Nuno Saraiva –
Diário de Notícias, opinião
Que a palavra do
dr. Portas é meramente casuística e instrumental, já todos sabemos. Pelo menos
desde que em meados do verão, após a diatribe da sua demissão
"irrevogável", se viu promovido a vice-primeiro-ministro, dando todo
um novo sentido e significado ao conceito de irredutibilidade.
Ao aprovar esta
semana, em nome da convergência de sistemas, o corte de 10% nas pensões da
Caixa Geral de Aposentações, o Conselho de Ministros encarregou-se de nos
mostrar, mais uma vez, a volatilidade dos compromissos e das fronteiras
inultrapassáveis do líder do CDS.
Foi em maio, a
propósito da chamada "TSU dos pensionistas", que o dr. Portas, qual
Quixote dos reformados, se empertigou para, solenemente, declarar que não
aceitava que os mais velhos e desprotegidos, "aqueles que não têm
voz", fossem, de novo, fustigados pela austeridade virtuosa que os moinhos
de vento, encarnados pelo primeiro-ministro, queriam impor.
Afirmava então o
irrevogável dr. Portas: "Num país em que parte da pobreza está nos mais
velhos, numa sociedade em que inúmeros avós têm de ajudar os filhos que estão
no desemprego e cuidar dos netos, num sistema social que tem de respeitar
regras de confiança, o primeiro-ministro sabe, e creio ter compreendido, que
esta é a fronteira que não posso deixar passar. Porque não quero que em
Portugal se verifique uma espécie de cisma grisalho que afetaria mais de três
milhões de pensionistas, uns da Segurança Social outros da CGA. Quero, queremos
todos no Governo, uma sociedade que não descarte os mais velhos. Quero,
queremos todos no Governo, um ajustamento que não prejudique, sobretudo, os que
não têm voz."
Passados quatro
meses, verificamos que afinal existem pelo menos 346 mil pensionistas - o total
de reformas atingidas por mais este golpe - que são "descartáveis". É
certo que há uma diferença quantitativa substancial - definitivamente, 346 mil
não são três milhões -, o que até pode servir ao vice-primeiro-ministro para o
habitual discurso de autoelogio de que o pacote até "podia ter sido mais
sombrio" não fosse a intervenção do CDS. Mas o que resulta claro das
medidas aprovadas - veremos o que diz o Tribunal Constitucional - é que, para o
Governo em geral e para o dr. Portas em particular, há pensionistas de primeira
e de segunda. E que os princípios de confiança que devem regular o sistema são
tão descartáveis quanto estes pensionistas ou as palavras do líder CDS.
Do que estamos a
tratar não é de gente privilegiada, com pensões bastardas ou abusivas porque
não descontou para elas. Do que estamos a falar é de pessoas que trabalharam a
vida inteira, descontando aquilo que o Estado lhes exigiu, na expectativa mais
do que legítima de, chegada a idade da reforma, auferir a remuneração que lhes
é devida.
E é também uma
questão moral. Invocar, como tantas vezes se faz, a solidariedade entre
gerações para justificar o "assalto" às reformas de quem ganha acima
dessa fortuna que são 600 euros mensais é, como já aqui escrevi, criminoso.
Como dizia, em maio, o dr. Portas, por ventura "num ato de
dissimulação", são aos milhares os avós que ajudam os filhos desempregados
a cuidar dos netos. E isto também é solidariedade entre gerações. É, aliás,
normal que os mais novos e ativos sejam chamados a contribuir para o
financiamento do sistema de segurança social que paga as pensões daqueles que
entretanto se reformaram, após cumprirem a sua carreira contributiva, mesmo
sabendo que, é mais que certo, não terão acesso ao mesmo nível de pensões
daqueles que hoje as recebem.
Dito isto, é
absolutamente claro que para o dr. Portas não existem linhas inultrapassáveis
nem compromissos irrevogáveis. De agora em diante, o CDS, que reclamava, e bem,
os louros de ter contribuído para o descongelamento das pensões mínimas,
sociais e rurais, será reconhecido por ter sido cúmplice da inadmissível rutura
total do contrato social até agora existente.
De há dois anos e
uns trocos a esta parte, somos confrontados com o discurso da inevitabilidade e
com a punição por termos vivido acima das nossas possibilidades. Sabemos, por
mais que agora se tente negar, que o objetivo sempre foi o empobrecimento de
trabalhadores e reformados. E desconfiamos que, desde logo por falta de
equidade, este será mais um diploma a esbarrar no Tribunal Constitucional.
Afinal, o pretexto para mais uma vez agradar à troika e alargar o corte a todos
os pensionistas, como exigido desde o início pelo FMI, pelo BCE e pela Comissão
Europeia.
Uma imoralidade,
enfim, ou o "cisma grisalho" que, com lágrimas de crocodilo, se
fingiu querer travar.
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