Daniel Oliveira – Expresso, opinião
"Se a China
permanece unida e emerge como uma superpotência do século XXI, Mao pode ter,
para muitos chineses, o mesmo papel ambíguo ainda que respeitado na História
chinesa que Qin Shiuang, o imperador que ele vencera pessoalmente: o autocrata
fundador da dinastia que arrastou a China para a era seguinte recrutando a
população para um grande esforço nacional e cujos excessos foram mais tarde
reconhecidos por alguns como um mal necessário."
É desta forma
provocadora que, no seu livro "Da China", Henry Kissinger resume o
legado de Mao Zedong e do seu muito particular socialismo na longuíssima
história da China. Mas a verdadeira transição entre a sociedade tradicional e a
modernidade capitalista, conseguida mantendo intacta a periclitante unidade do
país, foi garantida no caminho para a sucessão de Mao, quando, depois de muitos
percalços, os "pragmáticos administradores" Zhou Enlai e Deng
Xiaoping (também eles se digladiaram) levaram a melhor face aos puristas da
revolução permanente, liderados por Jiang Qing e o seu Bando dos Quatro. De
novo Kissinger: "Mao destruiu a China tradicional e deixou os seus
escombros como elemento para a modernização final. Deng teve a coragem de
basear a modernização na iniciativa e na capacidade de recuperação dos chineses".
Mao destruiu, com mão de ferro, o regime que mantinha a China no passado; Deng
lançou, com mão de ferro, as fundações do modelo capitalista chinês. Preso em
1966, por ser "seguidor do capitalismo", e duas vezes caído em
desgraça, Deng Xiaoping segurou as rédeas do poder, vindo bem de dentro dele e
sempre garantindo para si a legitimidade revolucionária de bom socialista, e
mudou a história da China. E com ela, a história do mundo.
Muitos julgaram que
uma China aberta ao mundo e ao mercado acabaria por caminhar para a democracia.
Quando o bloco de leste se desmoronou e jovens chineses tentavam tomar a
simbólica praça de Tiananmen, o poderoso Deng deixou claro, depois de algumas
hesitações, que o destino de Pequim não seria o de Moscovo. Demitiu o
secretário-geral do partido, Zhao Ziyang, e esmagou sem dó nem piedade os
sonhos democráticos duma juventude idealista. O próprio viria a explicar o que
estava em causa: "É muito fácil o caos aparecer de um dia para o outro.
Não será fácil manter a ordem e a tranquilidade. Se o Governo chinês não
tivesse tomado medidas resolutas em Tiananmen, teria havido uma guerra civil na
China. E porque a China tem um quinto da população mundial, a instabilidade na
China causaria uma instabilidade no mundo que até poderia envolver as grandes
potências." Resumindo o argumento de alguém que tinha bem vivos os perigos
da desordem da Revolução Cultural, um colosso das dimensões da China não se
pode dar ao luxo de ver a autoridade do seu poder em causa. Logo, uma
democracia chinesa, sendo, em tese, uma boa ideia, é um risco excessivo para o
resto do mundo e para ela própria. E foi por isso que o ocidente estrebuchou um
pouco - o estritamente necessário para agradar às suas opiniões públicas - e
logo esqueceu, abrindo os braços ao mercado chinês e ao seu líder
"reformador".
A
insustentabilidade do capitalismo chinês não é política. O capitalismo vive
bem, ao contrário do que reza a lenda, com regimes autoritários. É económica.
Um país não pode ter, durante muito tempo, grande parte do seu PIB em
investimento. Tem de consumir. Tem de ter mercado interno. Mesmo uma ditadura
não consegue conter os salários e manter eternamente uma colosso económico a
produzir muito barato. Nem consegue conter a pressão social duma classe média
que exige alguma qualidade de vida.
É por isso mesmo
que, no último fim de semana, os mais poderosos quadros do Partido Comunista da
China se encontraram no terceiro plenário do 18º Comité Central para um debate
fundamental para o futuro da China e do mundo. Não falta quem compare este
encontro, envolto em muito secretismo, ao terceiro plenário do 11º Comité
Central, realizado em Dezembro de 1978, e que marcou a viragem pragmática da
China para a economia de mercado e o fim do ciclo maoista. O encontro acabou
ontem. Só nos próximos dias ou semanas se saberá se se confirma o prognóstico:
que se iniciará, na China, uma reforma económica, social e política sem
precedentes. Uma informação que vinha de dentro do próprio Partido Comunista. O
centro destas reformas, diz o governo, passa pela ideia de que o mercado irá
ter "um papel decisivo" na "gestão dos recursos". Mas,
muito mais importante para todos nós, que o crescimento económico mudará o seu
eixo da produção exportadora para o consumo interno.
Segundo a imprensa
internacional do último fim de semana, iria ser entregue aos membros do Comité
Central o "plano 383", da autoria do Lui He, ex-estudante de economia
em Harvard, novo diretor da Comissão Nacional para o Desenvolvimento e Reformas
e que passou pela equipa de Jiang Semin - que criou esse extraordinário
conceito de "economia socialista de mercado". Este plano 383, a ser
aplicado nos próximos dez anos, seria o legado do presidente Xi Jinping, que
poderia levar a China a uma nova revolução económica. As reformas económicas,
que o governo confirma no seu espírito geral, passariam pela entrada de capital
privado em algumas das mais poderosas empresas estatais (autênticos colossos).
Poderá vir a ser alterado o regime de propriedade agrária, permitindo a pequena
propriedade para os camponeses. Especulava-se sobre a mudança do estatuto dos
trabalhadores migrantes, alterações profundas na segurança social e pequenas
alterações na política do filho único (esta está confirmada). Resumindo: a
China terminará a sua evolução para a economia de mercado. Mas esse caminho
também incorporará algumas das conquistas sociais do século XX.
O mundo poderá vir
a ter boas notícias em matéria económica. Boas notícias, porque o nosso
problema nunca foi a entrada da China no mercado internacional. Foi tê-lo feito
só para produzir e exportar, por via da sua competitividade em baixos salários.
Se os salários aumentam, o consumo aumenta e os direitos e proteções sociais
aumentam, isso será uma enorme ajuda ao nosso modelo social e à nossa
sustentabilidade económica, pondo os factores de competitividade económica onde
eles devem estar. O crescimento dos salários chineses e do seu mercado interno
é uma urgência absoluta para todos nós.
Mas, no que toca ao
aprofundamento democrático, não me arrisco a fazer previsões. Desejo
sinceramente que a democracia venha com o crescimento da classe média (que
agora poderá vir a ser exponencial). Mas essa democratização depende do que
consideramos serem os limites da própria democracia. Não basta eleições,
parlamento e uma imprensa mais ou menos livre para falarmos de democracia. E
mesmo estas três coisas parecem uma miragem quando olhamos para a China. É
preciso um exercício de direitos cívicos quotidianos e uma sociedade civil
capaz de fazer frente ao poder político e poder económico. Separação de
poderes, direitos laborais e sindicais, mínimos de igualdade social e por aí
adiante.
Por mais que me
esforce, tenho dificuldade em imaginar a imensa China, multicultural,
multirreligiosa e sem qualquer experiência levemente democrática no seu
passado, a viver em paz com uma verdadeira democracia pluripartidária e livre
nas próximas décadas. Pode ser que a democracia chinesa nasça muito lentamente,
como quase tudo naquela imensa nação. Pode ser que viva, durante muitas décadas,
em regime semidemocrático. E que isso até se transforme num padrão para todos
nós. Não nos é difícil imaginar um capitalismo global construído à custa do
enfraquecimento das democracias nacionais. E a esta democracia de baixa
intensidade a China até pode adaptar-se com alguma facilidade.
Posso esforçar-me
por imaginar que o aumento do consumo na China, o crescimento duma classe média
poderosa e os novos padrões culturais que isso trará, mudarão os níveis de
exigência democrática e social dos chineses. E que que isso venha a
corresponder a um novo impulso à economia mundial e ao começo de uma nova era
de esperança. Mas não é fácil comprar o otimismo do jornalista do Financial
Times, James Kynge, que termina o seu livro "A China abala o Mundo" com
uma nota de esperança: "É esta flexibilidade e pragmatismo, constantemente
visível na transformação da China, que fornece o contra-argumento de cenários
futuros carregados de ameaças. Talvez a China esteja demasiado ligada ao mundo,
demasiado implicada nas suas organizações e tratados e demasiado dependente dos
outros para morder as mãos que lhe dão de comer." É indiscutível o
pragmatismo chinês e a eficácia com que está a conseguir a sua integração na
economia global. Só que isso não a leva obrigatoriamente à democracia. Não a
levaram as reformas dos últimos 35 anos. E esta via autoritária para a
sociedade de mercado pode bem vir a ser um modelo de sucesso. É que "as
mãos que dão de comer" à China estão-se nas tintas para as nossas
fantasias democráticas.
Sendo pessimista ou
otimista, as consequências do que por estes meses ser vai decidir na China são
brutais para todos nós. Da última vez que a China se moveu, e entrou no mercado
global, o mundo inteiro tremeu. Na realidade, ainda estamos a sentir as
réplicas do terramoto provocado por Deng Xiaoping. Outros abalos virão.
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