Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Tudo jogava contra
a greve geral. O forte desemprego cria ansiedade e medo de
perder o posto de trabalho. As enormes perdas salariais e aumentos de
impostos, no público e no privado, não deixam margem para a perda de um dia de
salário. Nas pequenas empresas, a situação económica difícil que se vive e o risco
de falência toram mais complicada a decisão de fazer uma greve que não tem
como alvo o patrão.
Mesmo na Administração
Pública vive-se o pior momento de sempre. As listas de quem vai para
a mobilidade (ou ser requalificado, para quem tenha ainda mais dificuldade
em prenunciar a palavra "despedimento") já começam a correr. E em
muitas empresas do Estado, sobretudo as que se preparam para processos de privatização
ou "reestruturações" (outro eufemismo para "despedimento"),
os boys do governo há muito espalharam o medo entre os funcionários.
A verdade é que já nem no sector público há qualquer sensação de segurança.
Passos Coelho
reagiu à greve geral como reage a tudo: com frases feitas que acabam por
funcionar contra si. Ao repetir a bolorenta frase de que "o país
precisa de trabalho, não de greves", deu espaço para que todos se
recordassem que, se há alguém que não pode falar do trabalho que o país precisa é precisamente o primeiro-ministro que mais postos de trabalho
destruiu na nossa história recente. E que se prepara, agora na função pública,
para engrossar a enorme massa de desempregados que estão proibidos de
contribuir para o crescimento económico do País. É precisamente porque o País
precisa de trabalho que Passos Coelho está a mais no lugar que ocupa,
responderam, naturalmente, os sindicatos.
Nuno Crato deu
um fortíssimo argumento à CGTP e à UGT. Quis mostrar a sua força com a greve
dos professores e isolá-los. Perdeu. E acabou por ser obrigado a ceder em
toda a linha em vésperas de greve geral. Ou seja, toda a gente percebeu que, ao
contrário da ideia que se gosta de passar, as greves podem mesmo servir
para qualquer coisa. As declarações das três confederações patronais,
dizendo que compreendiam esta greve, também foram a demonstração do total isolamento
de Pedro Passos Coelho.
Claro que a greve
foi, por todas as razões que referi (a que se juntam outras, mais antigas, como
a crescente precarização das relações laborais e a consequente perda de poder dos
sindicatos), muito superior no sector público. E nesse, como se esperava,
foi de enormes dimensões. Apesar do spining manhoso da REN,
tentando medir a adesão à greve pela comparação do consumo de eletricidade com
um feriado em grande parte do País (e não com um dia normal, porque aí a coisa
não seria tão boa para o governo), várias grandes empresas de laboração
contínua (aquelas onde uma interrupção da produção resulta em maiores
prejuízos), como a Autoeuropa e as empresas do seu complexo
industrial (responsável por um décimo das nossas exportações), pararam de
laborar. Adesões superiores a 60% também se verificaram na Central
Termoeléctrica de Sines (EDP), Centralcer, Estaleiros Navais de Viana do
Castelo, Browning, Lisnave, Amarsul, Eurosinas (Sonae), STEF, Portalex,
Unitrato, Renoldy, Visteon, Cobert Telhas, Cerdomus, Sakhit, Tudor, só para
pegar em alguns exemplos do que terá, apesar de todas as dificuldades, sido uma
das maiores greves gerais no sector privado. Sendo certo que as greves são
quase sempre muito fracas no pequeno comércio e serviços, é nas grandes
unidades industriais que os seus efeitos económicos são mais significativos.
Resumindo: a
greve foi enorme no sector público (como se esperava, muito superior ao
privado) mas esteve longe de ser uma greve da Função Pública. Segundo a UGT, a
greve terá mobilizado mais de metade dos trabalhadores no ativo (em números
globais de greve geral não me meto, porque são muito mais do que falíveis, mas
foi seguramente superior às duas greves conjuntas anteriores). Isto, apesar de nunca
ter sido, no privado e no público, necessária tanta coragem para fazer uma
greve.
Disse o ministro
Marques Guedes que respeita muito quem foi trabalhar. Eu respeito, obviamente,
a escolha de todos. Apesar de imaginar que não lhes há de ter sido agradável
ser comparados ao governo ("estão a trabalhar como o governo também
está", disse o ministro da Presidência). Mas hoje fica aqui o meu
respeito para os que, com todos os sacrifícios que estão a viver, com o risco
real do desemprego (ou da "requalificação"), perderam um dia de
salário e aborreceram os seus patrões e chefes, não indo trabalhar. O País
precisa de trabalho, claro está. Mas precisa ainda mais de gente com coragem.
Ficou ontem claro que, apesar do discurso das inevitabilidades e do medo, que
apelam ao silêncio e à resignação, ainda há muita gente dessa por cá. Resta,
por isso, alguma esperança.
PS: Sobre o
"não episódio" que envolveu umas poucas dezenas de pessoas nos
acessos à Ponte 25 de Abril e que não teve qualquer relevância na greve de
ontem, que envolveu centenas de milhares de pessoas, nem perderei tempo.
Concorde-se ou discorde-se dela, a greve tem e terá efeitos e leituras
políticas (a que voltarei na edição impressa do Expresso). O "não
acontecimento" que abriu todos telejornais não sobreviverá na memória de
ninguém mais do que umas horas. Deixo, por isso, para as televisões e seus
jornalistas a nobre tarefa de hierarquizar as notícias de pernas para o ar,
tendo como único critério o que possa dar umas boas imagens de ação (e nem isso
deu).
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