Pepe Escobar –
Brasil de Fato, opinião
O ‘banho de sangue
que não é banho de sangue’ no Egito mostrou que as forças mais linha-dura de
supressão e de corrupção reinam supremas, enquanto interesses estrangeiros – a
Casa de Saud, Israel e o Pentágono – apoiam a estratégia impiedosa dos militares.
Pare. Olhe as
imagens. São cadáveres alinhados num necrotério improvisado. Como se
justificaria esse horrendo banho de sangue no Egito? Escolha seu lado. Ou é
remix egípcio da Praça Tiananmen, ou é banho de sangue que não é banho de
sangue comandado pelos golpistas do golpe que não é golpe, com o objetivo de
combater “o terror”.
Com certeza não foi
operação para desalojar gente – como o Departamento de Polícia de New York
‘evacuando’ o pessoal de Occupy Wall Street. Como tuitou um jornalista da [empresa]
Sky, parecia mais “um vasto assalto militar contra civis desarmados” usando
tudo, de tanques e gás lacrimogêneo até atiradores com armas de precisão no
alto dos prédios.
Daí o grande número
de mortos assassinados indiscriminadamente – o fogo cruzado de números vai de
algumas poucas centenas (segundo o “governo de transição”) a pelo menos 4.500
(segundo a Fraternidade Muçulmana), incluindo pelo menos quatro jornalistas e
Asmaa, 17 anos, filha de Mohamed El Beltagy, alto dirigente da Fraternidade Muçulmana.
El Beltagy, antes
de ser preso, disse uma frase crucial: “Se vocês não tomarem as ruas, ele [o
general Abdul-Fattah al-Sisi, líder do golpe que não é golpe que nomeou o
governo de transição] fará do Egito outra Síria.”
Errado. Sisi não é
Bashar al-Assad. Que ninguém espere clamores ocidentais apaixonados, a exigir
“ataques a alvos predefinidos” ou uma zona aérea de exclusão sobre o Egito.
Sisi pode até ser ditador militar que mata o próprio povo, mas é dos “nossos”
filhos-da-puta.
“O que nós dizemos
é e vale”
Consideremos as
reações. Os letárgicos poodles da União Europeia clamaram por “moderação” e
descreveram a coisa como “extremamente preocupante”. Declaração da Casa Branca
dizia que o governo de transição deve “respeitar direitos humanos” – o que,
parece, pode ser interpretado como dronagem equivalente à dronagem de
Manning/Snowden, mas da escola Paquistão/Iêmen de direitos humanos.
Esse patético
arremedo de diplomata, o secretário-geral da OTAN Anders Fogh Rasmussen, pelo
menos foi claro: “O Egito é importante parceiro da OTAN através do Diálogo
Mediterrâneo.” Tradução: a única coisa que realmente nos interessa é que
aqueles árabes façam o que os mandamos fazer.
Despido de qualquer
retórica – de indignação ou outra –, o ponto chave é que Washington não
suspenderá a ajuda anual de $1,3 bilhão para o exército de Sisi, faça ele o que
fizer. Sisi, esperto, já declarou uma “guerra ao terror”. O Pentágono o apoia.
E o governo Obama também já embarcou nessa – relutantemente ou não.
Vejamos agora quem
está revoltado. O Qatar, como se podia prever, condenou o massacre; afinal, o
Qatar estava financiando o governo de Mursi. A Frente de Ação Islâmica, braço
político da Fraternidade Muçulmana na Jordânia, encorajara os egípcios a manterem
o protesto para “derrotar a conspiração” organizada pelo antigo regime – de
mubarakistas sem Mubarak.
A Turquia – que
também apóia a Fraternidade Muçulmana – exigiu que o Conselho de Segurança da
ONU e a Liga Árabe agissem imediatamente para deter “um massacre”; como se a
ONU e a Liga Árabe controlada pelos sauditas fossem interromper suas três horas
de almoço grátis para fazer alguma coisa.
O Irã –
corretamente – alertou para o risco de guerra civil. Não implica que Teerã
esteja apoiando cegamente a Fraternidade Muçulmana, especialmente depois de
Mursi ter incitado os egípcios a abraçarem uma jihad contra Assad na Síria.
Teerã observou é que a guerra civil já está em curso.
Agora, é cuidar da
matança
“Bizantino” é
pouco, para explicar o jogo de passar adiante a responsabilidade. O banho de
sangue que não é o banho de sangue aconteceu quando o “governo” nomeado por
Sisi havia prometido começar a construir uma “transição” apoiada pelos
militares que seria politicamente muito inclusiva.
Mas, farto já de seis
semanas de protestos que denunciavam o “golpe que não é golpe”, o governo de
transição mudou a narrativa e decidiu não deixar ninguém vivo para contar a
história.
Segundo as análises
mais bem informadas da mídia egípcia, o vice-primeiro-ministro Ziad Baha Eldin
e o vice-presidente para assuntos estrangeiros Mohamed El Baradei queriam pegar
leve contra os manifestantes; mas o ministro do Interior general Mohammad
Ibrahim Mustafa e o ministro da Defesa – o próprio Sisi – queriam solução
medieval.
O primeiro passo
foi culpar preventivamente a Fraternidade Muçulmana pelo massacre – bem quando
a Fraternidade Muçulmana culpava o grupo Jemaah Islamiyah por usar Kalashnikovs
e queimar igrejas e postos da Polícia.
A principal razão
pela qual o “banho de sangue que não é banho de sangue” foi deflagrado nessa
quarta-feira é que a Fraternidade Muçulmana tentou invadir o eternamente temido
Ministério do Interior. Ibrahim Mustafa, linha duríssima, nunca admitiria.
Os bandidos de Sisi
indicaram 25 governadores provinciais, dos quais 19 são generais, bem a tempo
de “recompensar” os altos escalões militares e, assim, solidificar o “estado
profundo” egípcio, ou, de fato, o estado policial. E para coroar o “banho de
sangue que não é banho de sangue”, os bandidos de Sisi declararam lei marcial
por um mês. Nessas circunstâncias, a renúncia de El Baradei, queridinho do
ocidente, foi pouco, e nem tirou o sono de Sisi.
O espírito original
da Praça Tahrir está agora morto e enterrado, como disse um iemenita
miraculosamente ainda não assassinado pelos drones de Obama, Tawakkul Karman,
Prêmio Nobel da Paz.
A questão chave é
saber quem lucra com um Egito super polarizado, com uma guerra civil que jogue
a bem organizada e fundamentalista Fraternidade Muçulmana contra o “estado
profundo” controlado pelos militares.
As duas opções são
igualmente repulsivas (além de incompetentes). Mas os vencedores locais são
facilmente identificáveis: a contrarrevolução – os mubarakistas duros de matar,
por exemplo; um bando de oligarcas corruptos; e, mais que todos os outros, o
próprio estado profundo, ele mesmo.
Reina a repressão
mais linha-dura. A corrupção reina. E reinam forças estrangeiras (como a Arábia
Saudita que até agora é quem está pagando a maior parte das contas, com os
Emirados Árabes Unidos).
Internacionalmente,
os grandes vencedores são a Arábia Saudita (que deslocou o Qatar); Israel
(porque o exército egípcio é ainda mais dócil que a Fraternidade); e – quem
poderia ser?! – o Pentágono, cafetão do exército egípcio. Nem em viagem pela
Via Láctea haverá quem diga que esse eixo Casa de Saud/Israel/Pentágono seria
“bom para o povo egípcio”.
Nosso homem é o
Xeique Al-Tortura
Recapitulemos. Em
2011, o governo Obama não disse, até o último minuto, que “Mubarak tem de
sair”. Hilary Clinton queria uma “transição” liderada pelo espião-chefe e ativo
da CIA, Omar Suleiman – conhecidíssimo na Praça Tahrir como “Xeique
Al-Tortura”.
Naquele momento, a
piada que circulava em círculos seletos em Washington contava que o governo
Obama já era garota-de-torcida da Fraternidade Muçulmana (aliada do Qatar).
Agora, como io-iô, o governo Obama tenta encontrar jeito de distribuir a nova
narrativa – o ‘leal’ exército egípcio, que corajosamente elimina a Fraternidade
Muçulmana ‘terrorista’, para assim “proteger a revolução”.
Para começo de
conversa, nunca houve revolução alguma; foi-se a cabeça da serpente (Mubarak),
mas a serpente continuou viva e chicoteando. Agora, apareceu a nova serpente,
em tudo igual à velha. Além do mais, é fácil vender à arquibancada desinformada
que Fraternidade Muçulmana = al-Qaeda.
O líder supremo do
Pentágono Chuck Hagel passou o dia 3 de julho grudado ao telefone com Sisi,
enquanto acontecia o golpe que não é golpe. O pessoal do Pentágono quer muito
que todos acreditemos que Sisi garantiu a Hagel que logo estaria por cima da
carne seca. Praticamente 100% do governo, na Beltway, engoliu essa. Daí brotou
a versão oficial em Washington do “golpe que não é golpe”. Tim Kaine, da
Virginia, na Comissão de Relações Exteriores do Senado, até elogiou muito os
Emirados Árabes Unidos e a Jordânia, aquelas democracias modelares, pelo
entusiasmo com que acolheram o “golpe que não é golpe”.
É importante listar
os cinco países que explicitamente endossaram o “golpe que não é golpe”. Quatro
deles são petromonarquias do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG, também
conhecido como Clube Contrarrevolucionário do Golfo: Arábia Saudita, Emirados
Árabes Unidos, Kuwait e Bahrain. E o quinto é aquela monarquiazinha, a
Jordânia, que o CCG quer anexar ao Golfo.
Ainda mais patético
que alguns ditos liberais egípcios, alguns esquerdistas, alguns nasseristas e
sortimento variado de progressistas que defenderam a sede de sangue de Sisi,
foi o vira-casaca Mahmoud Badr, fundador do Tamarrod – o movimento que liderou
as demonstrações massivas que levaram à derrubada de Mursi. Em 2012,
esconjurava a Arábia Saudita. Depois do golpe, prostrou-se em homenagem. Esse,
pelo menos, sabe quem paga as contas.
E há também Ahmed
al-Tayyeb, o Grande Imã de al-Azhar, o Vaticano do Islã sunita. Disse que
“Al-Azhar (...) não sabe dos métodos usados para dispersar os protestos, só
vimos o que a televisão mostrou.” Sandice. Ele várias vezes elogiou Sisi.
Bato meus cílios...
e você desaba
Não há outro modo
de dizer isso: do ponto de vista de Washington, os árabes que se matem uns os
outros até o dia do Juízo Final, e tanto faz que sunitas matem xiitas, xiitas
matem sunitas, jihadistas contra secularistas, camponeses contra urbanizados,
egípcios contra egípcios. A única coisa que conta são os acordos de Camp David;
e ninguém tem licença para antagonizar Israel.
Assim sendo, está
ótimo que os subalternos de Sisi em coturnos tenham pedido que Israel mantenha
seus drones próximos da fronteira, para que possam prosseguir em sua “guerra ao
terror” no Sinai. Para todas as finalidades práticas, Israel governa o Sinai.
Mas cancelou-se uma
entrega de F-16s ao exército de Sisi. Na vida real, todas as vendas de armas
dos EUA no Oriente Médio têm de receber “autorização” de Israel. Pode-se
portanto conjecturar que Israel – pelo menos por hora – ainda não está muito
segura sobre quais são, de fato, os planos de Sisi.
É muito instrutivo
ler o que pensa Sisi sobre “democracia” – e escreveu quanto estudava no War
College, nos EUA. O homem é essencialmente islamista – mas, acima de tudo,
anseia pelo poder. E os Irmãos da Fraternidade Muçulmana interpuseram-se no
caminho dele. Tiveram de ser aniquilados e descartados.
A “guerra ao
terror” de Sisi é provável sucesso estrondoso como slogan de Relações Públicas,
para legitimar sua candidatura a um mandato popular. Está tentando aparecer na
foto como um novo Nasser. É Sisi o Salvador, cercado por um bando de
Sisi-zetes. Um colunista escreveu no jornal Al-Masry Al-Youm que Sisi nem
precisa ordenar: é só ele “bater os cílios”. A campanha Sisi-para-presidente já
está em andamento.
Quem conheça os
ditadores cabeça-de-lata que os EUA promoveram na América Latina nos anos 1970s
sabe farejá-los de longe. Não é Salvador. Não passa de um Al-Sisi-nêitor,
Al-Sisi-no – mais um inglório ditador cabeça de prego, onde meu colega Spengler
definiu, sem meias palavras, como uma república de bananas, sem bananas.
Tradução: Coletivo
Vila Vudu
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