segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Portugal: A IMPUNIDADE DO ERRO

 


António Marinho e Pinto – Jornal de Notícias, opinião
 
A forma como os tribunais têm decidido as recandidaturas de presidentes de câmaras municipais que já cumpriram três mandatos consecutivos evidencia um problema da justiça portuguesa para o qual tenho, desde há vários anos, alertado: os mesmos factos, com as mesmas leis originam, nos nossos tribunais, com demasiada frequência, sentenças diametralmente opostas. Os juízes decidem, afinal, como o faria qualquer vulgar cidadão, ou seja, de acordo com aquilo que pensam, de acordo com a sua idiossincrasia, a sua filosofia de vida, a sua ideologia. Só que um juiz não é um cidadão qualquer; ele é acima de tudo um técnico qualificado que foi preparado para exercer adequadamente a função constitucional de administrar a justiça, o que exige, em primeiro lugar, uma correta interpretação da lei. Infelizmente, isso está muito longe da nossa realidade judicial. O juiz decide de qualquer maneira e, tal como o outro, imediatamente lava as mãos, indiferente às respetivas consequências. Essa desresponsabilização conduziu à pior de todas as situações que é a de as pessoas deixarem de acreditar na administração da justiça e de terem confiança nos tribunais. A justiça portuguesa passou a ser um totoloto: se o meu processo for distribuído a este juiz a sentença será uma, mas se for distribuído àquele a sentença será outra. Em vez de podermos prever a solução jurídica de um litígio com base na lei, teremos de aguardar, na incerteza e na insegurança, a decisão do juiz, pois a lei pouco ou nada vale perante o seu poder funcional. A demagogia sindicalista que se apoderou das magistraturas depois do 25 de Abril conduziu a esta situação.
 
Dirão alguns que a disparidade de decisões é corrigida pelo mecanismo dos recursos, já que os tribunais superiores acabariam por fazer uma boa administração da justiça, revogando as más decisões e sufragando as boas. Só que a realidade das coisas não é assim. Primeiro porque a maioria das decisões de primeira instância não admite, sequer, recurso, pois, em Portugal, a dignidade de uma pretensão judicial afere-se pelo seu valor económico, o que faz com que as pequenas causas (mas não menos importantes) tenham sempre menos garantias processuais do que as outras. Depois, porque nos tribunais de recurso se passa, demasiadas vezes, o mesmo que na 1.ª instância: os mesmos factos com as mesmas leis originam também acórdãos diametralmente opostos. Além disso, os magistrados têm conseguido do Poder Político restrições legais cada vez maiores a essa garantia de uma boa administração da justiça. Mas mesmo quando um recurso não é impedido diretamente pela lei, ele acaba, muitas vezes, por se tornar impossível na prática dados os seus custos incomportáveis para a generalidade das pessoas. O mínimo que um cidadão terá de pagar, por exemplo, por um recurso para o tribunal constitucional ultrapassa os dois mil euros, a que acrescerão as igualmente usurárias custas dos outros tribunais. Assim, a justiça tornou-se um privilégio apenas de alguns: dos ricos e dos indigentes que beneficiarem do apoio judiciário.
 
Por outro lado, os magistrados têm combatido de forma quase obscena o direito de recurso, identificando-o quase sempre com as chamadas manobras dilatórias. E, não raro, recorrem às mais descaradas mentiras para levarem a água ao moinho dos seus privilégios corporativos. Para eles, a principal causa dos vergonhosos atrasos na justiça já não é a demora dos magistrados em decidirem, mas sim o facto de os cidadãos recorrerem das suas contraditórias decisões. Devido às reivindicações dos magistrados o direito de recurso deixou, em alguns casos, de ser uma garantia da lei para depender apenas da sua própria vontade. O que acontece em processo civil com a chamada «dupla conforme» (denegação do direito de recurso para o STJ quando a decisão de 2.ª instância confirmar uma decisão de 1.ª instância) é disso um exemplo claro, apesar de não podermos ignorar o elevado número de decisões do STJ que revogava, por má aplicação do direito, decisões confirmadas em 2.ª instância. Em Portugal, o direito de recurso já não é uma garantia da lei, mas sim uma graça concedida pelos magistrados.
 

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