Manuel Maria
Carrilho – Diário de Notícias, opinião
Mas, afinal, para
que é que eles servem? Eles são os economistas, claro, que em rigor nada
conseguiram prever do que aconteceu, e hoje nada conseguem resolver nem, na
verdade, esclarecer. Esta impotência devia ser, a meu ver, o principal tópico
do pensamento político atual, ele é muito mais decisivo do que as piruetas e as
lérias que por aí correm sobre a "reforma do Estado".
Porquê um tal
fracasso? E como é que, nestas circunstâncias, é possível "fazer fé"
nas suas sempre desmentidas profecias, como se vivêssemos num sucessivo garrote
de ilusões e de decepções? Para nos libertarmos disto, temos de urgentemente
mudar de lentes, porque são as nossas erradas perspetivas que estão a
condicionar a perceção individual e coletiva da realidade, num processo que
simultaneamente - e isso está bem estudado há muito tempo - vai astuciosamente
construindo essa mesma realidade - a tal que, depois, claro, não tem
alternativa!...
Mudar de lentes e
olhar de olhos bem abertos para tudo o que está por trás deste engodo, ao nível
da formação, dos negócios, dos lobbies e dos fantásticos lucros obtidos por
estes supostos especialistas, que de resto já eram mais ou menos os mesmos de
antes da crise.
Mudar de lentes
para compreender bem que o problema fundamental do nosso mundo é hoje
indiscutivelmente o das crescentes desigualdades, como o provam os últimos
livros de autores tão diversos como Joseph Stiglitz, de Stephen D. King ou de
Thomas Piketty, este último autor de um monumental como imperdível Le Capital
au xxi Siècle.
Mudar de lentes é
perceber que este problema tem tido um autêntico efeito de dominó sobre todos
os outros problemas económicos e sociais dos nossos dias, o que infelizmente os
economistas em geral preferem ignorar, como M. Aglietta sublinhava há dias na
revista Esprit.
Eles preferem
realmente dedicar-se a outras coisas, como sofisticar "o discurso de
legitimação de captura da sociedade pela finança ao serviço de uma ideologia
anglo--saxónica ultraliberal, que embora não se tenha imposto por todo o lado
com o mesmo grau no plano político, reina sem rival no plano académico".
É este , insisto, o
grande problema político dos nossos dias. Por um lado, vive-se sob uma
ideologia que passa por ciência sem contudo satisfazer os mais elementares
quesitos de cientificidade (por exemplo, os de Karl Popper e da
falsificabilidade das hipóteses) que ela exige. E, por outro lado, alimenta-se
um permanente fetichismo dos números, como se em cada centésima se decidisse o
destino do mundo, um fetichismo mágico que aparece como a única base de uma
cada vez mais pobre compreensão da sociedade e do mundo.
Precisamos de
lentes novas que olhem em primeiro lugar para o bem da sociedade e para o bem
comum, e depois mobilizem todas as disciplinas e saberes disponíveis (entre os
quais estará, claro, a economia) como instrumentos dos objetivos a atingir.
Precisamos de lentes novas que permitam compreender que, em si, o mercado é na
verdade indiferente à justiça, à igualdade ou ao progresso, que o que determina
tudo é a política - isto é, a vontade expressa dos cidadãos -, que tem sempre
de o enquadrar e regulamentar.
Nenhuma filosofia
do mercado pode, de modo algum, pretender legitimar-se independentemente dos
problemas da sociedade e das opções dos cidadãos. É ainda M. Aglietta que o
enfatiza: "Chega de fórmulas abstratas e ocas em que os políticos são
useiros e vezeiros: a justiça, a liberdade, os direitos do homem, etc. Os
indivíduos estão inseridos numa coletividade civil integrando-se em múltiplas
pertenças coletivas. Isso requer uma expertise civil sobre as interdependências
sociais nas quais os economistas têm sempre o seu lugar. Isso significa que a
economia deve ser reconhecida como fazendo parte das ciências sociais, mas sem
qualquer pretensão de hegemonia" - exatamente o contrário do que se tem
passado.
E bons exemplos não
faltam, de John Rawls a Amartya Sen de Esther Dufluo. É talvez à noção de
"capabilidade" de A. Sen que mais devamos hoje recorrer, porque se
trata de uma ideia que cruza as nossas capacidades humanas com o nosso poder de
agir. E são justamente as "capabilidades" do ser humano, tão
esquecidas e desprezadas pelo financismo dominante, o elemento que torna mais
real a liberdade que nos constitui como pessoas.
Ora, o que
verificamos hoje, como tantos autores não se cansam de repetir e nós de o
esquecer, é que infelizmente são as liberdades o que justamente mais tem
recuado, e significativamente, nos chamados países desenvolvidos, domesticados
por um financismo que faz desaparecer todas as ambições e objetivos sociais sob
o torniquete da cupidez mais estrambólica e dos rendimentos mais duvidosos.
Vivemos afinal como
se a verdadeira liberdade fosse apenas a da finança, que tudo submete a um
único objetivo: o da renda máxima pelo máximo de tempo, com o consequente
esmagamento da economia real e da vida das pessoas.
Todos sabemos que a
economia de mercado e o capitalismo estão de facto inextricavelmente ligados.
Mas isso não os torna na mesma coisa. Keynes lembrou muitas vezes que os
capitalistas são aqueles que têm acesso à moeda para financiar os meios de
produção, enquanto os assalariados são aqueles que têm acesso à moeda alugando
a sua força de trabalho.
A grande ilusão de
Keynes foi a de que essa força, digamos conjunta ou convergente, podia ser
posta ao serviço da civilização e do progresso, através da regulação e da
democracia. Compete-nos a nós tirar a lição desta ilusão - e esse o trabalho que
os socialistas têm pela frente, e na verdade têm tardado a fazer, criando os
conceitos e definindo as modalidades de que a nossa sociedade precisa para, finalmente,
se começar a pensar que é possível mudar de modelo. E a mostrar que há
alternativa.
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