quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Escutas americanas: O “MOMENTO SPUTNIK” DA EUROPA

 


Cicero, Berlim – Presseurop – imagem Falco
 
Para além da indignação, o escândalo das escutas norte-americanas deve funcionar como um propulsor para os europeus. Tal como o primeiro satélite soviético empurrou os norte-americanos para a exploração do espaço, estas revelações devem motivá-los a recuperar o atraso em matéria de tecnologias da informação.
 
 
Edward Snowden já conquistou o prémio de “integridade no trabalho” deste ano. Ora, para ficar à altura, o Ministério da Economia alemão deveria atribuir igualmente um prémio ao desertor da NSA, por este ter dado um impulso ao setor alemão das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC). Na verdade, nos últimos anos, nenhum empresário, nenhum cientista nem nenhum responsável político conseguiu relançar tão eficazmente os intervenientes alemães e europeus no setor das TIC, como Edward Snowden, com as suas revelações sobre os serviços secretos norte-americanos e britânicos.
 
No entanto, na cena política de Berlim, a alegria é comedida, por diversas razões. Porque, ao mesmo tempo que o caso das escutas da NSA está a fomentar de forma inesperada a procura de programas de codificação alemães, a política alemã encontra-se em estado de choque: as revelações de Edward Snowden constituíram a prova definitiva de que a Europa não era capaz de proteger eficazmente os dados pessoais dos seus cidadãos e de que nem sequer era competitiva em matéria de TIC. O material, o software, as linhas e os serviços de Internet provêm fundamentalmente de grupos norte-americanos – ou chineses. A infraestrutura da Rede é também dominada pelos Estados Unidos, onde se encontra concentrada a maioria dos principais servidores. A Alemanha e os outros Estados-membros da UE são, quando muito, “colónias digitais”.
 
A última oportunidade para a Europa
 
No entanto, até agora, tem sido quase sempre esquecido que, à margem do romance de espionagem, no qual é o personagem principal, Edward Snowden também fomentou a concorrência transatlântica em torno das quotas de mercado do setor das TIC. O escândalo das escutas da NSA constitui sem dúvida a última oportunidade que a Europa tem de recuperar o atraso em relação aos norte-americanos, que levam um avanço considerável. A situação atual faz lembrar o choque que o Sputnik representou para os Estados Unidos, em 1957, quando os russos se tornaram os primeiros a lançar um satélite no espaço. Os norte-americanos começaram por ficar consternados, mas, em seguida, fizeram tudo para passarem a ocupar a posição número um na navegação espacial e acabaram por ser os primeiros a enviar um homem à Lua.
 
O estado atual das coisas é comparável – e a Europa deve fazer tudo para não ser definitivamente ultrapassada na corrida às tecnologias estratégicas. “Estamos dependentes das empresas norte-americanas das TIC. Foi preciso um escândalo desta amplitude para tomarmos consciência disso”, lamenta Octave Klaba, administrador do grupo francês OHV, que fornece servidores Cloud, nos quais indivíduos e empresas podem armazenar os seus dados na Internet.
 
No entanto, os sinais de alarme eram muitos: desde 2011 que o Governo francês insistia na necessidade de resistência europeia, tendo em conta a importância estratégica das TIC. A França subsidia a criação de uma oferta própria de servidores até ao montante de 200 milhões de euros. Uma ninharia, é certo, em comparação com os milhares de milhões investidos por gigantes da Internet como a Microsoft, a Amazon e a Google. Mas, graças a Edward Snowden, a comissária europeia competente, Neelie Kroes, sente que os ventos são agora favoráveis aos seus projetos, que consistem mobilizar receitas fiscais para incentivar o setor europeu das TIC e para dotar a UE de uma infraestrutura europeia. A Comissão está a estudar a possibilidade de ir buscar alguns milhares de milhões aos fundos estruturais europeus e de os atribuir à concretização desse objetivo.
 
Inversão da posição alemã
 
Até agora, a Alemanha, que deveria desempenhar um papel decisivo nesta tendência, tem sobretudo levantado obstáculos, porque, tradicionalmente, o Governo de Berlim encara com ceticismo as iniciativas políticas de Paris para o setor industrial. No entanto, parece desenhar-se no horizonte uma inversão da posição alemã. Na inauguração da Hannover Messe [salão industrial de Hannover], em abril, Angela Merkel declarou que a Europa, e sobretudo a Alemanha, deviam reconquistar o seu lugar de líder mundial, através da “indústria 4.0”, isto é, da fusão da produção com as TIC. A sacudidela provocada pelas escutas do telemóvel de Angela Merkel pela NSA constitui hoje um estímulo emocional para impor as decisões políticas necessárias.
 
Nos próprios Estados Unidos, o debate sobre as repercussões das revelações de Edward Snowden sobre a economia está no auge. Um estudo do think-tank independente ITIF, de Washington, indica que a posição dominante dos gigantes norte-americanos no desenvolvimento das capacidades mundiais de alojamento Cloud se encontra ameaçada: os especialistas do ITIF apontam para uma queda do volume de negócios desses gigantes da ordem dos 22 a 35 mil milhões de dólares, nos próximos três anos, devido à perda de confiança que o caso induziu. No congresso do setor em Talin, a comissária europeia Neelie Kroes permitiu-se o prazer de deitar sal na ferida: “Uma vez que não podem ter confiança no Governo norte-americano nem nas suas promessas, talvez os clientes europeus de serviços Cloud deixem também de ter confiança nos fornecedores norte-americanos desses serviços”. Por outras palavras: a redistribuição dos 22 a 35 mil milhões de volume de negócios [perdidos pelos norte-americanos] poderá dar asas às empresas alemãs e europeias de serviços Cloud, levando-as a investir fortemente num mercado que já consideravam perdido.
 
Assiste-se, portanto, ao aparecimento de um discurso curioso, em contracorrente do da globalização, que até agora imperava: os fornecedores de serviços Cloud franceses, como o grupo de telecomunicações SFR, fazem publicidade, afirmando que é em França que os dados franceses estão mais seguros. E os concorrentes do outro lado do Reno seguem-lhes as pisadas. Segundo as sondagens, mais de metade das PME alemãs desejam armazenar os seus dados exclusivamente em empresas alemãs – quando estas ainda utilizam serviços Cloud.
 
Contexto
 
Um olhar flagrante
 
“Este caso de espionagem mostra que, no conjunto da cadeia de informação digital, a relação de poder entre os Estados Unidos e a Europa se transformou, provavelmente, de 1 para 100”, escreve o cronista Eric Le Boucher em Les Echos.
 
Constatando as filosofias radicalmente diferentes entre americanos e europeus sobre o equilíbrio entre segurança e liberdade, o jornalista defende que "a revolução digital oferece uma dupla vantagem à América. Por um lado, os Estados Unidos estão naturalmente mais à vontade para desenvolver esses milhares de aplicações e de empregos que florescem no processamento de dados. Quanto mais as máquinas conservam os dados, melhor será o serviço possivelmente oferecido; joga aqui uma confiança no sistema económico, que é natural nos Estados Unidos mas não em França. Por outro lado, as empresas que recolhem os dados, sendo quase todas americanas, têm à partida uma considerável vantagem sobre os rivais que se querem lançar na Europa. Estes, terão de comprar, se os americanos quiserem vender, os dados que “pertencem” aos europeus. É um grande roubo de memórias… […] Acrescentemos, para terminar, que milhares de milhões de dados são armazenados, na maior parte do tempo, em grandes centros situados em solo americano a que as agências de segurança federais têm acesso, de uma maneira completamente opaca. Tudo está na Net: a defesa, a liberdade, a economia. A revolução digital destrói os fundamentos da Europa."
 
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