Manuel Maria
Carrilho – Diário de Notícias, opinião
A lição da rentrée
é clara: o financismo tomou de tal modo conta da linguagem comum, ele está de
tal modo incrustado nas palavras quotidianos de todos, que sem nos libertarmos
desse garrote não há qualquer hipótese de saída da crise, ou de visão que dê
forma a um novo rumo para o País.
Ao fim de cinco
anos de crise financeira e económica global, depois de três anos de crise do
euro e da União Europeia, no termo de mais de dois anos de aguda crise
nacional, o que se verifica é que o discurso dominante continua a ser o das
teses, das doutrinas e das palavras que, justamente, causaram este dominó de
crises.
Neste quadro, a
rentrée mais não fez do que rebobinar com pequenas variantes o que já sabíamos
e ouvimos vezes sem conta. O que levou a que o autoproclamado novo ciclo do
Governo recentemente remodelado se tenha transformado, num ápice, num retro
ciclo de banalidades, sem direção nem estratégia, a sobreviver agarrado a
querela institucionais que mais não pretendem do que disfarçar a profunda
incapacidade política e as persistentes tensões internas.
A crise política de
julho reforçou, sobretudo pela opaca vacuidade que a caracterizou, a ideia -
cada vez mais popular - de que a política não passa de um jogo de narcisos tão
impotentes em relação ao interesse público, como obcecados consigo próprios.
Esquecendo a enorme
gravidade da situação nacional, disse-se e desdisse-se então, com a maior
impunidade, tudo o que se podia dizer e desdizer. Com o Presidente da República
a aumentar a confusão, ao propor um "compromisso nacional" exatamente
no momento em que renunciava ao seu principal poder, o de dissolução do
Parlamento, poder que colocou nas mãos dos partidos!
O País percebeu
então que precisa mesmo de outras ideias, de outra linguagem, de outros valores
e de outros tribunos. Que expliquem, por exemplo, que o problema dos swaps ( em
que estão em causa 335 mil milhões de euros) não é só uma consequência natural
da capitulação do Estado face ao modelo empresarial financista. Também é,
claro, mas o mais importante é perceber como tudo isto anuncia e antecipa o fim
do próprio Estado, através da sua redução a um esqueleto institucional
manietado, incapaz de representar e defender os cidadãos.
É por isso que, a
meu ver, a nomeação da nova secretária de Estado do Tesouro, vinda como o
anterior da área privada financista, repõe por inteiro o problema de fundo, que
é o de se pôr a raposa a guardar o galinheiro. Ou, dito de outro modo, o da
crescente incapacidade de o Estado, através de uma qualificada administração
pública, enfrentar a capacidade financeira com pessoal próprio, impregnado dos
seus princípios e dotado de uma estratégia autónoma, assente numa exigente
defesa do interesse nacional.
O Estado fica assim
cada vez mais a saque, à mercê dos seus adversários. É por isso que não vimos
até hoje o mais pequeno vislumbre da famosa "reforma do Estado", que
apontasse para um verdadeiro Estado estratega - e há bons exemplos em diversos
países nórdicos, por exemplo -, capaz de falar não só em termos de interesses,
mas também de valores, capaz de avançar com uma visão de futuro do Estado, da
sua natureza, do seu funcionamento e das suas obrigações.
O único
"guião" da tão falada reforma do Estado (que ninguém conhece, apesar
de prometido para março) consiste em reduzi--lo, alegando que só assim se
consegue criar condições de relançamento de uma economia mais forte e
"competitiva". O que é extraordinário é que esta robusta economia que
nos prometem nunca seja depois pensada como produzindo mais riqueza, e
naturalmente mais receita fiscal, o que permitiria construir outros horizontes,
mais otimistas, de futuro.
Não, o Governo
justifica os cortes no Estado social com a debilidade da economia, mas o
reforço dessa mesma economia que ele jura que virá com esses cortes não serve
para reforçar o Estado social, mas apenas para o liquidar. Como se fosse mais
legítimo adaptar a sociedade à economia e à finança do que estas à sociedade -
mas não é.
E enquanto se
desmunicia o Estado, multiplicam-se como cogumelos "grupos de
estudo", "comissões de peritos", "comités de sábios",
tudo ad hoc sem - caso único na Europa! - qualquer enquadramento institucional
claro nem objetivos estratégicos precisos e escrutináveis, que apenas servem
para ir rebobinando o filme de ilusões e de deceções que já todos antecipámos
bem demais.
É tudo isto que é
preciso perceber e recusar com lucidez, pois só assim será possível formular os
problemas do País de outro modo. Como ainda agora se viu com o argumentário
sobre a "descida dos salários", é vital recusar dados que nos são
fornecidos como objetivos, naturais e evidentes, porque eles foram, em geral,
manipulados de tal modo que as soluções que propõem apareçam como
indiscutivelmente únicas e inevitáveis.
É este, afinal, o
grande embuste, até hoje triunfante, do ultraliberalismo contemporâneo:
pretender que, apesar de tudo, só a sua lógica pode ainda responder à
devastação que ele próprio desencadeou. Parece inverosímil, mas tem sido eficaz
- até quando?
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