Jesús Blasco de
Avellaneda/Periodismo Humano - Nador (Marrocos) – Opera Mundi
Histórias de
espancamento e assassinatos de africanos se proliferam a cada ano na fronteira
entre o continente e a Espanha
A história de
Gastón poderia, à primeira vista, parecer uma dessas milhares de histórias que
a cada ano – desde que em 2005 as Forças Auxiliares Marroquinas se
transformaram oficialmente nos vigilantes da fronteira sul da Europa e muitas
vezes nos policiais do descumprimento sistemático dos convênios internacionais
e dos direitos humanos – acontecem entre as cercas que separam Melilla e Ceuta.
Um imigrante
subsaariano tenta entrar na Espanha superando a barreira metálica tripla de
mais de 6 metros de altura, e segundo testemunhas, os Alis (nome coloquial pelo
qual esse corpo paramilitar, que se presume “os olhos e os ouvidos do sistema
marroquino”, é conhecido) respondem com um uso de força desmedida, causando ao
agredido feridas graves que não lhe permitam uma nova tentativa de pular – ou
ao menos lhe façam pensar melhor antes de fazer isso – e que sirvam como medida
dissuasiva para o resto de seus companheiros de acampamento.
Mas não é exatamente assim. O caso de Gastón tem muitos novos matizes que
permitem ver um recrudescimento das atuações policiais na fronteira terrestre
sul da União Europeia e de algumas diretrizes políticas em relação aos
imigrantes em Marrocos mais desumanas, que se manifestam de maneira diretamente
proporcional à implicação e a conscientização da população e da sociedade civil
para com este coletivo cada vez mais vulnerável e numeroso.
Ele despertou da
anestesia geral e ver tanta gente ao redor de sua cama é um pouco inquietante.
Além disso, ele se queixa que seu quarto – o número 209 da Policlínica Al Wahda
(A União) de Nador – está quase o dia todo no escuro e ele sente muito frio.
Ele ainda não pode comer nada sólido e apenas toma um pouco de suco com muita
dificuldade. “O pobre homem não pode engolir bem. Devem ter feito algum dano à
garganta durante a intubação”, informa aos presentes Mónica, coordenadora da
assistência sanitária da Delegação de Migrações
em Nador, organização a cargo dos coletivos migrantes da região oriental de
Marrocos desde a saída dos Médicos Sem Fronteiras do país.
É ainda difícil mover bem as pernas e ele continua com os dois braços
engessados, mas está com a cara boa e “parece um novo homem: é realmente um
milagre”, assegura entre lágrimas Juliana, ativista voluntária que o recolheu
quando estava moribundo e jogado na rua.
Gastón, camaronês
de 30 anos da etnia bamileké, estava há apenas três semanas nos acampamentos de
Gurugú quando na tarde-noite do dia 15 de maio decidiu, junto a outros dozes
companheiros, tentar pela primeira vez chegar a Melilla ultrapassando a cerca fronteiriça. Quando
estavam a apenas poucos metros da cerca de ferro, foram surpreendidos por
oficiais Forças Auxiliares marroquinas que os encurralaram e começaram a
atacá-los com pedras e bastões.
Não é sempre bom
ser o mais forte, e menos ainda nesta ocasião: a corpulência de Gastón fez com
que ele fosse liderando o grupo, motivo pelo qual estava em pior posição para
escapar correndo, e “sempre vão primeiro atrás dos maiores, são como troféus de
caça para eles”, comenta Adil, presidente da Associação de Direitos Humanos de
Nador.
Segundo testemunhas, os Alis conseguiram “caçar” dois deles e começaram a
aplicar neles uma surra brutal. Mas o companheiro de Gastón mostrou duas notas
de 50 dirhams (pouco mais de nove euros) e ao entregar o dinheiro aos seus
agressores, eles o deixaram escapar com vários golpes e um braço avariado.
Gastón então pediu a eles que parassem e lhes deu tudo o que tinha nos bolsos:
uma moeda de 10 dirhams (não chega a 1 euro ). A cifra não foi suficiente para
os oficiais, um total de oito, que o golpearam até que ele estivesse meio
morto. Então, o levaram até o monte Gurugú e de lá o jogaram. “Se tivesse algo
de dinheiro não tinham me batido tanto. Devem ter pensando que eu não estava
querendo dar tudo o que tinha ou que estava fazendo graça deles ao lhes dar tão
pouca quantidade. Então me bateram mais e mais. Me acertaram com pedras,
cassetetes, me deram chutes e socos cada vez mais fortes”, entende-se do que
ele diz entredentes, enquanto mantém o rosto hierático, quase sem poder se
mover ou gesticular.
No dia seguinte à surra, uma equipe da Delegação de Migrações de Nador subia ao
monte para atender aos imigrantes que se refugiam ali em diversos acampamentos
quando foi alertada por alguns vizinhos da região que tinham visto um homem
envolto em sangue e jogado na lateral de uma das calçadas.
Rapidamente ele foi levado para o hospital provincial Hassani onde foi
recebido, mas não foi atendido até o dia seguinte. “Não sabemos por que não
quiseram examiná-lo nem lhe dar calmantes. Só depois de quase 24 horas, quando
as queixas de várias pessoas que estavam no quarto dele (são salas comuns que
atendem entre 8 e 12 doentes) obrigaram aos médicos a lhe atenderem
devidamente, já que sofria de dores tremendas”, relata Juliana.
Os exames
confirmaram o pior: ele tinha fortes traumatismos na cabeça e nas pernas, ambos
os braços quebrados em várias partes e a mandíbula apresentava duas fraturas
sérias e um deslocamento.
Os dias iam passando, os ossos começaram a se religar em falso e o hospital
público, que havia incitado os ativistas e voluntários a comprarem o material
cirúrgico, lavava as mãos e assegurava que não podia operar o jovem camaronês
com garantias.
A Delegação de Migrações não pensou duas vezes e com a maior rapidez o
transferiu para uma policlínica privada no último dia 4 de junho, que decidiu
preparar uma equipe médica e operá-lo com urgência. Na madrugada de 5 a 6
de junho, ele chegava ao quarto com os braços e a mandíbula em seus lugares e
duas placas de titânio no rosto que vão acompanhá-lo por alguns anos. “Ficou
muito bom. Ele está chateado, mas satisfeito. É um garoto muito bom e muito
inteligente. É verdadeiramente forte e esperto”, assegura Mónica.
E, 10 de junho, ele saiu da clínica privada e vai ser novamente transferido ao
hospital estadual de Nador para concluir ali seu período de repouso e
observação. A operação e o tratamento custaram mais de 20 mil dirhams (uns 2
mil euros) que foram arrecadados graças à generosidade de algumas organizações
e indivíduos de Melilla. Um gesto altruísta e comovedor que serve para dar uma
nova oportunidade a um homem cujo único delito foi abandonar seus pais e irmãos
em Camarões para empreender uma viagem à Europa, buscando formar uma família e
dar aos sobrinhos e futuros filhos uma vida melhor do que a que levava na
África.
Não é um caso isolado
O trágico e brutal incidente de Gastón não é um caso isolado. Dois dias antes da surra, vários grupos de subsaarianos tentavam entrar em Melilla pela cerca fronteiriça. Cerca de 70 jovens conseguiram chegar ao solo espanhol, mas os outros não tiveram a mesma sorte. A noite terminou com 54 agredidos, detidos e expulsos para Argélia; pelo menos quatro imigrantes deram entrada no hospital Hassani de Nador em estado grave; 30 deles precisaram de assistência médica nos dias posteriores por fraturas e fortes contusões; e pelo menos um foi encontrado sem vida abandonando nos bosques próximos a Nador.
Um dos feridos
dessa noite foi Yahya, um jovem guineano que conseguiu escapar das garras dos
Alis com tão má sorte que, já longe, foi alcançado por uma pedra no olho
direito quando girava a cabeça para ver se eles vinham atrás.
Ele teve que ser internado e esteve a ponto de perder o olho, mas finalmente se
recupera no hospital Hassani e logo poderá voltar a estar com seus
companheiros. “É um garoto estupendo, atento, divertido, educado. Ainda está se
recuperando, mas é uma sorte tenha podido conservar a visão”, assegura Adil.
“Todos os dias temos de velar para que atendam no hospital Hassani de Nador a
dois, três, cinco feridos com graves contusões na cabeça, nos braços, nas
pernas e muitas vezes com fraturas e deslocamento de ossos. É algo contínuo.
Eles tentam entrar em Melilla quase diariamente e as surras acontecem também
quase todos os dias”, conta Ibrahim, um dos trabalhadores da Delegação de
Migrações em Nador.
Os subsaarianos que
permanecem escondidos nos bosques do monte Gurugú e região asseguram que a
presença da polícia marroquina e das Forças Auxiliares nas estradas de acesso é
permanente e que os ataques e incursões aos acampamentos são quase diários,
chegando inclusive a queimar os acampamentos como na metade do último mês de
maio.
Abderrahman: “Nos espancaram até a morte”
Mas, se há uma situação parecida a de Gastón, sem dúvida é a que sofreu em sua própria carne Abderrahman. O jovem malinês de 25 anos foi encontrado no dia 3 de setembro de 2012 se arrastando pelo chão perto da subida para o monte Gurugú – com a cabeça aberta, o rosto cheio de sangue, os braços completamente cheios de cortes e contusões, e as pernas quebradas. Não podia andar.
Era um verão muito intenso em termos de tentativas de entrada de imigrantes
subsaarianos a Melilla. A União Europeia e o Governo da Espanha pediram uma
colaboração mais intensa da parte de Marrocos. Dito e feito: as Forças
Auxiliares realizaram uma brutal carnificina na madrugada do domingo 2 para a
segunda-feira 3 de setembro, durante a qual feriram centenas de jovens e
deportaram outros tantos, de acordo com declarações de testemunhas.
As pernas de
Abderrahman foram quebradas a golpes. Os vizinhos da área deixaram para ele um
pedaço de pão e umas bebidas por perto, mas não se aproximavam para lhe socorrer.
“Têm medo de que aconteça algo com eles também ou que sejam acusados de
colaborar com a imigração clandestina”, sussurrava.
Foram surpreendidos à noite e muitos não tiveram a oportunidade de escapar.
“Nos espancaram até a morte. Vieram de madrugada e nos bateram até nossos ossos
quebrarem. Muitos foram levados para Oujda, mas outros foram deixados
morrendo nos bosques.”
Até então, os
Médicos Sem Fronteiras (MSF) se encarregavam da assistência aos imigrantes na
região, mas, nessas datas, estavam trabalhando em Rabat, e por isso alguns
ativistas melillenses tiveram que chamar a ambulância para que ele fosse levado
com urgência ao hospital estadual.
Dias depois, o MSF teve de insistir para que ele fosse devidamente atendido e
Abderrahaman levou vários meses para se recuperar. Quando foi agredido, ele
estava somente há algumas semanas em Marrocos e para ele, como para Gastón, era
sua primeira tentativa de entrar em Melilla.
Apesar de tudo, ele não perdeu a esperança de ter uma vida melhor. “Não vamos
deixar de lutar por nosso sonho. Não somos delinquentes, só pobres. Aqui nos
estão matando e não há ninguém que nos defenda. As pessoas no resto do mundo
têm de saber o que fazem conosco.”
* Originalmente publicado no site espanhol Periodismo
Humano
**Com fotos em
Opera Mundi
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