segunda-feira, 1 de julho de 2013

Portugal: UM NOVO PARTIDO À ESQUERDA?




Daniel Oliveira – Expresso, opinião

Rui Tavares (meu amigo de longuíssima data, que considero um excelente eurodeputado e que há uns dias conseguiu uma importantíssima vitória com a aprovação do seu relatório sobre os ataques à democracia na Hungria) correu o risco de lançar um debate (entrevista aqui , com título enganador): estará na altura de criar um novo partido à esquerda em Portugal? Porque sei que esta é uma conversa recorrente por debaixo da camada do debate mediático (e há até quem imagine, estando redondamente enganado, que ando empenhado nisso), não me furto a participar nele.

Compreendo a dúvida. Existe, historicamente, um grande espaço vazio entre a ortodoxia ideológica do PCP e a cedência militante do PS. Esses espaço deveria ter sido ocupado pelo Bloco de Esquerda. E, durante algum tempo, pareceria que isso estava a acontecer, pelo menos parcialmente (penso que ele é maior do que o BE, nos seus melhores momentos, conseguiu ocupar). Acontece que o Bloco acabou por ceder à pressão das suas correntes mais intransigentes e caiu na tentação de se começar a medir com os comunistas, ignorando que é no eleitorado socialista e em muitos desencatados da política que esse espaço repousa, à espera de melhor escolha.

Mas a questão é, hoje em dia, outra: o sistema partidário está bloqueado. Está bloqueado pela incapacidade da esquerda encontrar convergir numa verdadeira alternativa à austeridade (e não uma mera alternância na gestão da austeridade) capaz de chegar a um governo. E está bloqueado, e isso é bem mais relevante, por uma crescente desconfiança dos cidadãos em relação aos partidos, sejam eles de esquerda ou de direita. Ou seja, não existe nenhuma força política capaz de canalizar a revolta das pessoas em qualquer coisa de politicamente construtivo. De lhes dar esperança. Isso é dramático para a democracia e sabemos como, noutros momentos históricos, abriu espaço para soluções autoritárias.

Para que um novo partido nascesse e fosse útil ao País, eram necessárias três condições: que, pela sua origem e pelos seus protagonistas, conseguisse ganhar credibilidade e não se limitasse a ser um pouso para ativistas e políticos órfãos de partido (onde, para que não sobrem dúvidas, me incluo), sem bases nem coerência política; que tivesse força suficiente para, através do susto que criasse, puxar o PS para fora da lógica da "austeridade boazinha" e o BE e o PCP para a assunção de responsabilidades governativas, que exigem sempre cedências; e que conseguisse ter um funcionamento que respondesse a algumas das ansiedades e desconfianças dos cidadãos em relação aos partidos políticos.

Não preenchendo estas três condições, o tal novo partido correria o risco de bloquear ainda mais a esquerda e a democracia. Até porque nenhum partido se afirma sem ser em contraste com os que lhe sejam mais próximos. O que tende a alimentar mais as rivalidades do que as convergências. Foi assim que o Bloco de Esquerda se afirmou. E, como vemos, isso acabou por não ter os efeitos esperados na capacidade da esquerda se entender. Arrisco-me a dizer que, independentemente da vontade dos seus promotores, teve até o efeito oposto.

Vale a pena, por isso, analisar as três condições que referi.

Existem as condições e os protagonistas para criar um partido, que não seja minúsculo e tenha um futuro relevante (sem se limitar a cumprir o triste papel da Esquerda Democrática, que dividiu o governo com a Nova Democracia e o PASOK, na Grécia) na vida política nacional? As condições até talvez existam. Estou mesmo convencido que o desespero é tal, que o primeiro partido que apareça neste espaço, por pior que seja, terá alguns ganhos e poderia ser mesmo uma surpresa. O que não existem são os protagonistas que juntem alguma experiência política e reconhecimento público com disponibilidade e vontade de cumprir esse papel. E não vejo que as condições atuais permitam o nascimento de uma organização política que não seja um epifenómeno e que, logo a partir da base, consiga contrariar as velhas lógicas de funcionamento partidário. Ou seja, a resposta é não.

Teria esse novo partido a capacidade de obrigar o PS a clarificar a sua posição em relação a esta crise? Duvido. Na cúpula do PS, a relação umbilical com muitos interesses na elite económica nacional torna, tal como a Grécia ou a França demonstraram, essa escolha demasiado radical para a cultura mole dos socialistas. E a sua ala esquerda mais livre, talvez mais próxima do sentimento de muitos dos eleitores socialistas, é composta por gente demasiado jovem para, por enquanto, assumir responsabilidades de primeira linha. Teria um novo partido força para obrigar o BE e o PCP a assumirem responsabilidades governativas? Pelo contrário, suspeito que se tivesse sucesso deixaria o PCP ainda mais enfiado na sua fortaleza (como o BE deixou) e, se o sucesso fosse ainda maior, apenas esvaziaria o Bloco de Esquerda de grande parte do seu eleitorado e base de apoio. O resultado poderia ser uma esquerda ainda mais balcanizada e bloqueada. Um risco que não deve ser desprezado. Ou seja, a resposta é de novo não.

Por fim, estaria um novo partido em condições de responder às exigências de cidadãos cada vez mais cansados das lógicas partidárias? É um ponto em que tenho muito mais dúvidas do que certezas. Até porque muitas dessas ansiedades são demasiada difusas, demasiado contraditórias e, em alguns casos, apesar das boas intenções, demasiado perigosas para ser fácil responder-lhes. Um dia destes perco mais tempo para falar sobre o que está a acontecer na vida interna do Movimento Cinco Estrelas e como ele se tem revelado, em muitos aspetos, ainda menos democrático do que os partidos tradicionais italianos. Sei, acho que sabemos todos, que as estruturas partidárias não estão preparadas para a realidade social em que vivemos, bem diferente da que existia quando a matriz de funcionamento dos partidos se cristalizou. Mas, sendo a realidade hoje tão volátil, não sei bem que estrutura partidária (ou de outro tipo) poderia corresponder a esta realidade. Nem sei se o aparecimento de um novo partido, tal é a descrença das pessoas, não seria recebido com desconfiança semelhante à que os cidadãos dedicam às atuais forças partidárias. Às vezes isso acontece: sabermos do problema e desconhecermos a melhor forma de lhe responder.

Qualquer força partidária que nasça neste momento tem de preencher, à partida, dois requisitos. Tem começar, ainda antes da sua formação, na base, de forma completamente diferente das lógicas hierárquicas dos partidos, dando logo, à partida, a possibilidade de participação a quem não esteja disponível para a militância tradicional mas garantindo, em simultâneo, a democracia formal que se exige em qualquer organização. E tem conseguir responder às principais questões políticas que hoje se põem: como sair desta crise e que posição ter em relação à Europa e ao euro. Não pode ser uma mera aliança negativa. No espectro dos que, à esquerda, não se revêm no atual quadro partidário, não vislumbro, por enquanto, suficiente convergência nestas matérias para que tal seja possível.

Conclusão: considero que, por agora, não há condições para que um novo partido preencha os mínimos para ajudar a desbloquear a esquerda e a democracia portuguesas. Não ignoro, no entanto, que o risco de surguir qualquer outra coisa, de pendor populista e mais ou menos gasoso, não é pequeno. E que o aparecimento de um novo partido teria, pelo menos, a vantagem de agitar as águas e obrigar PS, PCP e BE a saírem do conforto dos seus cálculos eleitorais. Mas confesso que ocupar um espaço e agitar as águas me parece pouco para justificar a criação de um novo partido político. Talvez a degradação da vida política portuguesa me leve a mudar de opinião. Mas espero sinceramente que não. Seria muito mau sinal.

Sei que o Rui Tavares não ignora, e até vai falando disso, grande parte dos riscos que aqui referi. Por isso, à única afirmação realmente feita por ele (que a criação de um novo partido não deve ser um "tabu"), respondo positivamente. Mas não é hoje, não foi ontem e não será amanhã. É da natureza dos sistemas partidários e da democracia nunca o ser. E até reconheço que o receio que esse partido surja, junto das direções dos partidos existentes (e não apenas os de esquerda), pode ser muito saudável. Se não for por outra razão, parece-me fazer sentido manter essa possibilidade em aberto. Talvez assim se mexam. Mas entre manter uma possibilidade em aberto e criar um novo partido vai uma grande distância. Neste momento, considero que o nascimento de um novo partido poderia piorar ainda mais o que já está em tão mau estado: a esquerda e a democracia.

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