Rui Miguel Tovar –
Jornal i - ontem
Nevoeiro de manhã,
futebol à tarde, destruição à noite. A cidade maravilhosa está mais para lá do
que para cá
Cidade maravilhosa,
cheia de encantos mil, cidade maravilhosa, coração do meu Brasil. O disco está
riscado. A cidade não é mais maravilhosa, os encantos desapareceram e o coração
está destroçado. É o Brasil em crescente contestação desde a primeira
manifestação em São Paulo há semana e meia. O motivo da saída em massa às ruas
é a subida do preço do bilhete de autocarro, variável de Estado para Estado,
mas isso é só um pretexto. O povo está cansado do poder sistematicamente
corrupto e está indignado com as incoerências políticas (Mensalão é só o
exemplo mais gritante da imunidade dos governadores e senadores) e de gestão (o
gasto absurdo nas infra-estruturas para o Mundial-2014).
Futebolisticamente
falando, a Taça das Confederações começa dia 15, sábado, em Brasília. Na
bancada VIP, Dilma Rousseff vai ler um texto mas qual quê. Os adeptos
assobiam-na continuamente e não a deixam falar nem um segundo. No dia seguinte,
a presidente convoca a cúpula para uma reunião de emergência e ainda pede a
ajuda do ex-presidente Lula. Para quê? A simples presença de Lula provoca uma
onda de descontentamento popular. Os manifestantes não só aumentam em número
como as cidades descontentes multiplicam-se. Já não é só Brasília, São Paulo,
Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre e Salvador. As pequenas cidades
também se insurgem, como Palmas em Tocantis, com 150 mil protestantes.
O Rio amanhece com
nevoeiro e o aeroporto Santos Dumont está encerrado porque não tem (ainda) um
aparelho que permita comunicar com os aviões para levantar voo e aterrar nessas
condições (o mesmo acontece em Porto Alegre). As pessoas transformam-se e
agitam-se, estão fartas de falharem compromissos por culpa governamental,
fartas de serem transferidas para o outro aeroporto do Rio (Galeão), fartas de
chegarem tarde a casa, fartas da ineficácia, ponto. Mesmo quando o nevoeiro dá
tréguas e o aeroporto recomeça a trabalhar como sempre, já não há ninguém
indiferente, todos partem para cima dos balcões. Pergunta frequente: porque não
compram a merda de um aparelho em vez de gastarem nos estádios? À falta de
respostas, voam acusações sobre saúde, educação, o habitual.
A viagem de táxi
para o Maracanã é rápida e tranquila. É dia de Espanha-Taiti, com 65 mil
espectadores, mas ninguém diria. O trânsito flui sem problema, os peões nem se
fazem notar, é uma placidez total. Duas horas (e dez golos) depois, o ambiente
está totalmente alterado. Aliás, as pessoas estão alteradas. Há manifestantes
pela paz, totalmente embrulhados em bandeiras do Brasil (a pedido do
apresentador Jô Soares), há outros mais turbulentos, encapuzados, de rosto
tapado. É vândalo, estão ali para roubar. Os manifestantes pela paz não os
querem ali, mas fazer o quê? A bandeira ainda não tem força para ganhar ao pau
e à pedra. Quando a polícia começa a atirar gás pimenta para aquele mar de
gente que enche a Avenida Getúlio Vargas na Cinelândia (milhão e meio de
protestantes) é um sinal de contagem decrescente para a autodestruição.
O passeio do
Maracanã para o hotel na Lapa é um tormento. As ruas circundantes à Prefeitura,
ponto de encontro para a contestação, estão desertas, sem carros à vista, só o
nosso. De um lado, a polícia (bem) armada em cima de caveirões (carro gigante
blindado). Do outro, manifestantes, a maioria (os pela paz) a dobrar as
esquinas com as duas mãos no ar para sair sem problema, a minoria a dar largas
à sua ira, com ares de "é pau, é pedra, é o fim do caminho". Vai dar
guerra. Os polícias vigiam de longe, só atacam quando estritamente necessário e
não podem estar em todo o lado. O mais importante é dispersar a multidão. A
manifestação foi bonita, sim senhor, mas depois descambou para a violência.
Como sempre, nos últimos 10 dias. No eixo Cinelândia-Rio Branco, às portas da
Lapa, um dos bairros mais famosos do Rio, o cenário é devastador. As ruas estão
cheias de papéis, semáforos destruídos, radares dobrados ao meio, carros de
compras de supermercado no meio das faixas, caixotes do lixo dispersos pelas
vias, tudo a arder, mini-fogueiras em todo o lado. O táxi dribla um, dois,
três, os que vierem, é o Pelé. Há pessoas trancadas dentro de lojas, há lojas
arrombadas e saqueadas, há quiosques de rua virados do avesso, há pessoas a
fazer fila para entrar nos seus hotéis barricados com tábuas de madeira, há
destruidores inatos a fazer pela vida na noite carioca. E nós ali a ver tudo
como se não existíssemos porque ninguém quer saber do próximo e então 'tá-se
bem, mesmo que estejamos à espera do sinal verde num dos poucos semáforos ainda
de pé. O "negócio" é destruição pura e dura. Quem se intrometer, é
bom que seja para fazer o mesmo, senão arrisca-se a ser corrigido. É
desconcertante presenciar aquilo tudo, é desconfortável estar dentro de um
filme de acção, ser actor mesmo que secundário, ou até terciário se é que isso
existe.
A rodoviária,
"a mais fodida do Brasil, no local mais feio do Rio" descreve-nos o
taxista, está tomada pelos manifestantes mais radicais e sem cabeça. Os
passageiros estão todos fechados no Bob's, casa de hamburgueres. A polícia vai
até lá e liberta-os de todo aquele medo. Na Lapa, o caso é ligeiramente
diferente, mais calmo. A zona está cercada por agentes em todas as esquinas,
atrás dos seus carros-patrulha. O regresso ao hotel é libertador. Nevoeiro de
manhã, futebol à tarde, destruição à noite, o Rio não está assim tão
maravilhoso.
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