Revolta dos jovens
turcos foi resposta à privatização de Istambul. Levante revela emergência das
lutas pelo Comum urbano e ambiental
Bernardo Gutierrez
- Tradução: Bruna Bernacchio - Imagens: Jamie
Bowlby-Whiting – Outras Palavras
Taksim é nosso,
Istambul é nossa!”. Os gritos não pertencem a algum dos jovens que ocuparam o
Parque Taksim Gezi, da capital turca, na virada do mês. Tampouco é um mote que
esteja correndo o mundo no Twitter, sob a tag #OccupyGezi.
“Taksim é nosso” está sendo pronunciado por um cidadão anônimo no vídeo Tkasim
Square (Istambul Commons), durante uma manifestação celebrada no outono
passado. “Taksim é nosso” – continua a voz no megafone – “não importa as opções
políticas que tenham as pessoas”.
O vídeo foi
produzido no âmbito do projeto Mapeando o
Comum [Mapping the Commons], idealizado pelo estúdio sevilhano Hacktitetura e desenvolvido pelo
ativista Pablo de Soto, em Atenas
e Istambul. E contextualiza com perfeição a vertiginosa insurreição que está
vivendo Istambul e toda a Turquia. O centro comercial planejado pelo governo de
Recep Tayyip Erdogan, que incendiou #OccupyGezi, é apenas a ponta de um iceberg
maior: um duro plano neoliberal para privatizar bens comuns (águas, bosques) e
espaço público. Até que ponto o ataque ao comu, e concretamente a privatização
dos espaços urbanos deflagraram a Primavera Turca?
O projeto Mapeando
o Comum — definido por seus próprios autores como uma performance que pode
tornar-se reflexão, uma obra de arte ou uma ação social — é um verdadeiro
passeio pelas raízes de #OccupyGezi. A cartografia, realizada na plataforma Meipi, organiza o comu de Istambul
em quatro categorias: bens naturais, cultura, espaço público e digital. Os
vídeos publicados, todos com falas parcialmente em inglês, resumem os ataques
que o o espaço público sofre na era Erdogan.
“Communication
space”, por exemplo, revela, por meio dos protestos dos estudantes
universitários, a luta pelo conhecimento e comunicação livres. Em “Water
as a commons”, o assunto central é a privatização da gestão da água na
região. “For-rest”
denuncia que a terceira ponte sobre o estreito de Bósforo, que o governo de
Erdogan planeja, implicaria na desaparecimento do bosque Belgrado, pulmão verde
da cidade. A repressão no espaço público de manifestações sócio-culturais como
festas nas ruas ou o fim da única praça de pedestres (Galata Square) de
Istambul são tema os vídeos Cultural
expressions in public space e o Galata
Tower Square.
Até que ponto a
privatização selvagem dos bens comuns naturais e urbanos de Istambul incendiou
a revolta de #OccupyGezi? O ativista Pablo de Soto, em declarações ao jornal
espanhol El Diario, sustenta que os fatos estão intrinsecamente relacionados:
“O corte das árvores para construir um centro comercial para a elite e os
turistas foi o pavio de incêndio, o catalizador final dos protestos por justiça
social e econômica”.
A arquiteta turca
Pelin Tan, em seu artigo Um
relato de Gezi Park reforma a tese: “Para o governo turco, as novas
políticas urbanas são a desculpa para atos de segragação, para incentivar
estilos de vida neoliberais, o progressivo endividamento dos seus cidadãos,
exploração, racismo, corrupção, e a instalação de um estado de exceção que
viola os direitos humanos”. Por sua vez, a prestigiosa plataforma Architizer
também situa os bens comuns urbanos como claro estopim da revolta.
#OccupyGezi é muito
mais que um grito ecologista para salvar os árvores de Taksim. Mas não
exclusivamente é apenas uma revolta antagonista contra a arrogância
macropolítica do governo turco ou a suposta tentativa de islamização da Turquia
que, segundo a imprensa ocidental, Erdogan conduz.
Em A Catedral e o Bazar,
o hacker Eric S. Raymond contrapunha dois modelos na elaboração de software. A
Catedral representa o modelo de desenvolvimento hermético e vertical do
software proprietário. O bazar, com sua dinâmica horizontal e barulhenta,
representaria a Linux e outros projetos de software livre, baseados no trabalho
comunitário. Nenhum lugar como Istambul, com seu barulhento Gran Bazar, encarna
melhor a metáfora urbana da tese de Raymond. De um lado, a catedral de receitas
top down e privatizantes, do Governo de Erdogan. Do outro, o grande bazar
humano de Istambul, seu espaço público, a tradição comunal das comunidades da
cidade. #OccupyGezi e sua convivência humana resumem o choque de trens da
história, entre dois modelos incompatíveis.
Derya Calik,
estudante e ativista, descreve em uma
entrevista a estratégia da catedral neoliberal contra os manifestantes de
Taksim. “Na Turquia, não temos uma boa conexão 3G. Quando muito usada, a rede
entra em colapso. Além disso, muitas pessoas foram informadas do uso de inibidores
de sinal, por parte da polícia. Por isso, começamos a utilizar uma conexão VPN
(Rede Virtual Privada). E, além disso, as lojas, restaurantes, hotéis e os
residentes da zona cederam Wi-Fi aos manifestantes, abrindo as senhas de suas
redes”. O bazar colaborativo de Istambul, no momento, driblou a aprisionadora
catedral de Erdogan.
É possível fazer
alguma comparação entre #OccupyGezzi e a acampada da Porta do Sol de Madri do
15M ou do Occupy Wall Street em Zuccotti? Pelin Tan, no texto já citado,
destaca que “a ocupação de Gezi é um símbolo de estar juntos no comum (a
arquiteta emprega a quase intraduzível palavra commoning), apesar de nossas
diferenças”. Em #OccupyGezi, continua ela, envolveu-se “gente de diferentes
classes, bairros e movimentos culturais — mais que organizações políticas e
grupos de oposição”. Uma auto-organização transversal do bazar colaborativo,
que a violência policial multiplicou até limites não esperados. Da praça ao
mundo. Do hiperlocal à geopolítica.
Já o ativista Orsan
Selap, habitual nas listas de correios de TakeTheSquare.net criadas no início
do 15M espanhol, ressalta a El Diario a importância das redes na incipiente
Primavera Turca: “O pensamento peer-to-peer (P2P) e em favor do comum nos dá
uma alternativa clara ao capitalismo. Nesses momentos, nas redes sociais, as
ruas e as lutas de Istambul estão convertendo-se em algo com muitos vínculos
internacionais”.
De Taksim ao mundo.
Do hiperlocal ao global. Do urbano à geopolítica. Em seu aclamado livro Cidades
rebeldes, o sociólogo David Harvey afirma que a “revolução será urbana ou não
será”. E adapta ao século XXI “o direito à cidade”, um velho grito dos anos
sessenta, título de um mítico livro de Henry Lefebvre. O direito à cidade seria
um “espaço social com interações e práticas onde a produção social tem lugar”.
A metrópole moderna
tem um papel importante na produção do comum. Curiosamente, os movimentos
sociais de Istambul estão remesclando o grito de Lefebvre-Harvey. No texto “O
movimento pelo Direito à Cidade e o verão turco”, a jornalista independente
Jay Cassano faz um detalhado repasse dos ataques neoliberais que Istambul está
sofrendo nos últimos tempos, além do projeto de centro comercial para Gezi
Taksim.
Jay cita em seu
artigo a conversão do histórico cine
Emek em shopping center. Menciona a terceira ponte sobre o Bósforo. E
destaca o forte processo de segragação que Istambul está sofrendo,
especialmente nos “bairros históricos de Sulukule, Tarlabasi, Tophane e
Fener-Balat, onde vivem os imigrantes e a minoria curda”. Precisamente,
Mapeando os Comuns dedica um vídeo ao distrito de Fenet-Balat-Ayvansaray,
onde os vizinhos resistem ao plano urbanístico do Ajuntamento pela Associação Febayder.
O coletivo Reclaim Istambul, inspirado no coletivo
britânico Reclaim
the streets, que lutava pelo espaço público, faz uma verdadeira lista
dos horrores urbanísticos planejados para a capital turca: “Centenas de
edifícios gradeados, torres de escritórios, centros comerciais e projetos
multiusos crescendo como flechas em toda a cidade”. Entre a penca de projetos
de corte neoliberal, destacam Via Port Venezia (“redesenhamos Veneza e a
trouxemos a Istambul”) ou Mall of Istambul (“aproveite de perto de um dos
maiores shoppings da Turquia”). Em certo sentido, #OccupyGezi nasceu como grito
coletivo para evitar que a milenária Istambul acabe se convertendo em Las Vegas
ou Dubai.
O Reclaim Istambul
é responsável por um dos documentários mais polêmicos dos últimos tempo, Ekümenópolis. Com um verdadeiro
coquetel de imagens, entrevistas, músicas, gráficos e animações, Ekümenópolis
desenha o selvagem ataque ao comum urbano e natural que sofre a cidade. A
contundência de sua sinopse dá uma ideia da dureza de seu conteúdo: “Há alguns
anos, Istambul tinha 3,5 milhões de habitantes. Hoje somos 15 milhões e em 15
anos seremos 23. Foram ultrapassados os limites ecológicos e de população.
Perdeu-se a coesão social. Aqui surgiu uma imagem do urbanismo neoliberal:
Ekümenópolis”.
“É mais que uma
revolução tecnológica: é uma revolução cultural. Os rígidos modelos verticais
para intensificar os sistemas de produção de massa do século passado estão
sendo substituídos por flexíveis redes peer-to-peer, que nos levam até uma nova
estética de códigos”. A frase é do arquiteto Joseph Grima, diretor da última
edição da Bienal de Desenho de Istambul, celebrada ao final de 2012. Adhocracy,
o título da Bienal, não foi casual. A adocracia, outro termo
recentemente ressuscitado, é um novo modelo de organização flexível, intuitiva,
transversal. A adocracia é horizontal, rotativa. Por isso, Adhocracy foi muito
mais que uma exposição. Foi um laboratório.
Uma de suas
comissárias, Ethel Baraona (dPr-Barcelona),
respondendo a um questionário sobre #OccupyGezi, destaca o vínculo da Bienal
com o comum urbano: “Uma grande parte dos projetos estava relacionada com o
ativismo urbano, com a intenção de chamar a atenção do espaço público como
espaço de intercâmbio de conhecimentos e de ação”. A Bienal adocrata espalhou
por Istambul o dinamismo de coletivos-projetos como Crafting
Neigborhoods, Recetas
Urbanas, Open Structures, Maker Faire Africa, Arduino ou Zuloark
(representando o madrilenho El Campo de
Cebada).
Especialmente
metafórico foi o projeto Drone
Shade, da artista James Bridle.
Depois de polvilhar de sombras de “drones” (aviões não tripulados) a Faixa de
Gaza ou Londres, James desenhou com linhas brancas, no coração urbano de
Istambul, a suposta sombra dos drones que os Estados Unidos utilizam
da Turquia. O espaço público como tabuleiro do mundo. Como metáfora
geopolítica. A metralhadora top down e neoliberal de Erdogan, representada em
uma forma de contornos brancos. A aliança militar estadounidense-turca, que
persegue o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) no norte da Turquia e
no norte do Irã, como uma verdade ao rés do chão. A cidade como campo de
batalha.
Será #OccupyGezi é
a primeira revolução incendiada pelo comum urbano? Talvez a primeira, mas não a
última. O modelo da catedral neoliberal de Istambul replica-se em todo o mundo.
Os desalojamentos e a especulação imobiliária no Rio de Janeiro pré-olímpico
são um exemplo. O projeto EuroVegas de Madri, como destaca Pablo de Soto, “é um
escândalo de privatização e exceção da legalidade com mesmo grau destrutivo do
parque Gezi em Taksim”.
Chegou a era das
Cidades Rebeldes de David Harvey? Veremos uma sequência de revoluções urbanas
em um planeta que esgota seus recursos naturais a um ritmo assustador? Ainda
que não haja respostas, existem intuições. O antropólogo e ativista do 15M
Adolfo Estalella, em seu provocador texto El
procomún no es un commons vaticina uma forte politização dos núcleos
urbanos: “O pró-comum é a figura que permite politizar a cidade. Se há dez anos
a globalização era o objetivo de ativismo, agora é a cidade. Por isso, o comum
é, para o ativismo atual o que a globalização era para este há dez anos”.
*Bernardo Gutierrez
(@bernardosampa) é jornalista, escritor e consultor digital. Pesquisa o mundo
P2P e as novas realidades da cultura open source. Fundador da rede de inovação
Futura Media.net.
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