António Marinho e
Pinto – Jornal de Notícias, opinião
A forma como os
tribunais têm decidido as recandidaturas de presidentes de câmaras municipais
que já cumpriram três mandatos consecutivos evidencia um problema da justiça
portuguesa para o qual tenho, desde há vários anos, alertado: os mesmos factos,
com as mesmas leis originam, nos nossos tribunais, com demasiada frequência,
sentenças diametralmente opostas. Os juízes decidem, afinal, como o faria
qualquer vulgar cidadão, ou seja, de acordo com aquilo que pensam, de acordo
com a sua idiossincrasia, a sua filosofia de vida, a sua ideologia. Só que um
juiz não é um cidadão qualquer; ele é acima de tudo um técnico qualificado que
foi preparado para exercer adequadamente a função constitucional de administrar
a justiça, o que exige, em primeiro lugar, uma correta interpretação da lei.
Infelizmente, isso está muito longe da nossa realidade judicial. O juiz decide
de qualquer maneira e, tal como o outro, imediatamente lava as mãos,
indiferente às respetivas consequências. Essa desresponsabilização conduziu à
pior de todas as situações que é a de as pessoas deixarem de acreditar na
administração da justiça e de terem confiança nos tribunais. A justiça
portuguesa passou a ser um totoloto: se o meu processo for distribuído a este
juiz a sentença será uma, mas se for distribuído àquele a sentença será outra.
Em vez de podermos prever a solução jurídica de um litígio com base na lei,
teremos de aguardar, na incerteza e na insegurança, a decisão do juiz, pois a
lei pouco ou nada vale perante o seu poder funcional. A demagogia sindicalista
que se apoderou das magistraturas depois do 25 de Abril conduziu a esta
situação.
Dirão alguns que a
disparidade de decisões é corrigida pelo mecanismo dos recursos, já que os
tribunais superiores acabariam por fazer uma boa administração da justiça,
revogando as más decisões e sufragando as boas. Só que a realidade das coisas
não é assim. Primeiro porque a maioria das decisões de primeira instância não
admite, sequer, recurso, pois, em Portugal, a dignidade de uma pretensão
judicial afere-se pelo seu valor económico, o que faz com que as pequenas
causas (mas não menos importantes) tenham sempre menos garantias processuais do
que as outras. Depois, porque nos tribunais de recurso se passa, demasiadas
vezes, o mesmo que na 1.ª instância: os mesmos factos com as mesmas leis
originam também acórdãos diametralmente opostos. Além disso, os magistrados têm
conseguido do Poder Político restrições legais cada vez maiores a essa garantia
de uma boa administração da justiça. Mas mesmo quando um recurso não é impedido
diretamente pela lei, ele acaba, muitas vezes, por se tornar impossível na
prática dados os seus custos incomportáveis para a generalidade das pessoas. O
mínimo que um cidadão terá de pagar, por exemplo, por um recurso para o
tribunal constitucional ultrapassa os dois mil euros, a que acrescerão as
igualmente usurárias custas dos outros tribunais. Assim, a justiça tornou-se um
privilégio apenas de alguns: dos ricos e dos indigentes que beneficiarem do
apoio judiciário.
Por outro lado, os
magistrados têm combatido de forma quase obscena o direito de recurso,
identificando-o quase sempre com as chamadas manobras dilatórias. E, não raro,
recorrem às mais descaradas mentiras para levarem a água ao moinho dos seus
privilégios corporativos. Para eles, a principal causa dos vergonhosos atrasos
na justiça já não é a demora dos magistrados em decidirem, mas sim o facto de
os cidadãos recorrerem das suas contraditórias decisões. Devido às
reivindicações dos magistrados o direito de recurso deixou, em alguns casos, de
ser uma garantia da lei para depender apenas da sua própria vontade. O que
acontece em processo civil com a chamada «dupla conforme» (denegação do direito
de recurso para o STJ quando a decisão de 2.ª instância confirmar uma decisão
de 1.ª instância) é disso um exemplo claro, apesar de não podermos ignorar o
elevado número de decisões do STJ que revogava, por má aplicação do direito,
decisões confirmadas em 2.ª instância. Em Portugal, o direito de recurso já não
é uma garantia da lei, mas sim uma graça concedida pelos magistrados.
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