Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Rui Tavares (meu
amigo de longuíssima data, que considero um excelente eurodeputado e que há uns
dias conseguiu uma importantíssima vitória com a aprovação do seu relatório
sobre os ataques à democracia na Hungria) correu o risco de lançar um debate
(entrevista aqui , com título enganador): estará na altura de
criar um novo partido à esquerda em Portugal? Porque sei que esta é uma
conversa recorrente por debaixo da camada do debate mediático (e há até quem
imagine, estando redondamente enganado, que ando empenhado nisso), não me furto
a participar nele.
Compreendo a
dúvida. Existe, historicamente, um grande espaço vazio entre a ortodoxia
ideológica do PCP e a cedência militante do PS. Esses espaço deveria ter
sido ocupado pelo Bloco de Esquerda. E, durante algum tempo, pareceria que
isso estava a acontecer, pelo menos parcialmente (penso que ele é maior do que
o BE, nos seus melhores momentos, conseguiu ocupar). Acontece que o Bloco
acabou por ceder à pressão das suas correntes mais intransigentes e caiu na
tentação de se começar a medir com os comunistas, ignorando que é no eleitorado
socialista e em muitos desencatados da política que esse espaço repousa, à
espera de melhor escolha.
Mas a questão é,
hoje em dia, outra: o sistema partidário está bloqueado. Está bloqueado
pela incapacidade da esquerda encontrar convergir numa verdadeira alternativa à
austeridade (e não uma mera alternância na gestão da austeridade) capaz de
chegar a um governo. E está bloqueado, e isso é bem mais relevante, por uma crescente
desconfiança dos cidadãos em relação aos partidos, sejam eles de esquerda ou de
direita. Ou seja, não existe nenhuma força política capaz de canalizar a
revolta das pessoas em qualquer coisa de politicamente construtivo. De lhes dar
esperança. Isso é dramático para a democracia e sabemos como, noutros momentos
históricos, abriu espaço para soluções autoritárias.
Para que um novo
partido nascesse e fosse útil ao País, eram necessárias três condições: que,
pela sua origem e pelos seus protagonistas, conseguisse ganhar
credibilidade e não se limitasse a ser um pouso para ativistas e políticos
órfãos de partido (onde, para que não sobrem dúvidas, me incluo), sem bases nem
coerência política; que tivesse força suficiente para, através do susto que
criasse, puxar o PS para fora da lógica da "austeridade
boazinha" e o BE e o PCP para a assunção de responsabilidades governativas,
que exigem sempre cedências; e que conseguisse ter um funcionamento que
respondesse a algumas das ansiedades e desconfianças dos cidadãos em
relação aos partidos políticos.
Não preenchendo
estas três condições, o tal novo partido correria o risco de bloquear
ainda mais a esquerda e a democracia. Até porque nenhum partido se afirma sem
ser em contraste com os que lhe sejam mais próximos. O que tende a alimentar
mais as rivalidades do que as convergências. Foi assim que o Bloco de Esquerda
se afirmou. E, como vemos, isso acabou por não ter os efeitos esperados na
capacidade da esquerda se entender. Arrisco-me a dizer que, independentemente
da vontade dos seus promotores, teve até o efeito oposto.
Vale a pena, por
isso, analisar as três condições que referi.
Existem as
condições e os protagonistas para criar um partido, que não seja minúsculo e
tenha um futuro relevante (sem se limitar a cumprir o triste papel da
Esquerda Democrática, que dividiu o governo com a Nova Democracia e o PASOK, na
Grécia) na vida política nacional? As condições até talvez existam.
Estou mesmo convencido que o desespero é tal, que o primeiro partido que
apareça neste espaço, por pior que seja, terá alguns ganhos e poderia ser mesmo
uma surpresa. O que não existem são os protagonistas que juntem alguma
experiência política e reconhecimento público com disponibilidade e vontade de
cumprir esse papel. E não vejo que as condições atuais permitam o nascimento de
uma organização política que não seja um epifenómeno e que, logo a partir da
base, consiga contrariar as velhas lógicas de funcionamento partidário. Ou
seja, a resposta é não.
Teria esse novo
partido a capacidade de obrigar o PS a clarificar a sua posição em relação a
esta crise? Duvido. Na cúpula do PS, a relação umbilical com muitos
interesses na elite económica nacional torna, tal como a Grécia ou a França
demonstraram, essa escolha demasiado radical para a cultura mole dos
socialistas. E a sua ala esquerda mais livre, talvez mais próxima do sentimento
de muitos dos eleitores socialistas, é composta por gente demasiado jovem para,
por enquanto, assumir responsabilidades de primeira linha. Teria um novo
partido força para obrigar o BE e o PCP a assumirem responsabilidades
governativas? Pelo contrário, suspeito que se tivesse sucesso deixaria o
PCP ainda mais enfiado na sua fortaleza (como o BE deixou) e, se o sucesso
fosse ainda maior, apenas esvaziaria o Bloco de Esquerda de grande parte do seu
eleitorado e base de apoio. O resultado poderia ser uma esquerda ainda mais
balcanizada e bloqueada. Um risco que não deve ser desprezado. Ou seja, a
resposta é de novo não.
Por fim, estaria
um novo partido em condições de responder às exigências de cidadãos cada vez
mais cansados das lógicas partidárias? É um ponto em que tenho muito mais
dúvidas do que certezas. Até porque muitas dessas ansiedades são demasiada
difusas, demasiado contraditórias e, em alguns casos, apesar das boas
intenções, demasiado perigosas para ser fácil responder-lhes. Um dia destes
perco mais tempo para falar sobre o que está a acontecer na vida interna do
Movimento Cinco Estrelas e como ele se tem revelado, em muitos aspetos, ainda
menos democrático do que os partidos tradicionais italianos. Sei, acho que
sabemos todos, que as estruturas partidárias não estão preparadas para a
realidade social em que vivemos, bem diferente da que existia quando a matriz
de funcionamento dos partidos se cristalizou. Mas, sendo a realidade hoje tão volátil,
não sei bem que estrutura partidária (ou de outro tipo) poderia corresponder a
esta realidade. Nem sei se o aparecimento de um novo partido, tal é a descrença
das pessoas, não seria recebido com desconfiança semelhante à que os cidadãos
dedicam às atuais forças partidárias. Às vezes isso acontece: sabermos do
problema e desconhecermos a melhor forma de lhe responder.
Qualquer força
partidária que nasça neste momento tem de preencher, à partida, dois
requisitos. Tem começar, ainda antes da sua formação, na base, de forma
completamente diferente das lógicas hierárquicas dos partidos, dando logo, à
partida, a possibilidade de participação a quem não esteja disponível para a
militância tradicional mas garantindo, em simultâneo, a democracia formal que
se exige em qualquer organização. E tem conseguir responder às principais
questões políticas que hoje se põem: como sair desta crise e que posição
ter em relação à Europa e ao euro. Não pode ser uma mera aliança negativa. No
espectro dos que, à esquerda, não se revêm no atual quadro partidário, não
vislumbro, por enquanto, suficiente convergência nestas matérias para que tal
seja possível.
Conclusão: considero
que, por agora, não há condições para que um novo partido preencha os mínimos
para ajudar a desbloquear a esquerda e a democracia portuguesas. Não ignoro, no
entanto, que o risco de surguir qualquer outra coisa, de pendor populista e
mais ou menos gasoso, não é pequeno. E que o aparecimento de um novo partido
teria, pelo menos, a vantagem de agitar as águas e obrigar PS, PCP e BE a saírem
do conforto dos seus cálculos eleitorais. Mas confesso que ocupar um
espaço e agitar as águas me parece pouco para justificar a criação de um novo
partido político. Talvez a degradação da vida política portuguesa me leve a
mudar de opinião. Mas espero sinceramente que não. Seria muito mau sinal.
Sei que o Rui
Tavares não ignora, e até vai falando disso, grande parte dos riscos que aqui
referi. Por isso, à única afirmação realmente feita por ele (que a criação
de um novo partido não deve ser um "tabu"), respondo positivamente.
Mas não é hoje, não foi ontem e não será amanhã. É da natureza dos sistemas
partidários e da democracia nunca o ser. E até reconheço que o receio que
esse partido surja, junto das direções dos partidos existentes (e não apenas os
de esquerda), pode ser muito saudável. Se não for por outra razão,
parece-me fazer sentido manter essa possibilidade em aberto. Talvez assim se
mexam. Mas entre manter uma possibilidade em aberto e criar um novo partido vai
uma grande distância. Neste momento, considero que o nascimento de um novo
partido poderia piorar ainda mais o que já está em tão mau estado: a esquerda e
a democracia.
Sem comentários:
Enviar um comentário