sexta-feira, 12 de julho de 2013

A SAGA AMERICANA – PARTE 2. SNOWDEN




Rui Peralta, Luanda (ler parte anterior)

IX - A decisão de Edward Snowden, consultor da NSA (Agencia de Segurança Nacional) em revelar documentos secretos referentes ao programa de vigilância da Agencia, provocou, nos USA e a nível internacional, um leque variado de reacções. Nos USA os seus detratores consideram-no “um enorme narcisista que merece ser preso” (assim escreveu Jeffrey Toobin, no The New Yorker) e que cometeu “um acto de traição”, conforme expressa a Senadora Democrata Dianne Feinstein, presidente do Senate Intelligence Committee. Para os seus apoiantes, Snowden é um herói, para o qual o Presidente Obama deveria “agradecer-lhe e oferecer-lhe um cargo na Casa Branca, como conselheiro para a tecnologia” conforme defende Soctt McConnell, editor do American Conservative.

Numa entrevista ao The Guardian Snowden afirma: “When you are subverting the power of government, that that’s a fundamentally dangerous thing to democracy.” A attitude tomada por Snowden está inserida numa velha questão que atravessa a História dos USA, que é a questão do dilema Estado versus Democracia Politica, debatido desde os primórdios da Constituição e que acompanha o outro dilema histórico norte-americano, na origem da sua independência, que é a contradição Monopólios versus Democracia Económica (a noção elementar do Free Market, para os norte-americanos do seculos XVIII e XIX, prendia-se á questão da democracia económica). O caso Snowden, embora diga respeito directamente ao primeiro dilema, implica indirectamente o segundo.

Pouco importa saber, conforme apregoam algumas alcachofas do Direito, que o acto de Snowden tem de ser punido, porque existe uma lei federal que criminaliza os funcionários públicos que divulgarem informação considerada confidencial, porque essa não é a questão central. A questão central prende-se com os atropelos á Constituição que o governo dos USA tem realizado constantemente, o que provoca o dever dos cidadãos em denunciarem claras situações de abuso de poder.

O dilema Estado versus Democracia, que refere o respeito a que os governantes e restantes representantes do Povo estão obrigados perante a Soberania Popular é a única que é efectivamente levantada pela atitude de Snowden. Pode o Estado em nome da Segurança Nacional violar os direitos básicos, a privacidade e as liberdades individuais inerentes á cidadania? Pode o Estado, principalmente quando os seus vozeiros ideológicos apregoam a “era da economia da informação” impor restrições á informação dos cidadãos, a sua principal fonte de legitimidade? Sendo a Soberania Popular a única fonte de legitimidade do Estado, como pode este decidir da confidencialidade da informação, lesionando o direito de informação da Soberania Popular?

Estes são os caminhos que o acto de Snowden questiona e que pode ser equacionado da seguinte forma: O Estado de Direito pode sê-lo de duas maneiras opostas. Pode ser um Estado Policial de Direito (o prussiano Estado da Lei, de Bismark, por exemplo), ou um Estado Democrático de Direito, como pretendem ser os USA. No primeiro temos um modelo de Estado, onde o poder judicial não é autónomo, funcionando como um apêndice do executivo e onde o poder legislativo é uma linha de montagem de produção de leis, encomendadas pelo executivo. É o Estado do Policia, onde o polícia de giro anda com o código civil no bolso e onde o juiz é um mero funcionário publico, ligeiramente mais bem pago que os seus restantes colegas da função pública. O segundo é um modelo de Estado que assenta na separação dos três poderes, em que o poder judicial é autónomo, o juiz tem uma ampla margem de independência e os advogados não são apenas funcionários do Ministério Publico. O poder legislativo produz legislação, aprova e fiscaliza, mediante a ordem constitucional instituída e os 3 poderes supervisionam-se e sujeitam-se às decisões da fonte de legitimidade, a Soberania Popular.

A classificação de informação não é um problema técnico decidido por um grupo de iluminados, especialistas em questões de segurança. Classificar informação é um acto de responsabilidade que só pode ser efectuado num restrito número de matérias e de situações, devidamente supervisionado e nunca ultrapassando o medio-prazo (durante um período máximo de cinco anos, após o qual deverá ser publicado).No mesmo sentido devem ser periodicamente revistos e analisados, todos os mecanismos constitucionais que garantam a transparência destes processos e a fiabilidade dos mesmos (e não o contrário. Existe dez vez mais legislação a proteger o segredo de estado do que a quantidade da que protege ou permite a livre informação, em qualquer das actuais legislações, a nível mundial).

A atitude de Edward Snowden vem ainda realçar a discrepância que existe, nesta matéria, entre o poder executivo e o judicial. Nos USA, o Supremo Tribunal não pode classificar informação, sendo esta apenas competência do governo. Que o Supremo Tribunal (órgão máximo do poder judicial) não possa classificar informação, é normal e assim deve ser, mas que o executivo detenha o monopólio da classificação de informação, é que revelador da fraqueza dos mecanismos de controlo democráticos. Além do mais, esta é uma politica de subalternização do poder judicial ao poder executivo (é o que se passa quando o Supremo tribunal, que aplica as normas que impedem os funcionários públicos de referir as matérias classificadas confidenciais, nem sequer é chamado a consultar as mesmas e muito menos a fiscalizá-las) contrária ás normas básicas da institucionalização democrática.

A informação libertada por Snowden revela o atropelamento das liberdades civis por parte do Estado, que utiliza o argumento da segurança nacional para vigiar indiscriminadamente os cidadãos, ferindo de morte a liberdade individual, o direito á privacidade e o direito do cidadão a informar e ser informado. As revelações de Snowden incomodam, não porque ponham em causa a segurança nacional, mas porque revelam um golpe contra a soberania popular, em nome da soberania nacional, numa lógica puramente militarista e totalitária, que fará a substituição do Tio Sam pelo Big Brother.

Alegam os defensores desta política que estas medidas destinam-se a defender a liberdades civis contra o terrorismo. Mas o problema é que o combate ao terrorismo não pode servir de pretexto á limitação de direitos, liberdades e garantias e quando isso acontece estamos a assistir a um acto de terrorismo de estado, violador de todos os princípios democráticos. O terror, os actos terroristas, a luta contra o terrorismo, é actualmente uma forma de domínio sobre os cidadãos, que atemorizados e de forma inconsciente, aceitam todos os atropelos possíveis aos seus direitos e á sua individualidade, feitos em nome da sua segurança.

O maior aliado do totalitarismo que se faz sentir de forma global é o terrorismo. Este não é um novo paradigma. Todos sabemos que as questões de segurança sempre foram pretexto para as restrições de liberdades, para as invasões e agressões externas, para justificação da tortura, golpes de estado, etc. Mas esta logica, puramente militar e policial (a lógica prussiana do Estado da Lei) não tem como função defender seja o que for (nem a soberania nacional, nem os cidadãos e muito menos as liberdades civis ou a democracia), ou combater o terrorismo, a corrupção ou o narcotráfico. A sua única e exclusiva função é a repressão, pura e simples e a supressão da cidadania.

As decisões sobre as políticas de segurança não podem caber aos especialistas. São questões nacionais e que dizem respeito ao todo social. As políticas de segurança apenas são eficazes quando envolvem e implicam a mobilização de todos os segmentos da sociedade, de forma activa e participativa. Caso contrario não é de admirar que em qualquer manhã primaveril tenhamos (em qualquer pais do mundo, de Washington a Pequim e de Nova Deli a Luanda) um, dois, três aviões a embater em prédios, carros armadilhados nas ruas mais utilizadas, bombas nos aeroportos, supermercados e em locais de grande concentração de pessoas, atentados, crimes em serie, assaltos, um número incomensurável de corruptores e corruptos, violadores, pedófilos, enfim toda a multidimensionalidade que pode ser abrangida pela política de segurança.

Porque todos estes factores estão interligados e não podem ser analisados de forma particular. O terrorista passa no aeroporto porque o funcionário dos serviços de estrangeiros é corrupto. O terrorista utiliza a corrupção para financiar as suas actividades, consegue financiar-se por que os narcotraficantes, ou outro tipo de gangues, necessitam de lavar dinheiro, constituindo tudo isto numa teia de ligações e conexões insofismáveis. E o que as revelações de Edward Snowden põe em evidência é o falhanço evidente de um sistema de segurança, de uma política errática, que apenas agrava a situação, dia apos dia, tornando as sociedades em campos de concentração, para albergar 99% dos cidadãos. Assim viverão seguros (os 99%, que não poderão movimentar-se e os 1% que terão o mundo só para eles).               

X - A “caça” a Snowden foi iniciada, oficialmente, no passado dia 21 de Junho, quando o governo dos USA lhe revogou o passaporte. Snowden, que se encontrava em Hong Kong conseguiu viajar, nesse mesmo dia, para Moscovo, onde ficou no aeroporto, por carecer de documentos para viajar, uma vez que os documentos expedidos pelo cônsul do Equador em Londres foram desautorizados pelo presidente Raul Correa, que considerou que o seu cônsul em Londres teria cometido um erro técnico e argumentou que as autorizações de asilo apenas poderiam ser solicitadas em território equatoriano. Na Rússia o Kremlin informou Snowden que estaria disposto a apoiá-lo, desde que deixe de “prejudicar os USA” (como constava na nota oficial do Kremlin). 

Em resposta Snowden retirou o pedido de asilo á Rússia e solicitou vários pedidos de asilo a diferentes países. A maioria dos países utilizou o mesmo argumento do Equador, mas nenhum se mostrou disposto a conceder o salvo-conduto necessário (que pode ser expedido por qualquer uma das embaixadas desses países em Moscovo), para que Snowden possa abandonar a área internacional do aeroporto de Moscovo e possa solicitar o pedido de asilo em território de um desses países (uma dessas embaixadas em Moscovo).

Por sua vez os USA utilizam o longo braço do império (do qual a lei é apenas o cotovelo) passando a mensagem a Snowden e ao resto do mundo que não toleram que o seu sistema de segurança possa ser posto em causa (principalmente pelos seus próprios cidadãos e mais ainda por norte-americanos funcionários públicos). E para reforçar esta mensagem (passado a cidadãos norte-americanos e Estados) relembra, utilizando a máquina de propaganda, o exemplo do soldado Bradley Manning, que se encontra encarcerado, enquanto decorre o julgamento, que poderá decidir a pena de morte, embora o poder judicial norte-americano esteja a fazer orelhas mocas às acusações de Manning, que revelou em varias sessões de julgamento, que foi torturado durante os interrogatórios.
    
Despojar um cidadão da sua cidadania, ou seja, retirar os documentos a uma pessoa, despojando-a do direto de nacionalidade, é uma velha táctica, utilizada por todos os Estados totalitários perante aquilo a que consideram um “acto de dissidência”. O nazismo, para implementar a sua política de extermínio étnico, primeiro privou os judeus alemães do direito de cidadania alemã, convertendo-os em apátridas, para que os pudesse encerrar em guetos, passando-os depois para os campos de concentração e extermínio. Privar os cidadãos da sua cidadania foi o primeiro passo para o Holocausto. Da mesma forma Israel utilizou esta táctica para despojar os palestinianos (e utiliza-a contra os israelitas que põem em causa o sionismo), assim como as ditaduras latino-americanas utilizaram este procedimento para impedir a saída dos respectivos países aos cidadãos e os USA têm uma longa história de represálias para com os seus dissidentes (já nem vale a pena estar a referir as histórias do socialismo real e os impedimento de viajar que ainda hoje pendem em muitas regiões do globo).

Uma das vítimas da “fúria do Império” para com a dissidência interna foi Philip Agee, que desertou da CIA, em 1969 e publicou documentos comprovativos da ingerência dos USA na América Latina e da cumplicidade dos regimes ditatoriais latino-americanos, que serviam fielmente às ordens do dono, atraiçoando e espoliando as suas pátrias. A primeira resposta dos USA foi a revogação do passaporte e inserir o seu nome numa lista de expulsão, divulgada internacionalmente. Agee terminou os seus dias em Cuba. Em 1975, a publicação do seu livro “Dentro da Companhia. Diário da CIA” expôs mais de 250 funcionários, companhias de fachada e agentes da CIA no estrangeiro, para além de centenas de operações clandestinas da CIA.

Mas Agee e outros dissidentes (na CIA e no MI5 britânico) não agiram por serem traidores, comunistas ou agentes infiltrados do KGB (embora os houvesse), nem agentes duplos, nem, tampouco, eram free-lancers. No caso de Agee tudo começou no Uruguai, numas instalações da polícia deste país, em Montevideu, quando escutou uns gemidos provenientes de uma sala contígua. Os gemidos converteram-se em gritos e Agee apercebeu-se que alguém estava a ser torturado. Agee nunca esqueceu esse episódio e sentiu-se culpado, segundo o seu Diário. Daí á decisão de denunciar as operações em que esteve envolvido, directa ou indirectamente e ao que tinha conhecimento, para que a opinião pública tivesse conhecimento, foi um passo rápido de dar.

Também as revelações de Snowden expõem a rede de espionagem informática da NSA, que efectua violações do correio eletrónico, dos serviços de mensagens e redes sociais, as operações realizadas nas comunicações da ONU, em Nova Iorque, as escutas efectuadas á U.E., em Estrasburgo, Bruxelas e diversas embaixadas da U.E. e os ataques cibernéticos contra a China, efectuados pela NSA. Só que - ao contrário do que aconteceu com Agee, que exilou-se em Cuba – aparentemente nenhum Estado parece disposto a prestar uma efectiva ajuda a Snowden (a proposta mais concreta foi a da Rússia, que em contrapartida funciona como um “abafão” protector de Washington, obrigando Snowden ao silêncio, em troca de apoio).

Para além da WikiLeaks - seu aliado natural, por ser uma organização que luta pela transparência da informação e pelo livre acesso á informação e conhecimento, proporcionando, também, aconselhamento e acompanhamento jurídico – não fica claro se algum Estado ou organização o ajudará. Governos, comunicação social e instituições receberam a informação proporcionada por Snowden, fizeram declarações, protestaram e exigiram explicações aos USA e choram muitas lágrimas de crocodilo. Mas nada mais. 
        
A imensa maioria das autoridades dos 21 países que receberam o pedido de exilio imediato respondeu negativamente. A India negou-se categoricamente a conceder o estatuto de exilado, manifestando o seu apoio condicional ao programa norte-americano e considerando que Snowden deveria ser extraditado para os USA. O Brasil, por sua vez deu uma desconcertante “não resposta”. Até ao momento as esperanças de Snowden, ténues, continuam a residir na Venezuela, Nicarágua e Bolívia.
  
Perante estas circunstâncias, a sugestão do presidente venezolano de que o Alto Comissariado da ONU para os refugiados (ACNUR) deveria assumir a protecção de Snowden surge como uma saída de bom senso, embora pouco provável. A este esforço deveriam associar-se a Amnistia Internacional (que ninguém sabe por onde anda, neste processo) e outras organizações internacionais pelos direitos humanos.

No entanto enquanto Snowden permanecer no aeroporto moscovita, tudo isto não passa de um lavar de mãos em água suja, não passando as declarações de repúdio por estes actos de espionagem dos USA, de risos de hiena.

(continua)

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