sábado, 6 de julho de 2013

QUANDO O FUTEBOL JÁ NÃO CALA A MÁGOA



Rui Peralta, Luanda

I - Os recentes protestos e manifestações que tomaram conta das ruas das principais cidades brasileiras começaram em São Paulo, tendo como pano de fundo o aumento do preço dos transportes. Em breve a corrupção, a desigualdade social e a falência dos serviços públicos, passaram a temáticas do protesto. A reação das forças de segurança, adicionou a questão da ineficácia da polícia e da sua forma de actuação e á medida que o movimento se foi expandindo, os protestos englobaram as despesas públicas com a Taça das Confederações e com o Mundial de Futebol de 2014.   

O silêncio governamental (aos 3 níveis governamentais, da cidade, estadual e federal) só foi quebrado pela presidente Dilma Roussef, alguns dias apos os inícios dos protestos, passando a mensagem que a presidente e o governo federal estavam atentos e a ouvir as ruas e que o governo federal iria tentar responder às reivindicações. Esta foi uma fase em que os protestos, apesar de já se fazerem ouvir em outras cidades estaduais, estavam ainda muito focados em São Paulo, uma cidade governada pelo PT, embora o Estado de São Paulo esteja sob gestão da oposição. 

Dilma falou sobre as exigências dos manifestantes: o civismo, as melhores escolas, os melhores hospitais, melhores serviços de saúde e o direito de participação na gestão da res pública. Mas as palavras de Dilma não foram sentidas pelos protestos como um acto de inflexão na politica governamental, que tem conduzido á destruição do sector publico da saúde e da educação e que continua a afastar a população do exercício da soberania popular efectiva, não criando mecanismos de participação directa da população na resolução dos seus assuntos mais prementes.

O cidadão brasileiro sente-se manipulado. Assiste ao enfraquecimento das instituições publicas, mergulhadas numa crise sem precedentes e muitas vezes vitimas de uma politica de “laissez-faire” conducente á corrupção generalizada, á violência policial institucionalizada e limitando as politicas sociais ao fantasmagórico programa de combate á pobreza, iniciado por Lula e que parece ter perdido a sua vitalidade dos primeiros tempos. Talvez por isso, pela sensação de manipulação pressentida pelo cidadão, as palavras de Dilma, por muito sentidas que sejam, não colham confiança, o factor que foi perdido pelos cidadãos em relação às medidas do governo de Dilma.  

II - As ruas das principais cidades brasileiras foram ocupadas por milhares de cidadãos que protestavam contra o aumento dos preços dos transportes públicos e contra a delapidação do erário publico, representada pela Taça das Confederações e pelo Mundial de Futebol que aplicam enormes verbas públicas em eventos internacionais, á custa da degradação do sistema público de saúde e de educação.    

Apesar de ser a quinta economia do mundo, a realidade brasileira reflete grandes assimetrias no que respeita á distribuição de rendimentos. Os compromissos do PT de Lula introduziram o Brasil num grupo selecto de economias (BRICS) que oscilam entre o crescimento desmesurado (China e India), o crescimento elevado (Brasil), os que procuram recuperar a grandeza do passado, crescendo para sobreviverem á decadência (Rússia) e o não crescimento, explosivo (Africa do Sul). Mas mesmo com estes resultados diferenciados, o capitalismo BRICS impôs-se e as novas elites locais, extasiadas com riqueza proporcionada pelo desenvolvimento, divulgam a boa nova evangélica dos “mercados patrióticos”, da “responsabilidade social” e outras patranhas para enganar e iludir a imensa camada de pobres, desempregados, trabalhadores mal remunerados e uma classe média endividada á nascença. 
 
Durante a última década, os governos do PT conseguiram, de facto, resultados consideráveis no combate á pobreza. De acordo com os dados da Comissão Económica para a América Latina (CEPAL), da ONU, o Brasil, com uma população estimada em 200 milhões de habitantes, reduziu, na última década, a pobreza em cerca de 25% (redução media das várias vertentes dos programas aplicados, que oscilaram entre reduções de 20% a 38%). Estas reduções tiveram impacto favorável na vida de 27 milhões de cidadãos brasileiros. Por sua vez a pobreza extrema foi reduzida em cerca de 10% (de 6% a 13%, consoante as vertentes programáticas).

Nos programas económicos para combate á pobreza desenvolvidos pela presidente Roussef, participam 50 milhões de brasileiros, o que representa um incremento de 60% em relação ao participantes no programa de 2010, o último do mandato de Lula. A taxa de desemprego é hoje a mais baixa da História do Brasil e se olharmos, exclusivamente, para estes índices, poderíamos dizer que o Brasil estava no bom caminho. Mas a política social não se resume às medidas profiláticas de combate á pobreza e ao desemprego. Tem de existir complementaridade nessas medidas e continuidade no acompanhamento da situação.

A política social engloba, também, políticas de saúde pública e educação, assentes no acesso e usufrutos destes direitos de forma universal e gratuita, que são bandeiras de luta nos actuais protestos. Foi a ausência do aprofundamento destas politicas, que provocaram o desgaste do PT, fazendo do bem encaminhado programa de luta contra a fome, apenas um cartaz eleitoral, por muito que os resultados apontem em sentido contrário.

É evidente que os sectores vinculados á oligarquia, que nunca renunciaram ao seu anterior controlo do aparelho de Estado (e que continuam, inatacáveis, nos bastidores, uma vez que o PT nunca efectuou as medidas necessárias de saneamento da administração publica) tentam tirar partido destas mobilizações, contribuindo para o descrédito do governo e promovendo a instabilidade. Com o mesmo intuito, os grupos da extrema-direita e os gangues do narcotráfico, diluem-se nas manifestações, provocando actos de violência.

Por sua vez, alguns sectores políticos de suporte ao governo, afastam-se e juntam-se á mobilização popular. É o caso do Partido Comunista Brasileiro, fundado em 1922 e que foi um suporte do governo do PT, que afasta-se dos acordos com o PT e acusa Dilma Roussef e o seu gabinete de “terem perdido o contacto com o povo”. Mas também a Central de Trabalhadores do Brasil (CTB) retirou o seu suporte (embora critico e não isento de diversas rupturas, mesmo durante o governo de Lula) e mesmo dentro do PT existem posições de apoio á mobilização popular.

Este movimento colocou algumas questões essenciais e que o governo brasileiro deve levar em conta: a polarização entre os interesses públicos e privados, a sua relação e a necessidade dos serviços públicos de saúde, educação e habitação. Dilma deu sinais de compreender a necessidade de aprofundar a transformação - apesar de encabeçar um executivo mergulhado nas águas putrefactas do capitalismo BRICS e das politicas desenvolvimentistas, que começam todas em nome do progresso e da criação de riqueza para todos e terminam, inexoravelmente, na corrupção generalizada, na destruição dos sectores públicos e nas benesses aos interesses privados - e comprometeu-se a melhorar os transportes públicos (reivindicação base no inicio dos protestos, em São Paulo) destinando uma verba de 20 mil milhões de USD.

Dilma Roussef aproveita, ainda, para poder avançar com o seu projecto de reforma do Estado e propõe a convocação de um referendo que autorize a eleição de uma Assembleia Constituinte que rediga e faça aprovar uma nova Constituição. Este poderá, efectivamente, ser um mecanismo indispensável á transformação, mas que impacto terá sobre a massa plural dos manifestantes, ou se eles compreendem a necessidade e a profundidade desse projecto, é outro assunto.

Para já e enquanto Dilma não faz passar melhor a sua mensagem, o movimento sindical convocou uma jornada de luta, para o próximo dia 11 de Julho. A jornada foi convocada pela Confederação Unitária dos Trabalhadores – CUT, Força Sindical, União Geral dos Trabalhadores – UGT, Confederação Nacional de Lutas e Central Geral dos Trabalhadores Brasileiros – CGTB. Segundo a convocatória, o objectivo desta jornada é o de incorporar as reivindicações dos trabalhadores á reivindicação da rua.

III - O panorama parlamentar brasileiro é constituído por uma aliança de extrema-direita, ruralista, pelo PMDB, o histórico do centro-direita, um conjunto diversificado de partidos do centro-esquerda (PDT, PSDB, PTB, PSB e mais alguns) e á esquerda sentam-se os dois Partidos Comunistas (o Brasileiro e o do Brasil, respectivamente PCB e PC do B) e o maioritário PT. Apesar da diversidade de frutas na quinta, o sumo é pouco e ácido. O clientelismo eleitoral predomina neste cenário e os deputados, estaduais e federais, ficaram “perplexos e atónitos” com os recentes protestos.
   
Este cenário tem efectivamente de ser alterado e Dilma Roussef tem a percepção de que não é possível aprofundar as reformas impulsionadoras da transformação social, sem primeiro alterar o cenário institucional. Pendente continua o projecto de reforma-agrária, preso na máquina burocrática. Este ano interromperam a demarcação das terras indígenas e um conjunto de “representantes do povo” pretende estender a actividade mineira a céu aberto a toda a Amazónia. Foram negados mais recursos aos sectores da Saúde e da Educação, deixaram deteriorar os transportes públicos colectivos e beneficiaram as empresas privadas de transporte, que não levam em conta as necessidades de deslocação da maioria da população e que limitam os horários, por questões de rentabilidade.
   
O governo do PT, pela voz de Dilma, anunciou que o segundo semestre deste ano seria um “festival de licitações” para represas, autoestradas, portos e outras infraestruturas. O festival teve inicio ainda no primeiro semestre com a adjudicação, em Maio ultimo, de blocos de exploração petrolífera num território onde residem 76 assentamentos para a reforma agrária, no nordeste do país, sem que tenham sido apresentadas quaisquer alternativas aos camponeses. O festival irá continuar já de seguida com as negociações que cederam terras às multinacionais mineiras e do agronegócio (agroindústria e transgénicas agrícolas), provocando uma miríade de conflitos com os camponeses, os Sem-Terra e as comunidades indígenas, atropelando todos os contratos anteriores, feitos com estes sectores e suspendendo o diálogo com as estruturas representativas dos camponeses, pequenos proprietários e comunidades indígenas.  

Nos grandes centros urbanos, os “megaeventos” (curioso como os sinais de decadência de um sistema social, são sempres representados através de actos de monumentalidade) levaram ao corte e á suspensão dos projectos sociais desportivos e culturais nas favelas e bairros periféricos, suspenderam a reforma urbana e financiaram, com os dinheiros públicos obtidos nestes cortes, a especulação mobiliaria e o parasitismo virulento desta actividade vergonhosa, formada por alcateias de vigaristas e que têm por detrás e pelo lado os gangues do narcotráfico e os intermediários das lavagens de dinheiro.
    
Dilma tem razão quanto á necessidade de “reformar o Estado”, quando o Congresso se dá ao luxo de ameaçar, através de uma emenda constitucional, com o término das investigações sobre a corrupção (PEC 37) e com o abandono da demarcação das terras indígenas (PEC 215). Tudo isto é de facto um “festival”, rasco e de mau gosto. A reforma de estado tem cabimento e será uma alteração fundamental, mas se for um instrumento que implique profundas alterações na política brasileira, a começar pela alteração fundamental: mudar a política desenvolvimentista, que arrasta o Brasil para um imenso casino, onde se passeiam as elites do PT e a velha oligarquia, de braço dado às novas elites BRICS, com os seus tiques de novo-riquismo, enquanto os restantes cidadãos ficam á porta de entrada do casino, ou quanto muito são porteiros do mesmo.

A surpresa manifestada pelos três poderes institucionais perante os protestos é revelador da urgência da reforma de estado, pois revela o quanto decrépitos e esclerosados são os seus actores principais. Outra coisa não poderia suceder depois de anos de vandalismo e de manipulação, com que os trabalhadores, os indígenas, os pobres, os desempregados, foram tratados, tanto nas áreas urbanas, como nas áreas rurais. Pensavam, os surpreendidos actores institucionais, que bastariam os programas contra a fome e a pobreza, para colocar um sorriso na face de cada brasileiro? Pensariam, os atónitos responsáveis políticos, que o Brasil é só futebol e negociatas tropicais? Será que achavam, mesmo, que depois de uma serie de medidas e de políticas irrisórias, a cidadania brasileira (rica e fértil em lutas históricas pelos seus direitos), desprezada e enganada durante anos por discursos de conciliação, não acabaria por dar voz ao seu sentir? 

IV - As propostas de Dilma para responder às reivindicações da rua, não serão as mais apropriadas para os ouvidos dos manifestantes, é certo, mas evidenciam as contradições no seio da elite dirigente. A primeira proposta é a da Responsabilidade Fiscal. Mas esta é uma mensagem dirigida mais ao capital financeiro internacional, do que directamente às reivindicações populares. A Camara dos Deputados, numa tentativa de resposta imediata aos protestos sobre os gastos sociais, aprovou no dia 26 de Junho uma medida que destina 75% das royalties do petróleo para a educação e 25% para a saúde.

A priori estes números podem soar bem aos mais incautos (e aos que andam de má fé, pela vida fora) só que esta questão das royalties é um daqueles pântanos lamacentos, onde as aparências iludem e as ilusões parecem-se. É que o Estado brasileiro apenas obtém 8% da renda petrolífera, nestes contratos. Ora, atendendo a que os recursos necessários aos serviços públicos básicos são absorvidos pela Divida Publica (que absorveu 42% do orçamento para 2013), é manifesto a ineficácia desta medida. Esta é portanto uma daquelas medidas para acalmar a “populaça” e deixar passar a “arruaça”. Ou seja, areia para os olhos.

A segunda proposta - a primeira de que Dilma falou, logo no início dos protestos - já falámos dela: a reforma do Estado. É uma proposta real e conducente a uma transformação profunda do cenário político brasileiro. Mas o poder judicial já fez saber que não quer nada com mecanismos de reforço da soberania popular e o centro direita através do PMDB, aliado do PT no governo, rejeitou a possibilidade de uma Constituinte. As experiencias constitucionais da Venezuela, Bolívia e Equador são um leviatã para a oligarquia brasileira e para os meios que vivem dos sofisticados esquemas negociais da sociedade brasileira.

Outra das propostas é a de catalogar a corrupção como crime hediondo. O facto de ter sido aprovada no Congresso, no entanto, não resolve grande coisa. Para os corruptos tanto faz que os seus actos sejam considerados hediondos, ou não. O efeito é o mesmo e provavelmente até faz subir a parada. O combate á corrupção não se prende apenas com a figura e o molde que lhe possamos atribuir em temos judicias, mas tem de ser encarado como uma guerra de longa duração, contendo varias frentes, feita por leis de excepção e por politicas concretas, que permitam não apenas varrer da superfície do jardim a erva daninha, mas matar a raiz. Talvez a reforma de estado seja um passo mais importante, que possa criar no novo quadro constitucional, as instituições que constituirão a linha da frente nessa guerra prolongada. As medidas anticorrupção têm de ser sentidas por toda a sociedade e em todas as esferas sociais. Implicam o mundo laboral e empresarial e também um poder judicial eficaz e realmente autónomo. Implicam saneamentos da administração pública central, estadual e local. Tudo o resto são paliativos, paninhos quentes que arrefecem depressa.   

V - Pouco importa, agora, saber qual o caminho dos protestos, se serão corroídos e extintos ou se serão absorvidos na ordem institucional, ou se constituirão uma qualquer alternativa politica. O importante destes movimentos é a sua autonomia e a sua praxis de participação. A democracia brasileira, tal como a grande maioria das sociedades democráticas actuais, assenta nos mecanismos de representatividade e não no exercício directo da soberania popular. A longo prazo este mecanismo é fatal para a democracia, que não consegue obter os equilíbrios necessários para o seu funcionamento, pois escamoteia a base do sistema, a soberania popular.   Estes movimentos preenchem o vazio institucional que está no lugar dos mecanismos participativos e do equilíbrio entre representação e participação. A questão não se coloca entre rua e parlamento, mas sim entre a decisão da rua, a sua esfera directa e a definição da sua esfera partilhada e a decisão do representante, da sua esfera directa e da sua esfera partilhada.

O problema não é a opção entre reforma agrária e agroindústria, mas sim a realização da reforma agrária, projecto de socialização da terra e a execução dos projectos agroindustriais, assentes na capitalização das terras e como estes projectos se podem envolver, não numa esfera comum, mas nas suas esferas de actuação. Não serve de nada parar a reforma agraria, a não ser que se pretenda que o Brasil sofra eternamente um atraso estrutural na sua agricultura e não leva a lado algum escamotear os benefícios da agroindústria, a não ser que se pretenda o atraso tecnológico na agricultura do país e a ausência dos factores de elevação da produtividade e rentabilidade. São diferentes esferas e diferentes respostas, mas ambas necessárias á criação de riqueza e ao desenvolvimento. Não é uma opção entre extracção mineira e comunidades indígenas, mas de como inserir o necessário sector mineiro no ambiente, de como envolver a comunidade indígena no desenvolvimento e de como a sua participação nas decisões é crucial.

Os caminhos abertos são vastos, mas não constituem novidade, nem são nenhuma reinvenção da roda. São apenas os instrumentos possíveis á cidadania de intervir, de participar nas decisões e de decidir e afirmar a sua decisão, perante o vazio institucional que foi criado em torno da soberania popular e que apenas favorece as elites económicas e politicas e a sua respectiva circulação e renovação.

O Brasil demonstrou, nestes protestos, que não é só um pais tropical abençoado pelo Capital, que não é só futebol (como pretendem os corruptores organismos internacionais futebolísticos, que não passam de centros de lavagem de dinheiro e cujo lugar deveria ser no banco dos réus, dos tribunais internacionais) samba e Carnaval. O Brasil, afinal, também é (e os protestos assim o demonstram) …futuro.
      
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