Se o campo de
esquerda não apresentar uma utopia, corremos o risco de instabilidade
permanente. Não adianta esperar que, no interior do próprio movimento, saiam
teses propositivas.
J. Carlos de Assis - Carta Maior
Que não se tirem
conclusões irrefletidas das manifestações de jovens na semana passada contra o
aumento de passagens de ônibus em várias capitais. Nem é o começo da revolução,
nem a simples baderna, nem a manipulação por grupos extremistas de uma grande massa
ingênua. É simplesmente o brado inconsequente de uma juventude frustrada pela
falta de perspectiva de vida, indiferente ao prato feito comum de uma liderança
política esgotada em seus slogans de pretensa mobilização que já não traz apelo
algum a ninguém.
As manifestações de rua no Brasil definharão aos poucos, como definharam Occupy
Wall Street nos EUA e os Indignados da Espanha. Diferentemente da Primavera
Árabe, não havia nesses movimentos, como não há no Brasil, o objetivo da
derrubada de uma ditadura. Havia lá, como aqui, uma sensação difusa de ausência
de diretivas políticas que façam vibrar a nação em torno de um projeto de
destino. Isso seria tarefa da esfera política. Mas a esfera política se revela
amorfa e oportunista, centrada em seus próprios interesses corporativos.
O campo de esquerda de nossos partidos políticos perdeu sua identidade interna
e sua identificação com as massas. Falo do campo de esquerda porque, no da
direita, prevalece o conservadorismo que se vale do status quo. Não é um problema
só nosso. É também na Europa. Sacudido pela maior crise econômica da história,
o bloco de esquerda europeu não sabe o que fazer. Basta ver o exemplo da
França: a que veio o socialista François Hollande, a não ser para respaldar a
infame política econômica que a Alemanha impõe ao sul da Europa?
Nossos jovens atuam com a intuição de que a democracia política é um
instrumento de mudança em favor da democracia social. Contudo, não vêem isso na
prática política. O partido que sequestrou a sigla da democracia social foi o
que mais avançou na penetração do neoliberalismo no Brasil. Contra ele, no
discurso, o PT pretendeu oferecer uma alternativa. Contudo Lula, o líder
carismático da abertura política como dirigente sindical, recuou assustado da
possibilidade de promover uma verdadeira democracia social enquanto presidente,
para além do simples assistencialismo.
Qual é a mensagem que o campo de esquerda tem hoje para nossos jovens? Claro
que não é o “tripé meta de inflação, superávit primário e câmbio livre”. Isso
não pode ser o projeto de uma nação. Isso não pode ser uma utopia progressista.
Isso não pode ser uma fantasia mobilizadora da juventude. Ao contrário, ela
quer sobretudo justiça social. Generosos como são, não há jovens que se oponham
à Bolsa Família. Contudo, que destino está reservado para aquela faixa da
sociedade entre o Bolsa Família e um empresariado contemplado com múltiplas
bolsas sob o pretexto de incentivar um investimento que não fazem, e o Estado
abriu mão de fazer?
O que os manifestantes de rua estão fazendo é radicalizar a democracia política
no sentido de uma afirmação inequívoca de demandas de destino ao sistema
político. Seu movimento se esgotará, provavelmente sem resultados práticos
imediatos, mas é uma sinalização clara de outros que virão no futuro por outros
pretextos. Os radicais se aproveitarão deles para se afirmarem, pode haver
confrontos, feridos e até mortes, mas a mensagem essencial prevalecerá:
dêem-nos um destino.
Se o campo de esquerda não apresentar uma utopia, corremos o risco de
instabilidade permanente. Não adianta esperar que, no interior do próprio
movimento, saiam teses propositivas. Isso só acontece enquanto miragem de
esquerdistas vulgares. Alguém, algum partido tem que se apresentar com a
proposta. Lula seria o líder natural, mas não é possível saber se seria capaz
de exercer pela terceira vez, depois da democratização e, em parte, da
presidência, um papel realmente transformador da esfera política, com toda a
carga de inovação do discurso e da ação que isso representa.
Por outro lado, não há muito o que se esperar do campo da direita. Ele vai
muito bem. Temos um Governo que protege a propriedade privada e o lucro, como
convém numa democracia de cidadania ampliada. Mas é bom que a direita se
acostume com a ideia de que os níveis indecentes de concentração de renda
funcional e de propriedade no Brasil não perdurarão eternamente. A democracia
social implicitamente exigida nas ruas diz respeito a um Estado
orçamentariamente forte para garantir os direitos sociais básicos de saúde, de
educação, de previdência, de salário decente, de justo equilíbrio entre
trabalho e capital. Conscientemente ou não, isso continuará sendo exigido nas
ruas, num momento em que, se podemos não saber para onde vai o mundo, podemos
ao menos saber para onde ir.
J. Carlos de Assis é economista, professor de economia internacional da UEPB e
autor, entre outros livros, de “A Razão de Deus” (ed. Civilização Brasileira).
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