quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Portugal: MUDAR DE LENTES

 


Manuel Maria Carrilho – Diário de Notícias, opinião
 
Mas, afinal, para que é que eles servem? Eles são os economistas, claro, que em rigor nada conseguiram prever do que aconteceu, e hoje nada conseguem resolver nem, na verdade, esclarecer. Esta impotência devia ser, a meu ver, o principal tópico do pensamento político atual, ele é muito mais decisivo do que as piruetas e as lérias que por aí correm sobre a "reforma do Estado".
 
Porquê um tal fracasso? E como é que, nestas circunstâncias, é possível "fazer fé" nas suas sempre desmentidas profecias, como se vivêssemos num sucessivo garrote de ilusões e de decepções? Para nos libertarmos disto, temos de urgentemente mudar de lentes, porque são as nossas erradas perspetivas que estão a condicionar a perceção individual e coletiva da realidade, num processo que simultaneamente - e isso está bem estudado há muito tempo - vai astuciosamente construindo essa mesma realidade - a tal que, depois, claro, não tem alternativa!...
 
Mudar de lentes e olhar de olhos bem abertos para tudo o que está por trás deste engodo, ao nível da formação, dos negócios, dos lobbies e dos fantásticos lucros obtidos por estes supostos especialistas, que de resto já eram mais ou menos os mesmos de antes da crise.
 
Mudar de lentes para compreender bem que o problema fundamental do nosso mundo é hoje indiscutivelmente o das crescentes desigualdades, como o provam os últimos livros de autores tão diversos como Joseph Stiglitz, de Stephen D. King ou de Thomas Piketty, este último autor de um monumental como imperdível Le Capital au xxi Siècle.
 
Mudar de lentes é perceber que este problema tem tido um autêntico efeito de dominó sobre todos os outros problemas económicos e sociais dos nossos dias, o que infelizmente os economistas em geral preferem ignorar, como M. Aglietta sublinhava há dias na revista Esprit.
 
Eles preferem realmente dedicar-se a outras coisas, como sofisticar "o discurso de legitimação de captura da sociedade pela finança ao serviço de uma ideologia anglo--saxónica ultraliberal, que embora não se tenha imposto por todo o lado com o mesmo grau no plano político, reina sem rival no plano académico".
 
É este , insisto, o grande problema político dos nossos dias. Por um lado, vive-se sob uma ideologia que passa por ciência sem contudo satisfazer os mais elementares quesitos de cientificidade (por exemplo, os de Karl Popper e da falsificabilidade das hipóteses) que ela exige. E, por outro lado, alimenta-se um permanente fetichismo dos números, como se em cada centésima se decidisse o destino do mundo, um fetichismo mágico que aparece como a única base de uma cada vez mais pobre compreensão da sociedade e do mundo.
 
Precisamos de lentes novas que olhem em primeiro lugar para o bem da sociedade e para o bem comum, e depois mobilizem todas as disciplinas e saberes disponíveis (entre os quais estará, claro, a economia) como instrumentos dos objetivos a atingir. Precisamos de lentes novas que permitam compreender que, em si, o mercado é na verdade indiferente à justiça, à igualdade ou ao progresso, que o que determina tudo é a política - isto é, a vontade expressa dos cidadãos -, que tem sempre de o enquadrar e regulamentar.
 
Nenhuma filosofia do mercado pode, de modo algum, pretender legitimar-se independentemente dos problemas da sociedade e das opções dos cidadãos. É ainda M. Aglietta que o enfatiza: "Chega de fórmulas abstratas e ocas em que os políticos são useiros e vezeiros: a justiça, a liberdade, os direitos do homem, etc. Os indivíduos estão inseridos numa coletividade civil integrando-se em múltiplas pertenças coletivas. Isso requer uma expertise civil sobre as interdependências sociais nas quais os economistas têm sempre o seu lugar. Isso significa que a economia deve ser reconhecida como fazendo parte das ciências sociais, mas sem qualquer pretensão de hegemonia" - exatamente o contrário do que se tem passado.
 
E bons exemplos não faltam, de John Rawls a Amartya Sen de Esther Dufluo. É talvez à noção de "capabilidade" de A. Sen que mais devamos hoje recorrer, porque se trata de uma ideia que cruza as nossas capacidades humanas com o nosso poder de agir. E são justamente as "capabilidades" do ser humano, tão esquecidas e desprezadas pelo financismo dominante, o elemento que torna mais real a liberdade que nos constitui como pessoas.
 
Ora, o que verificamos hoje, como tantos autores não se cansam de repetir e nós de o esquecer, é que infelizmente são as liberdades o que justamente mais tem recuado, e significativamente, nos chamados países desenvolvidos, domesticados por um financismo que faz desaparecer todas as ambições e objetivos sociais sob o torniquete da cupidez mais estrambólica e dos rendimentos mais duvidosos.
 
Vivemos afinal como se a verdadeira liberdade fosse apenas a da finança, que tudo submete a um único objetivo: o da renda máxima pelo máximo de tempo, com o consequente esmagamento da economia real e da vida das pessoas.
 
Todos sabemos que a economia de mercado e o capitalismo estão de facto inextricavelmente ligados. Mas isso não os torna na mesma coisa. Keynes lembrou muitas vezes que os capitalistas são aqueles que têm acesso à moeda para financiar os meios de produção, enquanto os assalariados são aqueles que têm acesso à moeda alugando a sua força de trabalho.
 
A grande ilusão de Keynes foi a de que essa força, digamos conjunta ou convergente, podia ser posta ao serviço da civilização e do progresso, através da regulação e da democracia. Compete-nos a nós tirar a lição desta ilusão - e esse o trabalho que os socialistas têm pela frente, e na verdade têm tardado a fazer, criando os conceitos e definindo as modalidades de que a nossa sociedade precisa para, finalmente, se começar a pensar que é possível mudar de modelo. E a mostrar que há alternativa.
 

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