domingo, 18 de agosto de 2013

As contradições da emancipação (Equador) e as trevas da submissão (Honduras)

 

Rui Peralta, Luanda
 
I - Em Maio de 2007, quatro meses depois se ter tornado presidente do Equador, Rafael Correa anunciou a criação de uma Comissão da Verdade, presidida por Elsie Monge, presidente da Comissão Ecuménica dos Direitos Humanos (CEDHU). O objectivo da Comissão da Verdade era "inquirir, esclarecer e impedir a impunidade nos feitos violentos e nas violações dos direitos humanos atribuídos a agentes do Estado", particularmente no período 1984-1988, durante o governo de León Febres Cordero, que governou o país com revolver á cintura.
 
Latifundiário, Cordero via o Equador como mais uma das suas numerosas fazendas. O seu amigo pessoal, Ronald Reagan – na época presidente dos USA – convenceu-o a aplicar a receita do FMI. Conhecedor de que estas receitas iriam gerar protestos e uma eventual revolta generalizada, aproveitou a existência de uma guerrilha pouco numerosa, que se implantava no terreno e lançou os serviços de segurança numa escalada repressiva sem precedentes.  
 
Três anos depois, em 2010, a Comissão concluiu o relatório, registando 831 violações dos direitos humanos, que afectaram 456 vítimas, assim como os nomes dos principais oficiais responsáveis pelas torturas, interrogatórios e execuções. Algumas destas prácticas foram observadas nos governos seguintes, mas 70% dos crimes mencionados no relatório ocorreram durante o mandato de Cordero, que criou um grupo clandestino (o SIC-10) encarregado das “tarefas sujas” no seio do Serviço de Investigação Criminal.  
 
O SIC-10 dependia directamente do Ministro do Interior, Luís Robles Plaza e funcionava em coordenação com as Forças Armadas, assim como estabeleceu operações com a INTERPOL e com numerosos governos estrangeiros, em particular com a Colômbia, Chile, Peru, Costa Rica, USA e Espanha. Os seus operacionais foram treinados pela MOSSAD israelita e segundo declarou á Comissão um antigo membro do SIC-10, os instrutores da MOSSAD ensinavam técnicas de interrogatório e tortura.

Em nome do Estado, o Presidente Correa pediu perdão às vítimas e ao povo equatoriano. No mês de Fevereiro deste ano o Procurador-Geral da Republica, Galo Chiriboa, ordenou a apreensão de cerca de 150 mil páginas, conservadas nas caves da Policia Judiciária e a 5 de Junho anunciou publicamente os nomes dos membros oficiais do SIC-10. Além disso prometeu que os implicados em 136 casos de violações dos direitos humanos seriam acusados, assim como os executores de 456 assassinatos políticos.
 
Alguns responsáveis do SIC-10 já morreram e a grande maioria encontra-se na reforma, como Fausto Flores, coronel e responsável da luta contra o tráfico de droga numa província do Equador; Enrique Amado Ojeda, chefe do SIC-10 na província de Pichincha, que atingiu a patente de general da polícia; Mário Pazmiño, nomeado director das informações do Exército e demitido pelo Presidente Correa, devido á sua proximidade com a CIA. Byron Paredes, que foi nomeado coronel, é o único que se encontra a cumprir pena por tráfico de droga. 
 
Depois da leitura do relatório o Presidente Correa afirmou: "Os actos violentos são imprescritíveis e não são susceptíveis de serem objecto de reduções de pena nem de amnistias, para construir uma sociedade cuja bandeira de luta contra a impunidade permitirá ao Equador ser um território de paz.”
 
De agora em diante a batalha prossegue nos tribunais.
 
II - Se no plano judicial, caminha a verdade histórica do Equador, no plano constitucional garante-se o futuro do país. As Constituições são sínteses históricas que cristalizam a acumulação de processos sociais e plasmam uma determinada forma de entender a vida social. Não são as Constituições que fazem as sociedades, mas sim as sociedades que elaboram as Constituições e as adoptam como contracto social, como faróis que determinam objectivos e como mapas indicadores de rotas a seguir.
 
O grande inimigo das Constituições é o formalismo, ou melhor, a legislação produzida fora do seu espirito e que apresenta determinados princípios constitucionais como formais. Neste sentido os governos conseguem fazer passar decretos, leis e normas anticonstitucionais, fazendo da Constituição tábua rasa, porque argumentam que determinadas garantias constitucionais são formais e impraticáveis. Desta forma as Constituições acabam por tornar-se meras cartas ocas, vazias de sentido, mantas de retalhos ensanguentados pelas punhaladas consistentes dos seus adversários. 
 
A Constituição equatoriana de 2008, redigida em Montecristi e por isso conhecida por Constituição de Montecristi, foi elaborada, apresentada e maioritariamente aprovada pela soberania popular como um meio e um fim, tendo em vista as transformações estruturais em curso no Equador, conhecidas por Revolução Cidadã. Construção colectiva de um novo contracto de convivência social e ambiental, a Constituição de Montecristi propõe a construção de novos espaços de liberdade e de igualdade, rompendo os cercos que tentam impedir a sua vigência. O seu conteúdo é composto por múltiplas propostas impulsionadoras de transformações de fundo, construídas através de décadas de lutas sociais e de resistência, que articularam diversas agendas alternativas de desenvolvimento como o Bem Viver, o Estado Plurinacional, a consolidação e ampliação dos direitos individuais e colectivos, os direitos ambientais e outros princípios e valores colectivos.
 
Todos os projectos transformadores são portadores de contradições e comportam o contraditório. O contexto em que se gera o processo transformador é transportado para o interior do processo e as contradições do contexto cruzam-se com as contradições da transformação. Um exemplo destas contradições pode ser verificado na questão das comunidades indígenas. A Constituição estabelece a consulta como direito de todos os equatorianos, reconhecendo dentro deste princípio que a consulta aos povos indígenas está sujeita ao direito internacional, conforme a Declaração das Nações Unidas sobre Direitos e Povos Indígenas e a jurisprudência da Corte Interamericana.
 
Acontece que o incumprimento das regras constitucionais, muitas vezes efectuado pelo governo equatoriano, leva a conflitos concretos com estas comunidades, geralmente surgidos em torno da questão mineira. São dinâmicas inerentes aos processos de desenvolvimentos, embora também possam denotar uma tentação desenvolvimentista por parte do executivo equatoriano. São tensões latentes, que indiciam contradições mais profundas, transportadas de contextos anteriores e que se plasmam agora no processo transformativo.    
 
A ambiguidade fundacional da nação equatoriana, os seus modelos de Estado-nação subalterno, periférico, suportados por uma lógica colonial e gerador de uma teia de relações sociais assentes no modelo cultural da colonialidade do poder, são factores de exclusão que limitam o desenvolvimento e o processo de transformação em curso. A logica da emancipação é movida pela necessidade de superar os elementos pré-coloniais, coloniais e pós-coloniais, ou seja a Tradição, elemento cultural de inibição, a Oligarquia e as Elites criadas pelo longo processo de acumulação que caracteriza os estados periféricos. Mas como os processos de acumulação chegaram ao seu fim (daí os processos de restruturação que caracterizam a actual fase, a que por comodismo, muitos denominam neoliberal) também estes novos elementos criados pela pós-acumulação, actuais, têm de ser superados. Só que os elementos pós-acumulação são predominantes na economia-mundo, pelo que eles tornam-se inerentes aos processos de emancipação. 
 
A construção de um outro Estado, de uma forma-Estado que assuma desde a liberdade e a igualdade as múltiplas diversidades existentes, maioritariamente marginalizadas e subjugadas, concretiza-se no plano constitucional equatoriano sob a forma de Estado Plurinacional. Desta forma são superados os elementos pré-coloniais, plasmados pela Tradição, de uma forma participativa, que insere os povos indígenas no processo de transformação e que em simultâneo representa a sua própria transformação, iniciando um processo de aculturação orgânico, essencial para a emancipação real e efectiva. Por sua vez o Estado Plurinacional é também superador do elemento colonial, originador da Oligarquia.
 
Desta forma a sociedade equatoriana sofre um duplo processo de transformação cultural, que elimina a colonialidade, factor cultural dominante durante o processo de acumulação iniciado pela independência, que manteve inalteráveis as relações coloniais. Este não é um mero processo de modernização do Estado, incorporando burocraticamente o indígena e o afro-equatoriano. O Estado Plurinacional assume os códigos culturais e a praxis das nacionalidades indígenas e das comunidades afro-equatorianas, incorporando-os como actores no processo colectivo da tomada de decisões. O governo de Correia tem dados passos tímidos neste sentido, o que origina a actual conflitualidade na região mineira. Ou seja o facto de não se estar a assumir a forma-Estado plasmada na Constituição, o Estado Plurinacional, impede o avanço da Revolução Cidadã e da afecta em particular a política de desenvolvimento do Equador.
 
Mas porquê esta “timidez” por parte do governo de Correa? Devido às forças centrífugas do período pós-acumulação, originadas pelas políticas de restruturação dos mercados internacionais e lançadas pelos governos anteriores no Equador, o chamado neoliberalismo. As novas elites surgidas durante esse período assumiram estrategicamente posições no interior da Revolução Cidadã (muitas das reivindicações deste processo também são do seu interesse e são suas reivindicações). A forma das suas reivindicações e intenções imperarem consiste em impedirem a construção do Estado Plurinacional, mantendo a Revolução Cidadã no âmbito do Estado de Direito, coabitando com o elemento oligárquico e transformando a tradição em factor de domínio e exclusão.
 
O Estado Plurinacional implica novas instituições participativas e um novo papel da representação. A relação horizontal de poder criada pelo Estado Plurinacional é a consequência da democratização do aparelho de Estado, do assumir de novos espaços comunitários e de formas de organização alternativas, no plano social, económico e politico. Ora este processo de repensar e aprofundar a democracia e levá-la além da sua cristalização no Estado de Direito, é no actual momento a grande frente de combate da Revolução Cidadã.
 
III - O Bem Viver, outro princípio da Constituição de Montecristi, é uma alternativa subjacente às reivindicações populares, consubstanciadas na Revolução Cidadã e complementar do desenvolvimento. Não se trata de um pacote de medidas, ou de um conjunto de políticas e instrumentos indicadores para sair do subdesenvolvimento, nem sintetiza uma proposta cultural, unidimensional, mas antes de um conceito plural, pluridimensional. O seu postulado de harmonia com a Natureza, oposto ao conceito de acumulação e regresso aos valores de uso, abre a porta á formulação de novos valores e alternativas de vida e permite a aculturação a partir do interior da identidade cultural. É, portanto, uma proposta de alteração civilizacional.
 
Constitui, o Bem Viver, um ponto de partida para construir novas políticas de desenvolvimento e superar as aberrações do Produto Interno Bruto (PIB) - consequência do desenvolvimento assimétrico - assentando num Índice de Desenvolvimento Humano, indicador de uma política de desenvolvimento integrado e participativo que implica a ruptura com a lógica pós-acumulativa. Mas essa ruptura não é, ainda, assumida na praxis governativa, tendo as razões das hesitações do executivo equatoriano a mesma raiz da aplicação do Estado Plurinacional. É que o momento de transição vivido no Equador é uma contradição latente entre os novos princípios constitucionais, consignados pela Revolução Cidadã e os velhos princípios da colonialidade, assentes no Estado de Direito.
 
A lista de incongruências é reveladora das distintas intenções entre os mandatos constitucionais e a prática governativa, ainda marcada por uma visão desenvolvimentista e pelos tiques das novas elites, que assumem uma postura neoliberal e preferem a continuidade da forma-Estado de Direito e da formulação economicista do PIB, evitando a visão humanista da Revolução Cidadã sobre a actividade produtiva. Da resolução desta contradição dependerá a continuidade do processo emancipador do Equador.
 
Se o Bem Viver e o Estado Plurinacional, assim como a própria Revolução Cidadã são objectivos a concretizar ou meros slogans próprios de uma grande campanha manipuladora, uma operação de marketing, veremos nos próximos tempos, quando as tensões contraditórias estiverem ou mais distendidas ou pelo contrário, mais retesadas e maior o quantitativo de incongruências.       
 
Para sobreaviso ficam estas palavras do Presidente Correa, ditas numa entrevista datada de 15 de Janeiro de 2012: “no somos anticapitalistas, no somos antiyanquis, no somos antiimperialistas”.
 
Ao não ser tanta coisa, o que será então?
 
IV - Mas se os ventos emancipadores sopram fortes no Equador, nas Honduras, pelo contrário, assiste-se a um retrocesso social e politico. Nas ruas, a morte de defensores de direitos humanos, de líderes camponeses, de jornalistas e as violações de mulheres, formam parte do quotidiano de violência. Esta realidade assume contornos preocupantes desde que, a 28 de Junho de 2009, um golpe de Estado depôs o presidente Zelaya e colocou no poder o latifundiário Roberto Micheletti. Desde esse momento a realidade deste pequeno país da América Central, com 8 milhões de habitantes, que faz fronteira com a Guatemala, El Salvador e Nicarágua, retornou ao pesadelo de outros tempos.     
 
Latifundiários e militares, ou seja a oligarquia e o seu suporte repressivo, com o apoio dos USA, puseram fim a um período de democracia e de transformações sociais, que passava por um processo de alteração constitucional e pela reforma agrária. A impunidade e a corrupção imperam e este ano as estatísticas apontam para um elevado índice de morte violenta: 89 em cada 100 mil habitantes. O Exército manda parar os autocarros, os militares entram nos restaurantes, identificam as pessoas e atacam as comunidades rurais em nome do combate ao narcotráfico, em operações conjuntas com a DEA (Agencia Antidroga dos USA)  
 
Militares e paramilitares patrulham as ruas e o Congresso aprovou uma lei que permite às forças armadas fazer tarefas de segurança local, operações para as quais os militares não estão preparados. É um país militarizado e a legislação antiterrorista é um meio para espalhar o terror e absolutizar as escutas telefónicas, penetrar nos sistemas informáticos pessoais e no correio eletrónico.
 
Grande parte das mortes são de militantes dos direitos humanos, de organizações camponesas, sindicalistas e membros do Partido Liberdade e Refundação, apoiante de Zelaya e a polícia limita-se a arquivar os casos, murmurando “que andavam metidos em algo”.        Após o golpe de estado foi criada a Frente Nacional de Resistência Popular e a luta apoderou-se das ruas, apesar do clima repressivo. Com a aproximação das eleições gerais, em Novembro deste ano, a situação torna-se mais crítica, uma vez que o Partido da Liberdade e da Refundação aparece como o principal favorito, coisa que a oligarquia não está disposta a aceitar. As Honduras são um país em guerra, uma guerra declarada pelo Estado contra o povo hondurenho. 
 
Mais de 28 jornalistas foram assassinados desde o golpe de Estado e mais de uma centena são perseguidos. Dezenas de órgãos de comunicação foram encerrados e cerca de uma centena de camponeses foram assassinados. Milhares de cidadãos hondurenhos exilaram-se em estados vizinhos e mesmo na Europa. Casos como o do jornalista e professor universitário Anibal Barrow, cujo corpo foi desmembrado e espalhado nas margens de um pequeno lago, em Villanueva, no departamento de Cortês. Barrow, de 65 anos, foi sequestrado a 24 de Junho, na cidade de San Pedro Sula, quando viajava na companhia de familiares. Os seus restos mortais foram encontrados 15 dias depois.
 
As Honduras ingressaram num tipo de violência de alto perfil, em que os jornalistas aparecem como os alvos a abater. Na lista negra surgem depois dos jornalistas, os pastores evangélicos, advogados, activistas dos direitos humanos, sindicalistas e activistas das organizações camponesas. 
 
Mas não serão estas as lições aprendidas na Escola das Américas? Afinal as Honduras são uma das herdades preferidas do Tio Sam e dos seus inquilinos da Casa Branca. E nas quintas do Tio os sobrinhos são capatazes. O resto é a capoeira, o curral e seus respectivos animais…
 
Fontes
Monge, Elsie "
Calvo Ospina,,  Hernando Tais-toi et respire. Torture, prison et bras d'honneur Bruno Leprince Editions, Paris, 2013
España Torres, Hugo  El testigo Ediciones Abya-Yala, Quito, 1996
Tapia, L. El estado de derecho como tiranía. CIDES-UMSA. La Paz (2011)
Cueva, A. Autoritarismo y fascismo en América Latina. Serie Cuadernos Políticos, Centro de Pensamiento Crítico. Quito: (2013)
Ospina, P. Ecuador: la participación ciudadana en el proyecto de Estado de Rafael Correa. Observatorio Latinoamericano 7. (2011) Instituto de Estudios de América Latina y el Caribe. Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Buenos Aires.
Rapport de la Commission de la vérité, Quito, mai 2010
 

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