Le Monde, Paris
O repórter Fabrizio
Gatti, que se fez passar por imigrante árabe clandestino, explica porque
defende que a ilha, que simboliza a política de migração da União Europeia e é
o posto avançado da Europa no Mediterrâneo, merece ser recompensada pela forma
como os seus habitantes acolhem imigrantes que dão à sua costa aos milhares.
Há exatamente dez
anos, em 2003, em dias de outono como os de hoje, fiz papel de “infiltrado”
numa viagem pelo tráfico de seres humanos. Da África para a Europa, através do
Senegal, Mali, Níger, Líbia, Argélia, Tunísia e, finalmente, a ilha de
Lampedusa. Decidi encarnar Bilal, um nome inventado, ao olhar para as
fotografias tiradas de helicóptero de corpos flutuando no Mediterrâneo de
barriga para baixo, inchados como balões, de braços abertos para um abraço que
não veio.
Foi num naufrágio,
um dos muitos. Diante da ilha mítica de Kerkennah, na Tunísia: 41
sobreviventes, 12 cadáveres recuperados, 197 desaparecidos. Passaram-se dez
anos e para milhares de outras pessoas a vida acabou de barriga para baixo,
corpo inchado e braços abertos.
Naquelas águas, o
sítio de Internet Fortress Europe contou 6825 mortos desde 1994,
incluindo 2352 só em 2011. Considerando todas as fronteiras do Sul europeu, das
ilhas Canárias à Turquia, o número de mortos desde 1988 ascende a 19 142.
O aspeto mais
absurdo é que todas essas pessoas morreram por uma capa de cartolina com um
punhado de páginas no meio: um passaporte. Foi a viajar em camiões cheios como
sardinhas em lata através do Sara ou ao ser detido como Bilal num acampamento
de imigrantes ditos ilegais que percebi o instrumento extraordinário e
diabólico que pode ser o passaporte.
Ausência de um
projeto conjunto
Se tivermos o que é
reconhecido, cruzamos as fronteiras e integramos o mundo dos sobreviventes.
Caso contrário, temos de nos colocar nas mãos dos traficantes e integramos o
mundo dos náufragos. Mas podemos deixar morrer jovens, mulheres, crianças e
pais por uma capa de cartolina com um punhado de páginas no meio?
Ao longo destes
anos, a União Europeia gastou centenas de milhões de euros para proteger as
suas fronteiras através da Frontex, o seu serviço de polícia de estrangeiros.
Quanto a isso, os Estados-membros chegaram facilmente a um acordo. Mas com a
aplicação das convenções em matéria de refugiados, o dever de assistência no
mar tantas vezes esquecido, as normas sobre imigração, praticamente nada foi
gasto. Cada Estado fica entregue a si mesmo.
Assim, a ausência
total de um projeto conjunto para dezenas de milhares de exilados sírios,
eritreus, somalis e de outras nacionalidades, bem como a não abertura de
corredores humanitários num território que se estende desde os campos de
detenção da Líbia aos campos de refugiados da Turquia, transforma
paradoxalmente as máfias na única entidade internacional de expatriação a
oferecer uma saída. Os desastres são a consequência disso mesmo.
Nada disso impediu
a União Europeia de receber o Prémio Nobel da Paz, no ano passado. Daí que,
confrontado com imagens de novos corpos flutuando no mar, tenha sentido
necessidade de quebrar o silêncio e propor a recolha de assinaturas para
atribuir o Prémio Nobel da Paz, a partir de 2014, aos milhares de
sobreviventes e náufragos, em fuga, a tentar escapar das guerras. Está no sítio
de Internet de L' Espresso, o semanário para o qual trabalho.
Local real e
simbólico
Uma vez que o Nobel
não pode ser entregue aos que morreram no mar, proponho que seja atribuído – em
nome dos mortos e dos sobreviventes – à pequena cidade de Lampedusa e aos seus
habitantes, que nunca deixam de recolher um corpo para terra. Lampedusa não é o
Estado italiano, que, por uma lei absurda, prevê que os 155 sobreviventes sejam
julgados [pelo crime de imigração ilegal]. Lampedusa também não é a Europa, é
apenas o ponto mais próximo de África.
Lampedusa é o
primeiro local, real e simbólico, que se interpõe entre nós, espectadores, e os
homens, mulheres e crianças que se agarram aos rochedos a pedir ajuda.
Lampedusa e os seus seis mil habitantes nunca, durante esta trágica década,
perderam a razão e o bom senso, que não faz distinção entre cidadãos e
imigrantes clandestinos.
Esse senso comum,
senti-o na carne. Na noite de 23 para 24 de setembro de 2005, quando, na minha
investigação, me atirei à água, simulando ser um clandestino. Um homem que eu
não conhecia e que não me conhecia descobriu-me no mar ao fim de longas horas.
Ajudou-me a chegar a terra e deitou-me sobre uma pedra. Tirou a T-shirt e
cobriu-me o peito. Como eu continuava a tremer, deitou-se em cima de mim e
assim me aqueceu, sem saber quem eu era. Ele era pesado. Eu estava sujo,
desgrenhado e barbudo; podia estar doente ou ter algo contagioso.
No final da minha
investigação e após o lançamento do meu livro, voltei a vê-lo. Massimo Costanza
não é socorrista de profissão. É eletricista, tem mulher e filhos. É uma pessoa
comum.
O Prémio Nobel da
Paz tem uma razão de ser. Sem a sua atribuição a Aung San Suu Kyi, muito poucas
pessoas teriam tomado conhecimento da ditadura na Birmânia. É por isso que é
preciso assinar esta petição: para quebrar o silêncio e dar a conhecer ao mundo
o que está a acontecer no extremo Sul da União Europeia.
Traduzido por Ana
Cardoso Pires
Na foto (AFP) - Um
grupo de pescadores prepara-se para colocar uma coroa de flores em memória dos
imigrantes mortos a 5 de outubro, ao largo da ilha de Lampedusa
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Presseurop
1 comentário:
Acabo de ler a vossa postagem sobre a proposta de candidatura da Ilha de Lampedusa ao Prémio Nobel da Paz, 2014. Bravo Fabrizio Gatti. Bravo jornal Espresso!
Permitam-me que vos apresente então o meu último vídeo-poema para Ruy Belo, "Morte ao Meio dia", onde proponho uma leitura deste belíssimo poema diferente da habitual, centrada no quadro do Estado-nação.
Em diversas línguas europeias o termo que denota o “meio-dia” permite também designar o Sul geográfico. Tal foi o ponto de partida deste vídeo:
https://www.youtube.com/watch?v=9OXreLC9aq4
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