Fernanda Câncio –
Diário de Notícias, opinião
Há muito muito
tempo, num país muito muito distante, um ministro ousou fazer, no Parlamento,
um gesto muito muito pateta. O ultraje foi tal que pouco depois o ministro
apresentava a demissão e o PM desculpas pelo ocorrido, enquanto o presidente da
Assembleia da República, do partido do Governo, assegurava, cenho franzido:
"Aquilo que se passou não se podia ter passado." Garante do
funcionamento regular das instituições e farol moral da nação, o então PR
pontificava: "Pouco acrescentaria em relação à indignação que foi
manifestada na AR por parte de todos os grupos parlamentares e por parte do
senhor presidente da AR, o que de alguma forma reflete a gravidade daquilo que
aconteceu."
Felizmente, o tal
Governo foi, dois anos após o horrífico momento, substituído, sendo instituída
uma nova ordem ética. Nesta, nunca há motivo para pedir desculpa, quanto mais
para demissão (quem porventura se demita fá-lo por ética a mais: não aguenta
"a podridão"). Por exemplo, se um ministro dá uma entrevista à rádio
oficial de outro país em que aceita falar sobre processos judiciais
"contra altas figuras do Estado" desse país, garantindo consistirem
esses processos (que, adverte, pesaroso, "não está na nossa mão
evitar" e pelos quais "pedimos diplomaticamente desculpa"), em
"um problema puramente técnico de preenchimento de alguns documentos"
que, explica, é preciso preencher quando há movimentação de capitais -
"lícitas", apressa-se a frisar -, "nada de grave" há a
assinalar, segundo o PM, ou que leve o atual PR dar nota de qualquer
indignação. Nem o facto de os processos em causa estarem em segredo de justiça
e o ministro se aprestar a revelar aquilo em que consistem (cometendo o crime
de violação do segredo de justiça, se o que diz é verdade, ou mentindo, se não
é) e em garantir que não têm "nenhum grau de gravidade". Tão-pouco
que o ministro assevere terem sido "pedidas" "informações"
à PGR para "perceber o que é que aconteceu do lado do nosso Ministério
Público", as quais "a senhora procuradora-geral deu", enquanto a
procuradora garante nada lhe ter sido pedido e nada ter dito, chamando,
portanto, mentiroso ao ministro (ou o ministro a ela, é escolher) - que por sua
vez nega o pedido e o que disse.
Não; grave, de ir
às lágrimas, é o "assassinato político" de que o pobre ministro se
queixou no Parlamento. Grave é, nas imortais palavras do deputado Rodrigues do
PSD, chamar mentira a "uma inverdade" (que antes fora
"incorreção factual"). Grave é fazer corninhos. Cornões mesmo chifrudos,
dos que humilham o País e a democracia, arrastam a justiça na lama e fazem da
separação de poderes uma piada, oh, isso?, é "uma expressão menos
feliz".
Ocorre, porém, um
quesito: se os processos que o ministro mandou arquivar por entrevista forem
mesmo arquivados, como fica a cara da PGR? E se avançarem para acusação, como
fica a do Governo e a relação com Angola? Os cornos chegam para todos.
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