quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Doutor Garcia: COMO TRABALHA O MÉDICO DE FAMÍLIA EM CUBA

 


Rodolfo Garcia, 50 anos, conhece bem a realidade dos sistemas de saúde pública de Cuba e Brasil, dois dos países em que já exerceu a medicina. Instrutor do curso destinado aos cubanos que irão atuar no programa Mais Médicos, ele está de volta ao Brasil com expectativas positivas de ajudar a melhorar o acesso da população carente à saúde. “Voltei porque me apaixonei pelo povo brasileiro”, afirmou à Carta Maior.
 
Najla Passos - Carta Maior
 
Brasília – Um ano antes de Brasil, Cuba e a Organização Pan-americana de Saúde (Opas) firmarem o polêmico contrato que permitiu a vinda dos cubanos para atuar no programa Mais Médicos, eles já se preparavam para enfrentar os desafios da saúde pública brasileira. Um dos instrutores do curso de formação que englobou ensino da língua portuguesa e realidade da saúde no Brasil foi o cubano Rodolfo Garcia, 50 anos, conhecedor dos sistemas de saúde dos dois países.

Com 26 anos de prática médica, uma especialização, três mestrados e um doutoramento recém-iniciado, Garcia trabalhou no Brasil de 2002 a 2005 e, agora, está de volta. Em Conceição do Araguaia, no sul do Pará, atuou a frente do Programa de Saúde da Família (PSF). Se orgulha de ter melhorado a qualidade de vida de muitos idosos. “Tenho muitas saudades dos meus velhinhos de lá”, disse à reportagem de Carta Maior, com lágrimas escorrendo pela face. “Me apaixonei pelo povo brasileiro. E por isso voltei”.

Ciente de que em um país continental como o Brasil os desafios da saúde pública são muito maiores do que na pequena ilha onde vive, ele aponta como a experiência cubana poderá ajudar, disseca o funcionamento do sistema de saúde baseado em prevenção, lista as doenças transmissíveis já erradicadas da ilha e explica porque, em Cuba, os pacientes não morrem na fila de espera por um leito. Ele também fala sobre suas expectativas quanto ao Mais Médicos. “Com a vontade política que estou vendo agora, vai no caminho certo”.

Em que circunstâncias você veio trabalhar no Brasil, na década passada?

Primeiramente, eu vim para o Amapá, como consultor de atenção básica, na frente de um grupo de 40 médicos, que viriam em seguida. Fiquei uns três ou quatro meses, mas não deu certo, porque causa da briga dos médicos de lá. Então, prestei um exame de proficiência em língua portuguesa, fui aprovado, e segui para o Sul do Pará, em Conceição do Araguaia, onde trabalhei com duas equipes de Programa de Saúde da Família (PSF). Depois passei rapidamente por Tocantins, mas foi em Conceição do Araguaia que fiquei mais tempo. E foi muito legal.

Me relacionei muito bem com as enfermeiras, com a equipe e com a Secretaria de Saúde da cidade. Nós fizemos muita coisa boa na reorganização da atenção básica às grávidas, às crianças, aos adolescentes, com planejamento familiar. Mas a ação de maior impacto, em parceria com organizações da sociedade civil, foi desenvolvida com um grupo de idosos. Eu tenho fotos, revistas e jornais da época, que divulgaram tudo. O projeto se chamava Agita Conceição. Nós começamos com poucos idosos, mas depois o projeto foi crescendo muito. Nós chegamos a fazer desfile de moda com pessoas de mais de 80 anos.

Então, era mais do que um programa de atenção à saúde, nos moldes que conhecemos aqui?

Acontece que em Cuba, a medicina familiar tem outro conceito, um conceito muito social. Você olha a pessoa na consulta, depois você visita a pessoa na casa dela, conhece os problemas da família e tentar ajudar de algum jeito. Muitas vezes, as pessoas da terceira idade não são bem atendidas pela família. Então, nós tentamos integrá-las. Em Conceição do Araguaia, nós fazíamos academia pela manhã, depois alguma atividade cultural, com muito apoio das organizações de massa da região, da secretaria municipal de saúde, das equipes de PSF. Nós íamos com os velhinhos à praia, fazíamos almoços coletivos, atividades esportivas. Era muito, muito, muito legal. Eu tenho muitas saudades da equipe, do pessoal da Secretaria de Saúde e dos meus velhinhos.

A barreira da língua não atrapalhava o atendimento aos pacientes?

Eu me entendia muito bem com eles. E tenho certeza que ocorrerá o mesmo com os colegas que estão chegando. Antes de vir para o Brasil, eu fiz um pequeno curso de um mês. Depois, já no Brasil, estudei mais. E toda a turma que está chegando agora já fez algumas aulas. E o curso de acolhimento do Programa Mais Médicos está reforçando a fala portuguesa dos médicos cubanos. Todos já conseguem entender tudo. E mais de 80% já estão falando muito bem. E nós chegamos ao Brasil há poucos dias.

Você acredita que este programa vai ajudar a melhorar a saúde pública brasileira?

Esse programa vai dar certo por causa da concepção da medicina preventiva. Em Cuba, o médico geralmente mora onde moram seus pacientes. Aqui também vai morar pertinho. A troca de experiências, a troca de sentimentos, a humanização da saúde que nós temos, a forma com que nós fomos formados vai ajudar a fazer acontecer. O médico vai acompanhar cada uma das famílias, com enfermeiros, auxiliares de enfermaria e agentes comunitários de saúde. O médico se converte em mais um membro das famílias.
É assim que trabalhamos lá. Fazemos um diagnóstico da situação de saúde e, além disso, uma discriminação das pessoas mais carentes, as que mais precisam, que passam a ter prioridade. Então, o médico conhece a problemática. É uma missão muito integradora das condições sociais, higiênicos e epidemiológicas da região, das condições familiares, de mortalidade, das causas principais porque as pessoas ficam doentes e dos fatores de risco que condicionam isso. É uma medicina cem por centro trabalhada na prevenção, e não depois que o paciente fica doente. É trabalhar para que a pessoa não fique doente.

A diferença do sistema de saúde cubano tem a ver com a formação dos médicos, com essa visão mais integrada do paciente com seu meio?

Eu tenho trabalhado em vários países e tenho visto vários sistemas. A medicina cubana é preventiva, como eu falava. Nós olhamos muito para os fatores de risco, para evitar que a pessoa fique doente. É o princípio fundamental. Nós trabalhamos na prevenção e, se mesmo assim a pessoa fica doente, trabalhamos com a prevenção de outras doenças, tanto transmissíveis como não transmissíveis, para evitar as complicações. Além disso, trabalhamos com a reabilitação das pessoas que já ficaram doentes e ficaram com algum grau de incapacitação.
Foi o que fizemos com os idosos de Conceição de Araguaia, além de aproveitarmos a oportunidade para falar da alimentação, dos possíveis fatores de risco, dos problemas ou possibilidade que têm essas pessoas da terceira idade de sofrerem quedas, depressão... E tentamos de todo jeito apoiá-los. Eu fico muito emocionado quando falo porque tenho muitas saudades dos meus velhinhos de lá [lágrimas escorrem pela face].

Conceição do Araguaia é uma cidade pequena? É pobre?

Fica no Sul do Pará, na fronteira com Tocantins. É uma cidade pequena, é pobre, mas não muito. Mas uma coisa que pude observar é que lá as pessoas são felizes. Eu quero mandar um beijo muito grande e um abraço muito grande para todos os meus amigos que ficaram lá. Quero muito revê-los e ter notícias de todos.

Qual a sua especialidade médica?

Eu sou especialista em Medicina e Atenção à Saúde, mestre em saúde mental, mestre em doença infecciosa e mestre em biossegurança. Atualmente, trabalho em um instituto de pesquisa. Sou professor e sou pesquisador. E comecei agora o doutorado. Passei minha vida toda estudando.

Você é casado? Tem filhos?

Tenho um filho que se formou agora em engenharia mecânica. Sou divorciado e deixei em Conceição do Araguaia uma menina muito legal... quero mandar um beijo para ela!

Então você viveu uma história de amor com uma brasileira. Não teve vontade de desertar e ficar no país?

Eu sou muito apegado à família, a Cuba. Então, o coração ficou dividido. Foi muito difícil, mas sou cubano e volto sempre para Cuba. Eu posso trabalhar no Brasil dois, três, quatro, cinco anos, mas depois quero voltar para Cuba, sempre. Esta é a realidade.

Quanto ganha um médico em Cuba? Os salários que vocês receberão no Brasil, ainda que menores do que os pagos aos médicos de outras nacionalidades, são atrativos?

O salário varia um pouco: algo entre 500 e 900 pesos cubanos. Se você converter para dólares, dá uns US$ 30, muito pouquinho. Mas você tem que levar em conta que nós não pagamos seguro, saúde e educação. Eletricidade, água e gás, é tudo bem pouquinho. Então, temos muita coisa garantida. A verdade é que o salário tinha que melhorar um pouco, mas ter muitas coisas asseguradas para nós e nossas famílias é melhor do que ganhar um grande salário e não ter nada disso.
Mas eu quero deixar claro que não vim ao Brasil ganhar dinheiro. Vim por solidariedade. Eu falo isso e ninguém compreende. Nossa turma toda fala uma, duas, três, dez vezes, e as pessoas não compreendem que não viemos aqui para ganhar dinheiro. Viemos para ajudar, por solidariedade. Nós viemos aqui melhorar as condições de saúde das pessoas mais carentes do Brasil. Dar um pouco de carinho, um pouco de afeto, de acordo com a formação que recebemos em Cuba.

Em geral, é difícil para o brasileiro entender isso. Mas o povo de Conceição do Araguaia com que o senhor conviveu compreendia essa relação diferente que o cubano tem com a prática médica?

Ah, o povo não queria me deixar voltar para o meu país. “O doutor não pode voltar para Cuba”, diziam. Eles fizeram muitas coisas lindas pra mim e fiquei muito emocionado, fiquei apaixonado pelas pessoas do Brasil. Eu conheci muitas pessoas boas no Brasil. E por isso eu voltei. Por essa experiência anterior tão boa. A diferença é que, agora, sou um profissional com mais 10 anos de experiência.

Nesse meio tempo, você trabalhou só em Cuba ou foi a outras missões internacionais?

Eu estive na África, por 2,5 anos, em Burkina Faso, um pequeno país no oeste africano [região do deserto do Saara]. É muito difícil trabalhar lá pelas condições climáticas: a poeira e a temperatura muito alta, de até 52 graus. E muitas doenças, muitas doenças mesmo. Mas a gente vai trabalhando, trabalhando, se tornando uma melhor pessoa, um melhor profissional. A gente vai acumulando experiências para melhor servir.

Como está sendo essa nova e recente experiência no Brasil?

O curso de acolhimento é de muita qualidade. Tem professores muito bem formados. Antes de vir para o Brasil, como eu já estive aqui, formei parte da turma que está vindo. Faz 11 meses que venho entrando no site do Ministério da Saúde do Brasil para aprender tudo sobre atenção básica e repassar para eles. Então, a turma já vem bem formada e agora está recapitulando tudo aqui. Os professores estão muito contentes, porque estudamos tudo previamente. Dei um curso de 11 meses, de português e doenças mais frequentes que aparecem no Brasil.

E quais são as doenças comuns no Brasil que vocês não têm em Cuba, em função da excelência do sistema de saúde e da vigilância epidemiológica?

Em Cuba, temos muitos médicos. A cobertura do sistema de saúde é de cem por cento Essa é uma coisa muito boa, porque se pode fazer um diagnóstico de saúde baseado na realidade que se tem no país. No Brasil, há muita carência de médicos no norte e nordeste. São muitos municípios que não tem médico nenhum. O Ministério da Saúde conhece a situação, mas a coisa mais detalhada só se vai conhecer a medida que for dando cobertura nessas regiões. Em Cuba, não há doenças transmissíveis, como malária, mal de chagas, leishmaniose, acidentes ofídicos [acidentes por animais peçonhentos, como cobras e escorpiões].

E a Dengue?

Dengue tem em toda a América Central, mas cuba é um centro de referência para a Organização Pan-americana de Saúde (Opas). Antes dos nós virmos para o Brasil, houve um congresso internacional no Centro de Medicina Tropical sobre dengue. Lá é muito bem controlado porque há muita vontade política. Todo mundo fica em cima do problema: os médicos, os agentes de vetores, como chamamos lá. A direção do país coloca à disposição da saúde todos os recursos para regular a dengue. E aí a doença se controla muito rápido.

Outro problema grave que temos no Brasil é a longa espera na fila por um leito no sistema de saúde pública, que, muitas vezes, resulta em mortes de pacientes. Isso também acontece em Cuba?

Não. Já superamos isso. Há muito tempo não ocorre um caso desses. Temos os médicos de família. Além disso, tem a policlínica, que integra os consultórios. Esse é o nível primário. Depois, tem o nível secundário, formado pelos hospitais ginecológicos, pediátricos e de clínica geral. Além disso, tem os institutos de cardiologia, de nevrologia, o terceiro nível. Então, as pessoas que precisam vão transitar por todo esse sistema, sempre acompanhadas pelo médico da família. Pela organização, nós temos um sistema de saúde de primeiro mundo.

O que falta para o Brasil atingir esse nível de excelência, para ter uma medicina preventiva forte?

É preciso lembrar que o problema em Cuba é mais fácil de controlar, porque é uma pequena ilha. Já o Brasil é quase um continente. As coisas aqui são um pouco mais complicadas. Mas a vontade política que estou vendo agora vai no caminho certo. O Brasil precisa de mais médicos e precisa reconhecer que viemos por um contrato tripartite (Opas, Brasil e Cuba) para trabalhar em parceria com os colegas brasileiros. Não viemos tirar o trabalho de ninguém, o salário de ninguém. Nós vamos trabalhar nas regiões mais carentes, onde não há médicos.
 
Leia mais em Carta Maior
 

Sem comentários:

Mais lidas da semana