Depois do Mali,
Paris intervém na República Centro-Africana, convida parceiros europeus à
aventura e finge esquecer resultados trágicos da Conferência de Berlim, em 1885
Vinícius Gomes –
Outras Palavras, em Blog da Redação
Se havia dúvidas de
que o governo “socialista” francês sente-se nostálgico das velhas relações
entre Europa e África, elas terminaram nesta terça-feira (17/12). Ao falar ao
Parlamento de seu país, o ministro das Relações Exteriores, Laurent Fabius, anunciou que “diversos países europeus” seguirão a
iniciativa francesa e enviarão soldados à República Centro-Africana (RCA), a pretexto
de “restarurar a paz”. A iniciativa põe em evidência, mais uma vez, os impasses
da África, dividida entre países que vivem surtos (às vezes desordanados) de
desenvolvimento e outros, em que o Estado nacional desmorona. Porém, a novidade
principal é o regresso de um sentimento europeu atávico: a crença de que o
Velho Continente tem a “missão” de civilizar o mundo.
A situação da
República Centro-Africana é, de fato, dramática. Em março, um golpe de Estado
derrubou o presidente François Bozizé – que assumira o poder dez anos antes,
também por força das armas. Os últimos meses foram de caos crescente. Os
golpistas, que se articulam no movimento Séléka, praticaram saques, estupros e
execuções. Contra eles, formaram-se milícias igualmente violentas. Choques
entre ambas as partes provocaram centenas de mortes e desabrigaram 400 mil
pessoas – um em cada dez habitantes –, nas últimas semanas. A religião é a
linha divisória entre os dois grupos, o que torna mais difícil uma solução. O Séléka
é majoritariamente muçulmano; as milícias, cristãs.
A França, que já
havia intervido na Líbia, tentara instigar uma agressão ocidental à Síria e
ocupara o Mali, no início do ano, resolveu por as mãos também na República
Centro-Africana. Cerca de 1,6 mil soldados franceses, com armamento muito
superior ao dos grupos africanos, estão no país desde o final de novembro. Duas
mortes, entre os invasores, fizeram despencar o apoio à intervenção na França.
Por isso, o ministro Fabius está ansioso por envolver outras nações europeias.
Mas por trás das
disputas na RCA está também… a Europa. O país é apenas mais, entre os que
tiveram suas fronteiras forjadas pela “imaginação” europeia, no século 19. O
episório marcante desta intervanção foi a Conferência de Berlim, em 1885. Nela, governantes do
Ocidente partilharam entre si o continente africano. Oito potências – Grã
Bretanha, França, Espanha, Itália, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Estados Unidos,
Suécia, Áustria-Hungia e Império Otomano – dedicaram-se a este exercício
macabro, em consórcio com suas grandes empresas.
Desrespeitaram história,
relações étnicas e culturais dos povos nativos. Traçaram as fronteiras do
continente com a força de seus exércitos e a bússula de seus próprios
interesses. As consequencias podem ser sentidas mais de cem anos depois.
Expressam-se nos genocidios de Ruanda e Darfur, na necessidade de criar o Sudão
do Sul e em violentos conflitos entre muçulmanos e cristãos na Nigéria e agora,
na RCA.
Mas por que a
França tem desempanhado papel central? Num texto recente, o sociólogo Immanuel
Wallerstein sugere: que “o que permite
essa agressividade francesa é o declínio do poder efetivo dos EUA no cenário
mundial”. E o palco da ação de Paris é a África, continente que a França sempre
viu como seu “quintal” e onde ainda mantém três grandes bases militares.
O próprio
Wallerstein lembra, contudo, que tudo tem um preço: “Assim como os EUA descobriram
no Oriente Médio, pode ser bem difícil retirar suas tropas uma vez que elas
entram [no país]“, e geralmente, a opinião pública doméstica não apoia mais a
intervenção. No caso da RCA, não chegou nem a dez dias.
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