Rui Peralta, Luanda
I - Os recentes
protestos e manifestações que tomaram conta das ruas das principais cidades
brasileiras começaram em São Paulo, tendo como pano de fundo o aumento do preço
dos transportes. Em breve a corrupção, a desigualdade social e a falência dos
serviços públicos, passaram a temáticas do protesto. A reação das forças de
segurança, adicionou a questão da ineficácia da polícia e da sua forma de
actuação e á medida que o movimento se foi expandindo, os protestos englobaram
as despesas públicas com a Taça das Confederações e com o Mundial de Futebol de
2014.
O silêncio
governamental (aos 3 níveis governamentais, da cidade, estadual e federal) só
foi quebrado pela presidente Dilma Roussef, alguns dias apos os inícios dos
protestos, passando a mensagem que a presidente e o governo federal estavam
atentos e a ouvir as ruas e que o governo federal iria tentar responder às
reivindicações. Esta foi uma fase em que os protestos, apesar de já se fazerem
ouvir em outras cidades estaduais, estavam ainda muito focados em São Paulo,
uma cidade governada pelo PT, embora o Estado de São Paulo esteja sob gestão da
oposição.
Dilma falou sobre
as exigências dos manifestantes: o civismo, as melhores escolas, os melhores
hospitais, melhores serviços de saúde e o direito de participação na gestão da
res pública. Mas as palavras de Dilma não foram sentidas pelos protestos como
um acto de inflexão na politica governamental, que tem conduzido á destruição
do sector publico da saúde e da educação e que continua a afastar a população
do exercício da soberania popular efectiva, não criando mecanismos de
participação directa da população na resolução dos seus assuntos mais
prementes.
O cidadão
brasileiro sente-se manipulado. Assiste ao enfraquecimento das instituições
publicas, mergulhadas numa crise sem precedentes e muitas vezes vitimas de uma
politica de “laissez-faire” conducente á corrupção generalizada, á violência
policial institucionalizada e limitando as politicas sociais ao fantasmagórico
programa de combate á pobreza, iniciado por Lula e que parece ter perdido a sua
vitalidade dos primeiros tempos. Talvez por isso, pela sensação de manipulação
pressentida pelo cidadão, as palavras de Dilma, por muito sentidas que sejam,
não colham confiança, o factor que foi perdido pelos cidadãos em relação às
medidas do governo de Dilma.
II - As ruas das
principais cidades brasileiras foram ocupadas por milhares de cidadãos que
protestavam contra o aumento dos preços dos transportes públicos e contra a
delapidação do erário publico, representada pela Taça das Confederações e pelo
Mundial de Futebol que aplicam enormes verbas públicas em eventos
internacionais, á custa da degradação do sistema público de saúde e de
educação.
Apesar de ser a quinta
economia do mundo, a realidade brasileira reflete grandes assimetrias no que
respeita á distribuição de rendimentos. Os compromissos do PT de Lula
introduziram o Brasil num grupo selecto de economias (BRICS) que oscilam entre
o crescimento desmesurado (China e India), o crescimento elevado (Brasil), os
que procuram recuperar a grandeza do passado, crescendo para sobreviverem á
decadência (Rússia) e o não crescimento, explosivo (Africa do Sul). Mas mesmo
com estes resultados diferenciados, o capitalismo BRICS impôs-se e as novas
elites locais, extasiadas com riqueza proporcionada pelo desenvolvimento,
divulgam a boa nova evangélica dos “mercados patrióticos”, da “responsabilidade
social” e outras patranhas para enganar e iludir a imensa camada de pobres,
desempregados, trabalhadores mal remunerados e uma classe média endividada á
nascença.
Durante a última
década, os governos do PT conseguiram, de facto, resultados consideráveis no
combate á pobreza. De acordo com os dados da Comissão Económica para a América
Latina (CEPAL), da ONU, o Brasil, com uma população estimada em 200 milhões de
habitantes, reduziu, na última década, a pobreza em cerca de 25% (redução media
das várias vertentes dos programas aplicados, que oscilaram entre reduções de
20% a 38%). Estas reduções tiveram impacto favorável na vida de 27 milhões de
cidadãos brasileiros. Por sua vez a pobreza extrema foi reduzida em cerca de
10% (de 6% a 13%, consoante as vertentes programáticas).
Nos programas
económicos para combate á pobreza desenvolvidos pela presidente Roussef,
participam 50 milhões de brasileiros, o que representa um incremento de 60% em
relação ao participantes no programa de 2010, o último do mandato de Lula. A
taxa de desemprego é hoje a mais baixa da História do Brasil e se olharmos,
exclusivamente, para estes índices, poderíamos dizer que o Brasil estava no bom
caminho. Mas a política social não se resume às medidas profiláticas de combate
á pobreza e ao desemprego. Tem de existir complementaridade nessas medidas e
continuidade no acompanhamento da situação.
A política social
engloba, também, políticas de saúde pública e educação, assentes no acesso e
usufrutos destes direitos de forma universal e gratuita, que são bandeiras de
luta nos actuais protestos. Foi a ausência do aprofundamento destas politicas,
que provocaram o desgaste do PT, fazendo do bem encaminhado programa de luta
contra a fome, apenas um cartaz eleitoral, por muito que os resultados apontem
em sentido contrário.
É evidente que os
sectores vinculados á oligarquia, que nunca renunciaram ao seu anterior
controlo do aparelho de Estado (e que continuam, inatacáveis, nos bastidores,
uma vez que o PT nunca efectuou as medidas necessárias de saneamento da
administração publica) tentam tirar partido destas mobilizações, contribuindo
para o descrédito do governo e promovendo a instabilidade. Com o mesmo intuito,
os grupos da extrema-direita e os gangues do narcotráfico, diluem-se nas
manifestações, provocando actos de violência.
Por sua vez, alguns sectores políticos de
suporte ao governo, afastam-se e juntam-se á mobilização popular. É o caso do
Partido Comunista Brasileiro, fundado em 1922 e que foi um suporte do governo
do PT, que afasta-se dos acordos com o PT e acusa Dilma Roussef e o seu
gabinete de “terem perdido o contacto com o povo”. Mas também a Central de
Trabalhadores do Brasil (CTB) retirou o seu suporte (embora critico e não
isento de diversas rupturas, mesmo durante o governo de Lula) e mesmo dentro do
PT existem posições de apoio á mobilização popular.
Este movimento
colocou algumas questões essenciais e que o governo brasileiro deve levar em
conta: a polarização entre os interesses públicos e privados, a sua relação e a
necessidade dos serviços públicos de saúde, educação e habitação. Dilma deu sinais
de compreender a necessidade de aprofundar a transformação - apesar de
encabeçar um executivo mergulhado nas águas putrefactas do capitalismo BRICS e
das politicas desenvolvimentistas, que começam todas em nome do progresso e da
criação de riqueza para todos e terminam, inexoravelmente, na corrupção
generalizada, na destruição dos sectores públicos e nas benesses aos interesses
privados - e comprometeu-se a melhorar os transportes públicos (reivindicação
base no inicio dos protestos, em São Paulo) destinando uma verba de 20 mil
milhões de USD.
Dilma Roussef
aproveita, ainda, para poder avançar com o seu projecto de reforma do Estado e
propõe a convocação de um referendo que autorize a eleição de uma Assembleia
Constituinte que rediga e faça aprovar uma nova Constituição. Este poderá,
efectivamente, ser um mecanismo indispensável á transformação, mas que impacto
terá sobre a massa plural dos manifestantes, ou se eles compreendem a
necessidade e a profundidade desse projecto, é outro assunto.
Para já e enquanto
Dilma não faz passar melhor a sua mensagem, o movimento sindical convocou uma
jornada de luta, para o próximo dia 11 de Julho. A jornada foi convocada pela
Confederação Unitária dos Trabalhadores – CUT, Força Sindical, União Geral dos
Trabalhadores – UGT, Confederação Nacional de Lutas e Central Geral dos
Trabalhadores Brasileiros – CGTB. Segundo a convocatória, o objectivo desta
jornada é o de incorporar as reivindicações dos trabalhadores á reivindicação
da rua.
III - O panorama
parlamentar brasileiro é constituído por uma aliança de extrema-direita,
ruralista, pelo PMDB, o histórico do centro-direita, um conjunto diversificado
de partidos do centro-esquerda (PDT, PSDB, PTB, PSB e mais alguns) e á esquerda
sentam-se os dois Partidos Comunistas (o Brasileiro e o do Brasil,
respectivamente PCB e PC do B) e o maioritário PT. Apesar da diversidade de
frutas na quinta, o sumo é pouco e ácido. O clientelismo eleitoral predomina
neste cenário e os deputados, estaduais e federais, ficaram “perplexos e atónitos”
com os recentes protestos.
Este cenário tem
efectivamente de ser alterado e Dilma Roussef tem a percepção de que não é
possível aprofundar as reformas impulsionadoras da transformação social, sem
primeiro alterar o cenário institucional. Pendente continua o projecto de
reforma-agrária, preso na máquina burocrática. Este ano interromperam a
demarcação das terras indígenas e um conjunto de “representantes do povo”
pretende estender a actividade mineira a céu aberto a toda a Amazónia. Foram
negados mais recursos aos sectores da Saúde e da Educação, deixaram deteriorar
os transportes públicos colectivos e beneficiaram as empresas privadas de
transporte, que não levam em conta as necessidades de deslocação da maioria da
população e que limitam os horários, por questões de rentabilidade.
O governo do PT,
pela voz de Dilma, anunciou que o segundo semestre deste ano seria um “festival
de licitações” para represas, autoestradas, portos e outras infraestruturas. O
festival teve inicio ainda no primeiro semestre com a adjudicação, em Maio
ultimo, de blocos de exploração petrolífera num território onde residem 76
assentamentos para a reforma agrária, no nordeste do país, sem que tenham sido
apresentadas quaisquer alternativas aos camponeses. O festival irá continuar já
de seguida com as negociações que cederam terras às multinacionais mineiras e
do agronegócio (agroindústria e transgénicas agrícolas), provocando uma miríade
de conflitos com os camponeses, os Sem-Terra e as comunidades indígenas,
atropelando todos os contratos anteriores, feitos com estes sectores e
suspendendo o diálogo com as estruturas representativas dos camponeses,
pequenos proprietários e comunidades indígenas.
Nos grandes centros
urbanos, os “megaeventos” (curioso como os sinais de decadência de um sistema
social, são sempres representados através de actos de monumentalidade) levaram
ao corte e á suspensão dos projectos sociais desportivos e culturais nas
favelas e bairros periféricos, suspenderam a reforma urbana e financiaram, com os
dinheiros públicos obtidos nestes cortes, a especulação mobiliaria e o
parasitismo virulento desta actividade vergonhosa, formada por alcateias de
vigaristas e que têm por detrás e pelo lado os gangues do narcotráfico e os
intermediários das lavagens de dinheiro.
Dilma tem razão
quanto á necessidade de “reformar o Estado”, quando o Congresso se dá ao luxo
de ameaçar, através de uma emenda constitucional, com o término das
investigações sobre a corrupção (PEC 37) e com o abandono da demarcação das terras
indígenas (PEC 215). Tudo isto é de facto um “festival”, rasco e de mau gosto.
A reforma de estado tem cabimento e será uma alteração fundamental, mas se for
um instrumento que implique profundas alterações na política brasileira, a
começar pela alteração fundamental: mudar a política desenvolvimentista, que
arrasta o Brasil para um imenso casino, onde se passeiam as elites do PT e a
velha oligarquia, de braço dado às novas elites BRICS, com os seus tiques de
novo-riquismo, enquanto os restantes cidadãos ficam á porta de entrada do
casino, ou quanto muito são porteiros do mesmo.
A surpresa
manifestada pelos três poderes institucionais perante os protestos é revelador
da urgência da reforma de estado, pois revela o quanto decrépitos e
esclerosados são os seus actores principais. Outra coisa não poderia suceder
depois de anos de vandalismo e de manipulação, com que os trabalhadores, os
indígenas, os pobres, os desempregados, foram tratados, tanto nas áreas
urbanas, como nas áreas rurais. Pensavam, os surpreendidos actores
institucionais, que bastariam os programas contra a fome e a pobreza, para
colocar um sorriso na face de cada brasileiro? Pensariam, os atónitos
responsáveis políticos, que o Brasil é só futebol e negociatas tropicais? Será
que achavam, mesmo, que depois de uma serie de medidas e de políticas
irrisórias, a cidadania brasileira (rica e fértil em lutas históricas pelos
seus direitos), desprezada e enganada durante anos por discursos de
conciliação, não acabaria por dar voz ao seu sentir?
IV - As propostas
de Dilma para responder às reivindicações da rua, não serão as mais apropriadas
para os ouvidos dos manifestantes, é certo, mas evidenciam as contradições no
seio da elite dirigente. A primeira proposta é a da Responsabilidade Fiscal.
Mas esta é uma mensagem dirigida mais ao capital financeiro internacional, do
que directamente às reivindicações populares. A Camara dos Deputados, numa
tentativa de resposta imediata aos protestos sobre os gastos sociais, aprovou
no dia 26 de Junho uma medida que destina 75% das royalties do petróleo para a
educação e 25% para a saúde.
A priori estes
números podem soar bem aos mais incautos (e aos que andam de má fé, pela vida
fora) só que esta questão das royalties é um daqueles pântanos lamacentos, onde
as aparências iludem e as ilusões parecem-se. É que o Estado brasileiro apenas
obtém 8% da renda petrolífera, nestes contratos. Ora, atendendo a que os
recursos necessários aos serviços públicos básicos são absorvidos pela Divida
Publica (que absorveu 42% do orçamento para 2013), é manifesto a ineficácia
desta medida. Esta é portanto uma daquelas medidas para acalmar a “populaça” e
deixar passar a “arruaça”. Ou seja, areia para os olhos.
A segunda proposta
- a primeira de que Dilma falou, logo no início dos protestos - já falámos
dela: a reforma do Estado. É uma proposta real e conducente a uma transformação
profunda do cenário político brasileiro. Mas o poder judicial já fez saber que
não quer nada com mecanismos de reforço da soberania popular e o centro direita
através do PMDB, aliado do PT no governo, rejeitou a possibilidade de uma
Constituinte. As experiencias constitucionais da Venezuela, Bolívia e Equador
são um leviatã para a oligarquia brasileira e para os meios que vivem dos
sofisticados esquemas negociais da sociedade brasileira.
Outra das propostas
é a de catalogar a corrupção como crime hediondo. O facto de ter sido aprovada
no Congresso, no entanto, não resolve grande coisa. Para os corruptos tanto faz
que os seus actos sejam considerados hediondos, ou não. O efeito é o mesmo e
provavelmente até faz subir a parada. O combate á corrupção não se prende
apenas com a figura e o molde que lhe possamos atribuir em temos judicias, mas
tem de ser encarado como uma guerra de longa duração, contendo varias frentes,
feita por leis de excepção e por politicas concretas, que permitam não apenas
varrer da superfície do jardim a erva daninha, mas matar a raiz. Talvez a
reforma de estado seja um passo mais importante, que possa criar no novo quadro
constitucional, as instituições que constituirão a linha da frente nessa guerra
prolongada. As medidas anticorrupção têm de ser sentidas por toda a sociedade e
em todas as esferas sociais. Implicam o mundo laboral e empresarial e também um
poder judicial eficaz e realmente autónomo. Implicam saneamentos da
administração pública central, estadual e local. Tudo o resto são paliativos,
paninhos quentes que arrefecem depressa.
V - Pouco importa,
agora, saber qual o caminho dos protestos, se serão corroídos e extintos ou se
serão absorvidos na ordem institucional, ou se constituirão uma qualquer
alternativa politica. O importante destes movimentos é a sua autonomia e a sua
praxis de participação. A democracia brasileira, tal como a grande maioria das
sociedades democráticas actuais, assenta nos mecanismos de representatividade e
não no exercício directo da soberania popular. A longo prazo este mecanismo é
fatal para a democracia, que não consegue obter os equilíbrios necessários para
o seu funcionamento, pois escamoteia a base do sistema, a soberania popular. Estes movimentos preenchem o vazio
institucional que está no lugar dos mecanismos participativos e do equilíbrio
entre representação e participação. A questão não se coloca entre rua e
parlamento, mas sim entre a decisão da rua, a sua esfera directa e a definição
da sua esfera partilhada e a decisão do representante, da sua esfera directa e
da sua esfera partilhada.
O problema não é a
opção entre reforma agrária e agroindústria, mas sim a realização da reforma
agrária, projecto de socialização da terra e a execução dos projectos
agroindustriais, assentes na capitalização das terras e como estes projectos se
podem envolver, não numa esfera comum, mas nas suas esferas de actuação. Não
serve de nada parar a reforma agraria, a não ser que se pretenda que o Brasil
sofra eternamente um atraso estrutural na sua agricultura e não leva a lado
algum escamotear os benefícios da agroindústria, a não ser que se pretenda o
atraso tecnológico na agricultura do país e a ausência dos factores de elevação
da produtividade e rentabilidade. São diferentes esferas e diferentes
respostas, mas ambas necessárias á criação de riqueza e ao desenvolvimento. Não é uma opção entre extracção mineira e
comunidades indígenas, mas de como inserir o necessário sector mineiro no
ambiente, de como envolver a comunidade indígena no desenvolvimento e de como a
sua participação nas decisões é crucial.
Os caminhos abertos
são vastos, mas não constituem novidade, nem são nenhuma reinvenção da roda.
São apenas os instrumentos possíveis á cidadania de intervir, de participar nas
decisões e de decidir e afirmar a sua decisão, perante o vazio institucional
que foi criado em torno da soberania popular e que apenas favorece as elites
económicas e politicas e a sua respectiva circulação e renovação.
O Brasil
demonstrou, nestes protestos, que não é só um pais tropical abençoado pelo
Capital, que não é só futebol (como pretendem os corruptores organismos
internacionais futebolísticos, que não passam de centros de lavagem de dinheiro
e cujo lugar deveria ser no banco dos réus, dos tribunais internacionais) samba
e Carnaval. O Brasil, afinal, também é (e os protestos assim o demonstram)
…futuro.
Fontes
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