Rui Peralta, Luanda
I - Existe um país
onde em 20 anos foram registadas mais de 250 mil desaparecimentos, dos quais
cerca de 35 mil entre 2005 e 2010. Nesse país, numa só fossa comum, situada
perto de um aquartelamento militar foram encontrados cerca de dois mil corpos.
É um país onde os opositores políticos são assassinados, os guerrilheiros
atirados vivos para fornos crematórios, os sindicalistas são eliminados aos
milhares, as comunidades rurais são bombardeadas, os jovens são executados nos
bosques e vestidos como guerrilheiros, para fazer crer que foram mortos em
escaramuças com as “forças da ordem” e os activistas pelos direitos humanos
eliminados nas ruas.
Não, não é da Síria
que estou a falar. É da Colômbia. Mas já alguma vez leram, ouviram, ou viram
imagens e noticias sobre estes factos, nos meios de comunicação oficiais ou
privados? Claro que não! O Estado colombiano é um menino mimado de Washington,
Paris e Telavive, ou seja é um “regime amigo”. Já a Síria…é um “patinho feio”.
Quando os meios de
propaganda do Ocidente falam da Síria referem constantemente os massacres
perpetrados pelas milícias de apoiantes do regime, a Shabiha, Mas quantos já
ouviram falar da AUC (Autodefesas Unidas da Colômbia), dos Bacrim ou da Força
Omega? A propaganda ocidental apresenta os mercenários fascistoides do ESL
(Exército Sírio Livre) e da Al-Nusra, como “combatentes da liberdade”, “revolucionários”,
o banditismo armado e a ingerência externa são vistos como uma “insurreição
popular” e alguns discursos mais elaborados apresentam os acontecimentos na
Síria como uma “Revolução”.
Mas já alguém leu,
ouviu ou viu, nos órgãos propagandísticos do Ocidente falar em Revolução e em
insurreição popular na Colômbia? Já alguém viu imagens da guerrilha popular,
que envolve milhares de camponeses pobres, de indígenas, de operários e
intelectuais, de jovens trabalhadores e de estudantes universitários? Não,
nunca viram…Mas vêm diariamente nos noticiários, principalmente naqueles que são
passados nos horários nobres, uma produção esforçada que apresenta imagens
fugazes e confusas, onde é notório o esforço dos esteticistas da TF1, RTL ou
France 24, por exemplo, a trabalharem a imagem dos bandos armados e a
transformá-los em zapatistas floridos e perfumados.
Enquanto a
insurreição popular na Colômbia é designada por “narco-terrorismo”, a
ingerência externa e os bandos armados mercenários que actua na Síria são
vistos como uma “revolução de todo um povo”, esquecendo-se dos milhões de cidadãos
sírios que expressam a sua hostilidade perante os acontecimentos e que se
organizam em torno do governo para combater a ingerência externa.
Alguém viu alguma
vez Obama preocupado com o povo colombiano? Alguém alguma vez viu as catatuas
que esvoaçam pelo governo francês referir os crimes cometidos pelo Estado
colombiano, ou François Hollande ter mencionado, em qualquer ocasião, os
atentados contra os direitos humanos cometidos na Colômbia? Alguém considera
possível o Conselho de Segurança da ONU preparar uma intervenção humanitária na
Colômbia, ou a NATO preparar uma operação de apoio logístico aos guerrilheiros
colombianos? Nada!
Mas, ao contrário,
defender e apoiar os assassinos que cortam mãos, dedos e orelhas, que
despedaçam os corpos dos que morrem durante as torturas, que massacram
impunemente comunidades inteiras, que queimam aldeias e sequestram cidadãos,
isso sim, é uma atitude “humanista”. A NATO apoiar a Al-Nusra e o ESL é um acto
de “solidariedade”, a CIA ajudar assassinos e traficantes na Síria, é um acto
necessário de “envolvimento do mundo livre”, tão livre que engloba as
monarquias déspotas e obscurantistas do Golfo.
Estamos pois,
perante uma galeria vasta de homicidas, vigaristas e gentalha da pior espécie
(escarros morais), que não hesitam em trucidar e recorrer ao genocídios dos
povos para fazer prevalecer os seus interesses. Falar em solução politica na
Colômbia, implica que esta gentalha rasca e sem berço que predomina na Politica
Internacional ergam-se em coro e afirmem, histéricos, em uníssono: “Não se
negoceia com terroristas!”. Se falarmos em solução politica para a Síria, vemos
o mesmo coro a vociferar, em uníssono: “Não se negoceia com ditadores!”.
No meio desta
verborreia estão os povos. Sem voz, sem sonhos e sem rosto ficam os sírios,
constantemente referidos na comunicação social internacional e que vêm
admirados as lágrimas de crocodilos que sobre eles são vertidas e os
colombianos, ignorados e sem forma de fazer ouvir a sua indignação nos meios de
comunicação social. Será condicionamento ideológico ou indignação selectiva?
II - Na Síria os
confrontos prosseguem, a um ritmo incerto. Perante alguma quebra de
intensidade, verificada após as vitorias alcançadas pelo governo, apoiado pelo Hezbollah
e pelas milícias populares, que foram enquadradas nas forças armadas sírias,
verifica-se, nas últimas semanas um crescendo de intensidade e um aumento da
amplitude do conflito. A propaganda joga agora um papel fundamental, uma vez
demonstrada a incapacidade politica e militar dos opositores.
Em Damasco vive-se
uma “calma tensa” - atendendo às informações menos contagiadas pela propaganda
de ambos os lados - onde o conflito é de baixa intensidade. Nos bairros
periféricos e nos subúrbios existem confrontos e escaramuças, mas nas áreas
centrais da cidade o apertado cordão de segurança impede a penetração dos
bandos do ESL e da Al-Nusra. Yubar é um bairro periférico a noroeste de
Damasco, onde diariamente se produzem confrontos entre os bandos armados e as
forças armadas sírias. Duraya, um subúrbio operário, outrora florescente de
actividade fabril, é hoje um local desolado, em que as fábricas foram
destruídas pelos confrontos armados e os trabalhadores lançados no desemprego. Grande
parte das residências, deste subúrbio, foram destruídas e muitos abandonaram o
local, enquanto os que teimam em permanecer procuram abrigo nas mesquitas.
Ao contrário de
Alepo, uma cidade que apos um ano de batalha viu os seus bairros periféricos
completamente destruídos, Damasco não tem cicatrizes tão evidentes da guerra. Contrariamente
a Raqqa, uma cidade do Este do país, caída nas mãos da Al-Nusra, pilhada e
destroçada e tornada inabitada, Damasco é um bastião tolerante e dinâmico do
Estado Sírio. A economia é em grande medida impulsionada pelos fundos colocados
á disposição pelo Irão, que já injectou na Síria mais de 4 mil milhões de USD,
desde o início do conflito.
Mas as sombras da
guerra fazem-se sentir. Em quase todos os subúrbios desenrolaram-se importantes
batalhas, desde as zonas periféricas mais distantes de Damasco, como Duma e
Harasta, até às mais próximas, como Barseh e Yubar. Do Verão ao Outono de 2012,
o ESL e a Al.Nusra lançaram uma ofensiva sobre Damasco, que muitos
consideraram, triunfalmente, como ofensiva final, ocupando muitos destes
bairros de Damasco. Quando foram escorraçados deixaram algumas bolsas nos
bairros que outrora ocuparam, como acontece em Yubar, embora, por exemplo
Ghuta, uma área a Este de Damasco permaneça ocupada pelos bandos armados. Para além
destas bolsas clandestinas, da sua presença resta a memória dos combates, representada
pelas ruinas dos edifícios.
A transformação
mais notória de Damasco é verificada na sua população. Antes do conflito
comportava cerca de seis milhões de habitantes, a maioria com um elevado nível
académico e de qualificada formação profissional. É certo que Damasco não
rivalizava com o Cairo, na vida intelectual, nem tinha a sofisticação de
Beirute, mas era uma cidade de ambiência social equilibrada, de grande convívio
com um movimento constante. Hoje um grande número destes profissionais de
elevada qualificação emigrou para o Cairo, Beirute, Teerão, Riade ou outras
cidades do Golfo, enquanto pobres e indigentes, refugiados vindos das áreas
periféricas, tomaram o seu lugar na cidade velha e no distrito de Midan, a sul
da capital.
Nas lojas vende-se
verniz para as unhas, batom, pó de rouge e outros artigos de beleza e cuidados
femininos, Muitos dos actuais habitantes de Damasco sobrevivem graças ao apoio
das redes informais de auxílio criadas por xiitas, sunitas, cristãos, drusos e
alauitas. O governo criou em 2012 o Ministério para a Reconciliação Nacional,
identidade que tem como função prestar auxílio aos sírios necessitados, mas a
burocracia, que sempre acompanhou solenemente a governação do BAAS, impede o
seu funcionamento normal. Nos guichés espalhados pela cidade, os cidadãos, em
filas enormes e infindáveis, aguardam ansiosos, que funcionários indolentes,
sempre zelosos com os procedimentos, mas indiferentes á noção de servidores públicos,
os atendam. Na sua maioria os cidadãos mais necessitados vêm rechaçados os seus
pedidos de auxílio, restando-lhes recorrer às redes informais.
Alguns dos
activistas das redes de apoio social são oposicionistas assumidos ao actual
governo e alguns deles são de vez em quando feitos prisioneiros, acusados de
actividades ilícitas, como aconteceu em Julho a Yussef Abdelke, pintor, Esteve
vários anos preso, durante vigência de Hafez al-Assad, o pai do actual
presidente sendo um dos muitos opositores que, apesar de estar vigiado pelas
forças de segurança, organiza redes de auxilio e recusa-se a apoiar os bandos
armados e a ingerência externa.
Mas nem todos os
opositores pensam assim e muitos intelectuais não querem sujeitar-se às prisões
arbitrárias a que são submetidos pelos burocratas do BAAS, que de forma pouco
inteligente e á margem da lei constitucional, procedem a vagas de perseguições
sem qualquer mandato judicial. Um dos mais prestigiados escritores de Damasco
Yassin Haij-Saleh e um dos advogados mais famosos desta cidade, Rasan Seituneh,
refugiaram-se nos subúrbios, encontrando-se em finais de Julho em Ghuta, um dos
subúrbios de Damasco que o governo ainda não controla. Recentemente foram
entrevistados pelo The Guardian e afirmaram que preferem a insegurança vivida
nestas áreas, á constante perseguição a que são submetidos pelas autoridades.
Os bairros de
Damasco são zonas mistas em termos culturais e religiosos, apesar de alguns
bairros, como Bab Tuma sejam de maioria cristã e Mezze predominantemente
alauita. Os sírios sempre se orgulharam do convívio entre as diferentes
comunidades, embora a guerra tenha produzido alterações neste comportamento. As
zonas de maioria alauita foram atacados pelos grupos extremistas sunitas e em
alguns casos alauitas e xiitas foram vítimas de genocídio, enquanto nas áreas
de predominância sunita as milícias alauitas e xiitas procederam a acções de
extermínio.
Em algumas áreas da
cidade estão em voga os sequestros de familiares de reconhecidos elementos da
burguesia síria apoiante do governo e os bandos criminosos actuam muitas vezes
de forma impune, devido á ausência policial. A polícia concentra-se nas áreas
de acesso e de saída da cidade, sendo o patrulhamento de algumas áreas da
cidade efectuadas a horas certas pelas forças armadas, o que permite às gangues
actuarem de forma aberta.
Apesar de todas
estas alterações provocadas pelo peso da guerra, em Damasco a vida continua e a
cidade reage aos ventos que sopram do Ocidente…
III - Alepo, uma
cidade do norte da Síria, é um cenário de guerra. Ocupada no ano passado pelos
bandos armados, a cidade é palco de combates diários, tendo grande parte da
cidade sido retomada pelo governo durante o mês de Julho deste ano, após
constantes bombardeamentos. Esta foi a cidade em que os bandos armados,
apoiados pelos USA e pela NATO, ensaiaram a novela das armas químicas, perante
o avanço das forças governamentais e das milícias do Hezbollah, tendo os
ensaios da novela sido agilizados, quando as milícias curdas se aliaram ao
governo. Em Junho deste ano já eram visíveis em Alepo umas tendas de campanha,
completamente desocupadas, que segundo os líderes do ESL e da Al-Nusra eram
tendas preparadas para as “vítimas das armas químicas”.
Para além destas
tendas os “combatentes da liberdade” mostravam aos repórteres ocidentais o seu
stock de prevenção, composto por 10 mil doses de antropina e…16 máscaras de
gás. Alepo é habitada por dois milhões de pessoas, pelo que as 10 mil dozes de
antropina devem ser apenas para uso exclusivo dos mercenários e as 16 máscaras
de gás para uso exclusivo dos “valorosos comandantes da Revolução”. Seja como
for o cenário estava montado e os “rebeldes” mostravam, orgulhosos, ao Ocidente
que estavam preparados para a guerra química.
Nesta região o
presidente sírio é usualmente conhecido por “burro”, “cão” ou “pato” dependendo
da queixa que os cidadãos de Alepo tiverem contra o governo de Bashar e a sua
burocracia crónica (o maior inimigo do governo sírio não são os bandos armados,
mas sim a sua própria burocracia e a corja de funcionários bajuladores que se
implantaram nas instituições e no aparelho de Estado). Esta é uma cidade cujos
habitantes estão habituados a serem lançados á sua sorte, ao contrário de
Damasco. Acontecimentos como os ocorridos a 26 de Julho deste ano, no bairro
Bab Nayrab, onde a queda de um míssil provocou 35 mortes, entre as quais 19
crianças, são vistos com alguma indiferença, por ambos os lados e servem apenas
para encher as estatísticas.
Nesse sentido Alepo
é uma cidade mártir. O seu martírio começa longe, com as estruturas
administrativas centralizadas e com os governadores nomeados pelo poder
central, cada um deles mais incompetente e corrupto do que o anterior. Depois
veio o martírio da ocupação da cidade pelos bandos armados, constituídos por
mercenários estrangeiros de origem sunita, que trataram de proceder a operações
de “limpeza e purificação”, em nome de Alá. Xiitas, curdos, cristãos e alauitas
foram sendo eliminados em Alepo, as suas residências incendiadas e os seus bens
confiscados. Também os inúmeros sunitas que se opunham a estes massacres foram vítimas
de interrogatórios e muitos foram executados, acusados de “hereges” e de “falsos
fiéis”.
Alepo é uma cidade
em ruinas que foi transformada num imenso cenário. Aqui a máquina de propaganda
ocidental tentou abafar a derrota dos mercenários e o avanço das forças armadas
sírias e foi nesta cidade em escombros que a máquina de propaganda ocidental
ensaiou os primeiros passos da novela das armas químicas. Quanto aos orgulhosos
habitantes de Alepo, nem sequer foram utilizados como figurantes…
IV - Os recentes
acontecimentos ocorridos em Ghuta (subúrbio de Damasco) colocam o governo sírio
sob forte pressão internacional. As imagens dos cadáveres passam diariamente
nas televisões ocidentais e as evidências do uso de armas químicas é
indiscutível. O que é discutível e passível de interrogações é a forma como os
factos são descritos e quem, de facto, utilizou as armas químicas.
Ghuta é diariamente
bombardeada, tanto pela aviação como pela artilharia das forças governamentais.
É uma área que não tem rede eléctrica á mais de 10 meses e a qualquer momento
cai em controlo do governo, o que representará mais uma derrota militar da
oposição. Por que razão o governo sírio autorizaria o uso de armas químicas
numa área que está prestes a cair sob seu controlo? Mas já a oposição tem
motivos suficientes para montar uma operação que permita acusar o governo sírio,
provocar a intervenção internacional e anular a vantagem militar e operacional das
forças armadas sírias.
O maior receio de
Bashar é a intervenção internacional. Por que razão o governo sírio - num
momento em que a sua vantagem militar torna-se efectiva, que controla 13 das 14
províncias do país, que encontra-se numa posição vantajosa - iria utilizar
armas químicas, sabendo que isso pode provocar uma intervenção internacional?
Torna-se, assim, fundamental saber quem utilizou as armas químicas, o que
parece ser difícil, atendendo á pressão que é efectuada e às condicionantes em
que estão submersos os inspectores da ONU. A
única evidencia, a única certeza, é que morreram centenas de pessoas - homens,
mulheres, crianças, idosos - envenenados por gases químicos. Se este massacre
foi cometido pelo governo sírio, pela oposição, ou por mais alguém, é algo que
a ONU deve apurar e divulgar (o que parece não estar a acontecer com os
relatórios dos inspectores, por pressão da França e dos USA).
A forma precipitada
como os impetuosos responsáveis franceses e turcos lidaram com o assunto,
pretendendo uma intervenção imediata é suspeita. A forma como os USA agiram,
após os acontecimentos, com as declarações do vice-presidente Biden e do
secretário Kerry em aparente contradição com um misto de apatia e ponderação
demonstrada por Obama é, no mínimo reveladora das lutas de bastidores que
atravessam a política externa norte-americana em relação á questão síria. A UE mantém
uma aparente contenção, apimentada com a verborreia indignada, própria dos que
tomam o digestivo após a refeição. Russos e Chineses lideram os que apelam ao
bom senso e neste sentido saliente-se o papel desempenhado pela Venezuela,
Bolívia e Equador.
Quanto aos sírios,
nestes palcos geoestratégicos são os que menos contam. Não é a Síria apenas um
meio para atingir um fim? E quando não se olham a meios para chegar mais
depressa ao objectivo…
Fontes
Cockburn, Patrick http://www.independent.co.uk/voices/comment/the-evidence-of-chemical-attack-seems-compelling--but-remember--theres-a-propaganda-war-on-8778918.html
Pierre Filiu, Jean Le Nouveau Moyen-Orient. Les peuples à l’heure
de la révolution syrienne, Ed.Fayard, 2013
Le Monde,
30/05/2012; 14/09/2012
The Guardian,
21/07/2013
The New York Times,
25/08/2013
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