Boaventura Santos
analisa crise política e vislumbra alternativa institucional para ela, mas
adverte: será necessária ação catalisadora das ruas
Boaventura de Sousa
Santos – Outras Palavras
A última cambalhota
do presidente de Portugal, Aníbal Cavaco Silva, mostra que o país atravessa um
momento de irracionalidade tal que torna tudo imprevisível. Os decisores
políticos não são irracionais mas as condições em que se resignam a operar
obrigam-nos a agir como se fossem. Para serem coerentes, as decisões políticas
têm de ter um só ponto de referência. Em democracia, esse ponto é a vontade dos
cidadãos, e os conflitos decorrem das diferentes interpretações dessa vontade.
Atualmente, em vez de um, há dois pontos de referência: a vontade dos cidadãos
e a vontade dos mercados financeiros. Nas condições presentes, as duas são
inconciliáveis.
Cavaco Silva disse
numa semana que era fácil conciliá-las e, na seguinte, que só a vontade dos
mercados conta. Um decisor deste tipo acabará por “ser decidido” por fatores
que o ultrapassam e que não pode prever. Dada a irracionalidade instalada, tais
fatores, vistos de fora, são afinal os mais previsíveis. Vou-me referir a
alguns deles.
1. Em condições de
tutela internacional, quem decide não é quem diz decidir e quem tem poder para
decidir não revela motu proprio os limites do seu poder. Por isso, as
alternativas ou a capacidade de manobra concretas só se revelam aos que se
dispuserem a questionar a tutela. Tal questionamento implica, neste caso, ter a
vontade dos cidadãos como único ponto de referência. Se tal questionamento
ocorrer, será possível prever uma agenda concreta pautada pelo seguinte. O que
há meses era evidente apenas para os dissidentes é hoje evidente para todos os
governantes europeus: as políticas de austeridade estão a conduzir ao desastre
a Europa e não apenas os países do sul; nos EUA, donde veio a ortodoxia
econômica e financeira que nos domina, o Estado não tem qualquer problema em
intervir na economia sempre que o mercado descarrila; a dívida, no seu atual
montante, é impagável; é técnica e politicamente complicado mas possível
recomprar parte da dívida abaixo do valor nominal com total proteção da dívida
que não pode ser tocada; o mesmo se diga de uma moratória ao pagamento do
serviço da dívida, enquanto durar uma negociação com os credores; a
mutualização europeia da dívida já está em curso e deve ser aprofundada; várias
condições do memorando da troika têm de ser alteradas em função das mudanças
macro-econômicas; em diferentes momentos foi isto que fizeram outros países
sufocados pela dívida, nomeadamente a Alemanha; é de todo legal que o Estado
acione os poderes que a crise lhe conferiu (depois de lhe tirar muitos outros);
assim, o Estado, ao recapitalizar alguns bancos, tornou-se o acionista
maioritário e pode acionar os poderes que tal posição lhe confere, sem
extrapolar do direito privado; o Estado pode introduzir por essa via alguma
política industrial com crédito direcionado para as pequenas e médias empresas
e certos setores da indústria.
2. A agenda que
acabei de descrever só pode ser levada à prática por um governo dotado de uma
legitimidade democrática reforçada, o que só é possível mediante eleições
antecipadas. A desastrada iniciativa de Cavaco e Silva teve apenas um mérito:
obrigar o Partido Socialista (PS) a mostrar a sua alternativa. Ela é hoje mais
clara. As medidas propostas pelo PS são muito positivas mas contêm uma
contradição: pressupõem uma reestruturação da dívida que envolva o seu montante.
Um acordo de incidência parlamentar com outros partidos de esquerda pode
reforçar a legitimidade para avançar por aí.
3. O capital
financeiro pressiona os Estados mas não o faz de modo uniforme. O poder
executivo tende a ser mais vulnerável, logo seguido do parlamento. Já os
tribunais, e, em especial, o Tribunal Constitucional (TC), são mais imunes a
tais pressões. Os despedimentos na função pública e os cortes nas pensões são
inconstitucionais e é de prever que o TC não se demita da sua função de último
garante da coesão social e da democracia consagradas na Constituição.
4. O mais
imprevisível pode, de repente, tornar-se o mais previsível. Refiro-me à revolta
dos cidadãos nas ruas e nas praças, inconformados com a indignidade a que as
instituições e os governos os sujeitam. Não há nenhuma sociedade que não
conheça a palavra Basta!
Sem comentários:
Enviar um comentário