Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
A conversa sobre a
retoma da economia, a luz ao fundo do túnel e o regresso aos mercados é a banda
sonora. O Orçamento de Estado é o guião. E a banda sonora da comédia romântica
não cola com o filme gore. Porque começamos a ter alguma tarimba em austeridade,
sabemos exatamente o que acontecerá: entre as previsões e a realidade qualquer
semelhança será pura coincidência.
O caminho
determinado por este orçamento não resulta apenas de incompetência. O
"ajustamento interno" que a troika e o governo pretendem, correspondendo
à contração da economia, quer simular, de forma tosca, uma desvalorização
monetária. Que permita garantir o crescimento por via da redução dos custos de
trabalho e redução do consumo. E isto já nos foi explicado com todas as letras:
temos de empobrecer para encontrar um novo lugar na economia do euro. Um lugar
que, um dia, acabará mesmo por garantir o nosso crescimento. Mas em moldes
sociais e económicos completamente novos, mais habituais nos países
subdesenvolvidos. Isto, e não as delirantes metas definidas pela troika, é que
interessa. Elas nunca foram para cumprir. E por isso mesmo a troika, nas suas
avaliações, pouca relevância lhes tem dado. As metas são a motivação para a
austeridade. A austeridade não é o meio para cumprir o memorando de
entendimento e o que lhe venha a suceder. É o meio para garantir esta
assustadora engenharia social. Que permitirá, de caminho, esmifrar a economia
nacional, transferindo todos os recursos ainda disponíveis para os credores.
Manter o IVA e o
IRS onde estão, punindo os consumidores, as pequenas empresas e os
trabalhadores, enquanto se desce o IRC, que apenas beneficiará grandes empresas
que já têm lucro, é uma escolha política. Fingir que se exige qualquer esforço
real à banca e empresas de energia (que é imediatamente compensado pela queda
do IRC) e às concessionárias das PPP (que só reduzem a as compensações que
recebem na medida em que vão reduzindo os serviços que garantem), enquanto se
assalta o contribuinte, o trabalhador e o reformado, é uma escolha política.
Dizer que, em caso de chumbo do Tribunal Constitucional, o plano B passa por
mais impostos pagos pelos de sempre, mantendo intocados os interesses que têm
sido poupados, também é uma escolha política. E estas escolhas não resultam de
teimosia. Se digo que são políticas é por terem uma racionalidade. E a sua
racionalidade corresponde à estratégia de empobrecimento definida pela troika.
Que implica perda de rendimento.
Muitos pensavam que
esta estratégia de empobrecimento teria como principal alvo os mais pobres.
Isso seria apenas sadismo e, havendo pouca margem para os empobrecer, não teria
grande efeito na economia. A redução do consumo e dos salários (os dois
principais instrumentos para, com a redução da despesa pública, contrair a
economia) passa pelo empobrecimento de quem consome e de quem tem salários
acima do limiar de sobrevivência: os trabalhadores (e também os reformados) que
ainda não são mesmo pobres. São eles que "inflacionam" os custos do
trabalho e, com o seu consumo, aumentam as importações.
A vitima
preferencial é o país do meio (que não é, longe disso, apenas a classe média),
que aproxima os seus rendimentos dum país de baixo cada vez mais maioritário e
se afasta cada vez mais das classes mais altas. É através do seu empobrecimento
que esta macabra engenharia social se faz. A ideia não é pôr todos na miséria e
causar o colapso político e social do país, apesar de, no meio de tanta
irresponsabilidade, tal poder vir a acontecer. É pôr quase todos próximo do
limiar da pobreza, a produzir barato para consumir apenas o indispensável,
exportando quase tudo o que se produz e não importando quase nada para
consumir. Os mais qualificados e mais jovens, que não quiserem participar neste
desígnio nacional, emigram. Esse é o investimento que fizemos e oferecemos de
borla a outros países. Aqui fica a mão de obra barata que trabalhará apenas
para exportar e pagar a dívida e os seus juros, numa das maiores transferências
de riqueza para o exterior a que este país já assistiu. Isto, claro, se a
estratégia resultar.
O que nos é
proposto é passarmos a ocupar, na economia global, o lugar reservado para os
países subdesenvolvidos. Como eles, escravos da dívida e da chantagem externa.
A competitividade que nos propõem depende, na política, da ausência de
exigência democrática. Na organização social, da ausência de mobilidade e dos
serviços públicos que a facilitam. Na economia, da ausência de mercado interno
e de consumo. E, para tudo isto, do empobrecimento radical da classe média e
dos remediados. É isso mesmo que significa o orçamento ontem aprovado: a
continuação do ataque ao país do meio. E assim, dentro da Europa, vamos saindo
dela.
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