e
uma perda de tempo para os conselheiros. Mas, para percebermos a atual
autoridade política deste órgão, bastar-nos-ia recordar que um dos conselheiros
escolhidos por Cavaco Silva, que entretanto se viu obrigado a demitir-se, era
Dias Loureiro. Diz tudo.
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