Mauro Santayana –
Jornal do Brasil, opinião
“A maioria se
revolta contra o sistema econômico neoliberal, a corrupção e a inépcia dos
governantes“
A máscara de Guy
Fawkes, o conspirador católico inglês que queria atear fogo ao Parlamento, no
início do século 17, tem sido usada, por equívoco, pelos manifestantes de
nossos dias. O malogrado rebelde, que, semienforcado e, ainda consciente, teve
sua genitália cortada antes de ser eventrado e suas vísceras fervidas,
para então ser esquartejado, sabia o que desejava. Sob a influência dos
jesuítas, o complô, de que participava, queria uma Inglaterra católica. Seu
mérito pessoal foi o de, sob tortura — que só o rei James I podia, então,
autorizar, e autorizou — proteger, até o limite do sofrimento, os seus
cúmplices. Instrumento de intrigas internacionais de seu tempo, que
envolviam a Espanha e a Áustria — países católicos — e se valiam
de dissidentes ingleses, Fawkes é objeto de chacota em 5 de novembro de
cada ano, quando se celebra a sua desdita em pequeno Carnaval nas ruas de
Londres. Os vencedores escrevem a História, e a Inglaterra é, em sua esmagadora
maioria, protestante até hoje.
E os que, agora, se
manifestam no mundo inteiro? O que pretendem? Aparentemente, se revoltam contra
o sistema econômico neoliberal, a corrupção e a inépcia dos governantes, que se
refletem na desigualdade social. É também dessa forma que se identificam os
manifestantes norte-americanos: a rebelião dos 99% espoliados, contra 1%, que
são os espoliadores.
Há uma razão de
fundo nessa identificação, uma vez que o homem, sendo produtor e consumidor de
bens, é um ser econômico. Mas seria reduzir as dimensões do problema examiná-lo
apenas a partir dos números, relativos ou absolutos. O homem pode ser, como diziam
os gregos, a medida de todas as coisas, mas não pode ser medido por nenhuma
coisa.
Como ser histórico,
é o criador de si mesmo. É, no jogo dialético com a natureza, que ele se fez e
se faz. A sua melhor definição é a de Aristóteles: é um animal político. Foi
político antes mesmo que houvesse a polis: boas ou más, as regras do convívio,
exigidas pela necessidade da sobrevivência, já eram políticas — antes
dessa definição pelo léxico grego.
Em razão disso,
todos os livros da Antiguidade, neles incluídos os sagrados, são, no fundo,
manuais políticos. Tudo é política e, acima de tudo, é política a
presumida negação da política.
Nos atualíssimos
dias o confronto é nítido entre o capital financeiro, que pretende
controlar tudo — mediante as autoridades governamentais, que escolhem
com o financiamento das eleições — e os cidadãos. Autoridade e
cidadão, mesmo nos regimes democráticos mais evoluídos, são categorias que se contrastam.
Os eleitores nomeiam as autoridades, mas o mandato não é, nem pode ser,
imperativo. Imperativas são as circunstâncias que separam o sentimento do
eleitor, no momento do voto, do comportamento de seu mandatário, quando no
Poder Legislativo e no Poder Executivo.
O carisma de alguns
governantes ameniza essa discórdia, justificando o governante diante de seus
prosélitos, em nome, valha a recorrência, do peso ou da ditadura das
circunstâncias.
Não há dúvida de
que passamos por um tempo de desalentadora mediocridade no governo dos estados
nacionais. O carisma de alguns líderes — e este é o caso, entre
outros, do presidente Barack Obama — tem prazo de validade, como
certos alimentos industriais. Em alguns meses, como estamos vendo no caso de
Hollande, na França, o entusiasmo fenece — e é substituído, num
primeiro momento, pela decepção.
Nos sistemas
presidencialistas puros, e onde há o instituto da reeleição, o segundo mandato
não tem a solidez do primeiro. Se o governante não for extremamente hábil,
corre o risco de se transformar em um lame duck, um pato claudicante sobre
os charcos escorregadios.
A renúncia dos
eleitos em assumir sua plena responsabilidade de garantir o bem-estar e a
independência das sociedades nacionais abriram caminho para que o
neoliberalismo corroesse, até os alicerces, a autonomia dos dirigentes
políticos. O início da curva histórica ocorreu a partir do conluio
estabelecido, nos anos 80, entre Reagan, Thatcher e Wojtila, com a cooptação de
Gorbatchev — hoje conhecido em seus detalhes, constrangedores.
“Os legisladores e
governantes foram transmudados em simples marionetes dos donos do capital”
Os legisladores e
governantes foram transmudados em simples marionetes dos donos do capital, que
dominam o mundo. Esses têm, em suas mãos, os maiores bancos, e, mediante eles,
ou diretamente, as maiores empresas transnacionais do mundo. Os bancos e essas
corporações controlam todos os recursos naturais e ditam os rumos da economia
mundial.
Seu domínio vai ao
ponto de provocar a fome de alguns povos, por meio do controle dos
alimentos — da produção dos fertilizantes, do uso da água, da fixação
dos preços, pelo mercado de futuros, a estocagem e a
especulação — dos cultivos até a prateleira dos supermercados. Isso
sem falar nos minerais, do ferro ao nióbio, do urânio a terras raras.
As manifestações
revelam a inadaptação da vida humana aos módulos impostos pela sociedade de
produção e consumo, agravadas pela crise histórica da contemporaneidade. Elas
pedem e anunciam uma nova forma de convívio — mas qual?
Estamos diante de
uma nova fase da rebelião das massas, já examinadas com precisão por Ortega y
Gasset, e Elias Canneti, em “Masse und Macht”, e hoje mobilizáveis
em instantes pelos meios eletrônicos que pretendem controlá-las.
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