Daniel Vaz de
Carvalho [*]
O proletariado
liberta-se suprimindo a concorrência. F. Engels [1]
Chama-se liberdade de imprensa o direito exclusivo de certos potentados ou certos malfeitores, graças à sua fortuna ou às suas chantagens, de influir na opinião do país.
Chama-se liberdade de imprensa o direito exclusivo de certos potentados ou certos malfeitores, graças à sua fortuna ou às suas chantagens, de influir na opinião do país.
Chama-se liberdade económica à liberdade que têm alguns indivíduos de se oporem
em nome dos interesses criados à liberdade de todos os outros.
Chamo-lhe os sofismas liberais aos quais acrescentava a chamada liberdade de ensino.
Cada dia se imporá com mais clareza que o liberalismo económico é uma das formas mais revoltantes do privilégio e do despotismo. Raul Proença. [2]
1 – O QUE SE
PREPARA
No segredo dos cidadãos, em junho deste ano, a CE recebeu mandato dos ministros do Comércio Externo da UE para negociar com os EUA um tratado de comércio livre, também designado por «Transatlantic Trade and Investment Partnership» (TTIP) para entrar em vigor em 2015. Desde julho que as negociações decorrem.
Este secretismo mostra bem o nível a que os políticos ao serviço das oligarquias desceram. Trechos do tratado vieram a público no sítio da internet do L'Humanité. O ministro francês do Comércio Externo indignou-se com "as fugas". [3]
Aqueles que imaginam a UE como um espaço de progresso e democracia, "abandonem toda a esperança", como, na Divina Comédia, Dante viu escrito "em letreiro escuro" à entrada do Inferno e, já agora, tapem o nariz: para publicar o documento foi necessário decifra-lo, pois estava encriptado! [3] Eis por onde anda a "glasnot" na UE…
"As negociações são secretas para impedir os povos de descobrirem o que verdadeiramente está em jogo. Por outro lado, 600 "conselheiros" oficiais das grandes empresas dispõem de um acesso privilegiado a estas negociações para forjar o seu ponto de vista" [4]
O acordo visa não apenas o livre comércio de bens e serviços mas também a "proteção", leia-se: a desregulamentação, dos investimentos. O objetivo é "ir além dos compromissos atuais da OMC". Pretende assim, conforme expresso, "ligar ao mais alto nível de liberalização os acordos de comércio livre existentes." "A eliminação de todos os obstáculos inúteis ao comércio (…) e à abertura dos mercados e uma melhoria das regras". [5]
É fácil entender o que esta gente entende por "obstáculos inúteis "e "melhoria das regras": trata-se de eliminar ou tornar insignificantes salário mínimo, indemnizações por despedimento, subsídios de desemprego, enfim direitos sociais e laborais, que no fanatismo neoliberal são obstáculos "à criação de riqueza". Para quem? É a questão.
Diz-se que os "serviços fornecidos no exercício da atividade governamental devem estar excluídos das negociações". Porém esclarece-se que por "serviço no exercício do poder governamental entende-se todo o serviço que não é fornecido nem sob uma base comercial nem em concorrência com um ou vários fornecedores de serviços". [5] Note-se a subtileza do "um fornecedor". No reino do neoliberalismo, vivam pois os monopólios!
Saúde pública, escola pública, segurança social pública tudo isto ou acaba ou fica residual, decadente, apenas em termos de assistencialismo. É voltar aquilo a que em linguagem anglo-saxónica se designa pelas "dark ages" – os anos negros.
O resto é sujeito à gula das multinacionais. Quem quiser educação paga-a, quem quiser saúde paga-a, quem quiser pensão de reforma privatiza-a, ou seja, pague os lucros e sujeite-se à economia de casino. Toda a orientação política do atual governo e da UE é já neste sentido.
Normas, regulamentos sanitários, sociais e laborais serão "uniformizados, aplanados, harmonizados". Isto significa que as restrições a aditivos, pesticidas, carne com hormonas, sementes transgénicas (OGM) serão cada vez mais ténues ou mesmo inexistentes, para o que contribuirá a propaganda ao serviço destes interesses e os especialistas subvencionados, sem o que nem as universidades nem eles próprios subsistem. Assim está desenhado este "admirável mundo novo", construído no mito da eficiência privada.
Em função da concorrência "as normas mundiais procuradas serão as mais baixas e as menos protetoras, exceto para os investidores e acionistas." [6] Se assim não fosse as grandes marcas multinacionais de confeções não procuravam trabalho semi-escravo em países como o Bangladesh.
As informações das embalagens tornar-se-ão mais opacas ou enganadoras, sob pena também de caso contrário prejudicarem o comércio. A saúde pública fica à conta do "mercado".
Claro que haverá alimentos baratos mas de baixa qualidade nutricional para os pobres e saudáveis mas caros para quem puder pagar. Eis o que os sicofantas do neoliberalismo vão propagandear como liberdade de escolha.
2 – TODO O PODER ÀS MULTINACIONAIS
O tratado representa o culminar do processo neoliberal imposto aos povos, ficando a sua soberania à mercê dos interesses grande capital. Este, se achar que um Estado limita por regulamentações, taxas, leis, as suas vendas ou investimentos pode processar esse Estado que será obrigado a pagar uma indemnização e sujeitar-se.
É fácil imaginar o que isto representa para países endividados, a braços com elevado desemprego, deficitários devido à fuga de capitais e sem crescimento económico. São de facto Estados párias, no que esta expressão significa de sem direitos e exclusão.
Um Estado pode ser acusado e processado por pôr entraves ao "livre comércio" ou a investimentos, designadamente por normas de controlo sanitário, de qualidade, de biodiversidade, ecológicas. A resolução de qualquer litígio não é entregue a Tribunais soberanos nacionais, mas fica a cargo de um organismo dito regulador ou regulamentar.
"O mais escandaloso é que um tribunal dominado por uma pequena clique de advogados de negócios poderá lançar o anátema sobre Estados ou instâncias que infrinjam as disposições do acordo. O grande capital passa a dispor de uma "supremacia do tipo imperial que lhe permite fazer passar os seus direitos antes de todos os outros" [4]
Há aliás casos de processos em curso com pedidos de indemnizações de milhares de milhões de dólares, reclamados por megaempresas a Estados, ou seja, ao povo. Por exemplo, Philip Morris (tabaco) contra o Uruguai e Austrália; Vattenfall (nuclear) contra a Alemanha; Lone Pine (extração de gás de xisto) contra o Canadá por recusas ambientais do Quebec. [6]
Refira-se que "a jurisprudência do tribunal de justiça da UE já dá prioridade ao direito de concorrência sobre as legislações sociais dos Estados membros" (decisão Viking, decisão Ruffert, decisão da Comissão contra o Luxemburgo) [5]
O fabricante de um aditivo cancerígeno contido na gasolina exigiu do Canadá 250 milhões de dólares por "perda de vendas e entraves ao comércio. O Canadá temendo perder o processo autorizou o aditivo e pagou uma indemnização de 10 milhões de dólares ao fabricante" [4]
A cláusula de lucros cessantes que qualquer contrato de boa-fé rejeita por leonina, pode ser agora aplicada sob a forma de lucros potenciais cessantes.
O tratado é aliás bastante claro no seu objetivo de impor um totalitarismo supranacional, ao prescrever que todas as restrições que não estejam justificadas por exceções no tratado serão suprimidas. Neste contexto, os Estados ficam ameaçados de ser penalizados com sanções, multas ou aumento das taxas de juro.
Se um país recusar produtos alimentares dos EUA com aditivos, hormonas, originários de OGM poderá ser penalizado: estará a pôr entraves ao "comércio livre". Democracia, critérios de saúde e regulamentação alimentar que cada Estado deveria poder definir segundo critérios próprios conforme a decisão dos seus cidadãos – assim se construiu e constrói o progresso – serão não apenas considerados nulos, mas poderão obrigar a pagar indemnizações como lucros que determinadas empresas alegarão ter deixado de receber.
Trata-se como afirma Susanne Suchuster de "um ataque frontal contra a nossa democracia ou, pelo menos, do que ainda resta". [4]
3 – "AS BOAS INTENÇÕES"
Os argumentos vão ser os mesmos com que se propagandearam os tratados da UE e do euro, a diretiva do mercado comum dos contratos públicos, etc. Tudo isto iria trazer mais emprego, mais crescimento, mais economias para o Estado. Chegaram mesmo a quantificar os aumentos. Que se verificou? Mais desemprego, mais pobreza, mais endividamento, numa UE que recua perante a economia mundial, até mesmo perante os EUA.
O ponto 8 do tratado afirma: "O acordo deveria reconhecer que as partes não encorajarão o comércio ou o investimento direto estrangeiro pelo abaixamento da legislação e das normas em matéria de ambiente, trabalho ou saúde e segurança no trabalho, ou pela flexibilização das normas fundamentais do trabalho ou das políticas e legislações visando proteger e promover e a diversidade cultural" [5]
Trata-se enfim da "poeira para os olhos" necessária à propaganda e alibis para as cedências da social-democracia e seus sindicatos (como a UGT em Portugal). A flexibilização e o abaixamento de legislação e normas não precisam ser "encorajadas" elas são já a base das políticas da concorrência "livre e não falseada" da UE, que se agravarão com os desequilíbrios que o tratado irá provocar em países já de si afetados por intermináveis crises.
Tudo isto não passa de letra morta, fraseologia ridícula e hipócrita face às imposições de "captar investimento" e de "cumprir os compromissos com os nossos credores". O problema reside em que textos declarativos não têm precedência sobre o que é normativo e estas "boas intenções" quanto a direitos humanos e saúde pública contradizem tudo o que tem sido promovido pela OMC, FMI e CE.
Como acreditar que "serão mantidos os serviços de interesse geral" se para o neoliberalismo o "interesse geral" é garantido de forma mais "eficiente" pelos privados como é constantemente propagandeado, como justificação para desmantelar serviços públicos. O problema é em que condições, por quem e como.
Com todo o cinismo afirma-se: "A regulamentação nacional pode continuar a aplicar-se desde que não comprometa as vantagens decorrentes do acordo." [5]
Esta frase assemelha-se a uma graçola de mau gosto, uma verdadeira boçalidade, mais valia acrescentar: poderão aplicar-se mas com todas as consequências decorrentes do tratado.
O significado de direitos sociais e laborais para os neoliberais foi evidenciado pelo ministro Aguiar Branco ao dizer que o Estado Social existente se assemelha a um totalitarismo.
Claro que é este "totalitarismo" que impede os procedimentos de controlo, opressão e perseguição das multinacionais sobre os trabalhadores, que os proprietários da Wall-Mart, a família mais rica do planeta, praticam. Procedimentos que incluem sistemas de vigilância, espionagem e repressão sobre atividades políticas ou sindicais, contratando para o efeito gente especializada nessas funções.
A quem interessa afinal este tratado? Em primeiro lugar, à grande indústria alemã e às megaempresas do agroalimentar dos EUA. O tratado vai ao encontro dos desejos e necessidade de expansão do grande capital obtido a custo real zero na especulação e nos bancos centrais ao seu serviço. As oligarquias anseiam por algo como este tratado, que as ponha ao abrigo das incertezas e constrangimentos que a democracia lhes pode trazer. Não se consideram cidadãos como os outros. São o equivalente à nobreza do feudalismo.
Mas então com a teoria da "vantagem comparativa" não ganham todos? Talvez, mas nunca quando são as multinacionais a definirem o que se entende por "vantagem".
Há muito que a vida demonstrou que em termos de comércio livre "a vantagem comparativa entre um país rico e bem equipado e um país pobre e sem equipamento moderno conduz a uma especialização desastrosa, pois o segundo perde toda a possibilidade de se desenvolver ou mesmo manter a sua indústria" . (História do Pensamento Económico, Henri Denis, Livros Horizonte, p. 583)
Mesmo o agro-alimentar francês fica em risco; indústrias como a francesa ou italiana ficarão severamente constrangidas ao desaparecimento ou a tornarem-se subsidiárias de megaempresas dos EUA.
O que acontecerá aos países mais vulneráveis da UE pode ser avaliado pelo ocorrido na Colômbia e no México, respetivamente com os tratados ALENA e NAFTA. Na Colômbia "Houve um aumento desenfreado de importações e uma redução dos investimentos e das produções nacionais. Levando à ruína de camponeses, mineiros, camionistas e pequenos empresários". Vastas extensões de terras foram entregues às grandes empresas norte-americanas da agro-indústria sendo os camponeses expulsos. A revolta, que a comunicação social controlada ignorou, estendeu-se a 25 departamentos do país a incluindo a capital. [7]
Os EUA praticam o dumping através das subvenções à sua produção (o que é proibido direta ou indiretamente aos outros países), conduzindo a enormes aumentos das exportações do Norte em detrimento da produção nacional. [7]
No México existem hoje estufas ultramodernas de tomateiros, uma grande exportação para os EUA. Este "êxito" da "eficiência" neoliberal traduziu-se em 2,3 milhões de camponeses sem trabalho, obrigados a emigrar – 500 a 600 mil por ano até 2008, ano em que foram levantadas barreiras a esta situação. De qualquer forma, em 2011 existiam 11 milhões de emigrantes não legalizados nos EUA [7] em condições de trabalho de semi-escravatura. Acrescente-se que o homem mais rico do mundo é um mexicano…
4 – O GOLPE DE ESTADO NEOLIBERAL
Os agentes do neoliberalismo preparam o seu do golpe de Estado neofascista. O que os prossecutores desta verdadeira golpada pretendem é deitar abaixo o que resta de democracia real, direitos dos trabalhadores, funções sociais do Estado, tudo em nome, obviamente, da "eficiência" das "vantagens comparativas". Se assim não fosse nada estaria a ser feito longe e em segredo para os cidadãos.
O grande mercado transatlântico é "uma NATO económica", dizia a sra. Clinton, e como tal será colocado sob tutela dos EUA. [5]
Pelo tratado, no futuro acabarão por poder ser cultivadas apenas "sementes certificadas", isto é, das multinacionais dos OGM como a Monsanto ou a Sygenta. Todo o agricultor que guarde uma parte da sua colheita para semear nos seus campos poderá então vir a ser multado e em caso de reincidência objeto de processo judicial. A CE antecipa esta situação com a proposta da "Lei das Sementes", que obriga à certificação e registo das sementes, forma expedita de liquidar pequenos agricultores. Uma proposta de rejeição já foi apresentada pelos deputados do PCP no Parlamento Europeu.
Os vândalos estão, pois de volta! Se os povos abrandarem a sua resistência, um diretório de Estados dominantes irá gerir os demais como protetorados, no interesse das suas multinacionais e oligarquias. Como não poderá haver um tratamento mais favorável para as empresas nacionais, um país não mais poderá desenvolver a sua própria política económica, ficando sujeito às pretensões das mais poderosas multinacionais.
Segundo o tratado, as obrigações comprometem todos os níveis de governo, incluindo autarquias e regiões. Nada escapa! É o totalitarismo neoliberal. A realidade será afinal o pacto da troika a tempo inteiro sobre a UE. A representação democrática totalmente subvertida.
Milhões de trabalhadores já empobrecidos por uma crise económica crónica. Vão ser colocados em concorrência atroz. "Trabalhadores expostos ao dumping social, às deslocalizações, à precariedade, à chantagem ou ao desemprego sem que nenhum destes cidadãos possa usar o seu poder eleitoral para influenciar as escolhas politicas, económicas, sociais." [6]
Face aos desastres económicos, sociais e ambientais os mesmos que vão fazer a sua defesa e propaganda hão de mais tarde fazer-se de vitimas e, como no caso do pacto da troika, dizer que foi "mal desenhado", que "o problema é a Constituição", etc.
Os critérios de repressão sobre os trabalhadores aplicados pela Wall Mart podem ser o ideal para os srs. Soares dos Santos e outros oligarcas que fogem com a riqueza criada em Portugal para paraísos fiscais. Porém, não podem mudar a realidade, as suas contradições, a sua dialética.
Não contam com isso. Não entendem que o fascismo, qualquer que seja a máscara, os alibis, os colaboracionistas que encontre, será derrotado, porque não pode, como se provou através da História desde os tempos mais antigos, escapar à luta de classes e travar o progresso.
O proletariado liberta-se suprimindo a concorrência, escreveu Engels. Por isso da direita à social-democracia se vê uma tão grande obstinação na competição económica (em lugar de cooperação) à custa da exploração da força de trabalho. Bem dizia Raul Proença que "o liberalismo económico é uma das formas mais revoltantes do privilégio e do despotismo". Mas o que esperar de uma ideologia que faz de ganância a sua força motriz?
No segredo dos cidadãos, em junho deste ano, a CE recebeu mandato dos ministros do Comércio Externo da UE para negociar com os EUA um tratado de comércio livre, também designado por «Transatlantic Trade and Investment Partnership» (TTIP) para entrar em vigor em 2015. Desde julho que as negociações decorrem.
Este secretismo mostra bem o nível a que os políticos ao serviço das oligarquias desceram. Trechos do tratado vieram a público no sítio da internet do L'Humanité. O ministro francês do Comércio Externo indignou-se com "as fugas". [3]
Aqueles que imaginam a UE como um espaço de progresso e democracia, "abandonem toda a esperança", como, na Divina Comédia, Dante viu escrito "em letreiro escuro" à entrada do Inferno e, já agora, tapem o nariz: para publicar o documento foi necessário decifra-lo, pois estava encriptado! [3] Eis por onde anda a "glasnot" na UE…
"As negociações são secretas para impedir os povos de descobrirem o que verdadeiramente está em jogo. Por outro lado, 600 "conselheiros" oficiais das grandes empresas dispõem de um acesso privilegiado a estas negociações para forjar o seu ponto de vista" [4]
O acordo visa não apenas o livre comércio de bens e serviços mas também a "proteção", leia-se: a desregulamentação, dos investimentos. O objetivo é "ir além dos compromissos atuais da OMC". Pretende assim, conforme expresso, "ligar ao mais alto nível de liberalização os acordos de comércio livre existentes." "A eliminação de todos os obstáculos inúteis ao comércio (…) e à abertura dos mercados e uma melhoria das regras". [5]
É fácil entender o que esta gente entende por "obstáculos inúteis "e "melhoria das regras": trata-se de eliminar ou tornar insignificantes salário mínimo, indemnizações por despedimento, subsídios de desemprego, enfim direitos sociais e laborais, que no fanatismo neoliberal são obstáculos "à criação de riqueza". Para quem? É a questão.
Diz-se que os "serviços fornecidos no exercício da atividade governamental devem estar excluídos das negociações". Porém esclarece-se que por "serviço no exercício do poder governamental entende-se todo o serviço que não é fornecido nem sob uma base comercial nem em concorrência com um ou vários fornecedores de serviços". [5] Note-se a subtileza do "um fornecedor". No reino do neoliberalismo, vivam pois os monopólios!
Saúde pública, escola pública, segurança social pública tudo isto ou acaba ou fica residual, decadente, apenas em termos de assistencialismo. É voltar aquilo a que em linguagem anglo-saxónica se designa pelas "dark ages" – os anos negros.
O resto é sujeito à gula das multinacionais. Quem quiser educação paga-a, quem quiser saúde paga-a, quem quiser pensão de reforma privatiza-a, ou seja, pague os lucros e sujeite-se à economia de casino. Toda a orientação política do atual governo e da UE é já neste sentido.
Normas, regulamentos sanitários, sociais e laborais serão "uniformizados, aplanados, harmonizados". Isto significa que as restrições a aditivos, pesticidas, carne com hormonas, sementes transgénicas (OGM) serão cada vez mais ténues ou mesmo inexistentes, para o que contribuirá a propaganda ao serviço destes interesses e os especialistas subvencionados, sem o que nem as universidades nem eles próprios subsistem. Assim está desenhado este "admirável mundo novo", construído no mito da eficiência privada.
Em função da concorrência "as normas mundiais procuradas serão as mais baixas e as menos protetoras, exceto para os investidores e acionistas." [6] Se assim não fosse as grandes marcas multinacionais de confeções não procuravam trabalho semi-escravo em países como o Bangladesh.
As informações das embalagens tornar-se-ão mais opacas ou enganadoras, sob pena também de caso contrário prejudicarem o comércio. A saúde pública fica à conta do "mercado".
Claro que haverá alimentos baratos mas de baixa qualidade nutricional para os pobres e saudáveis mas caros para quem puder pagar. Eis o que os sicofantas do neoliberalismo vão propagandear como liberdade de escolha.
2 – TODO O PODER ÀS MULTINACIONAIS
O tratado representa o culminar do processo neoliberal imposto aos povos, ficando a sua soberania à mercê dos interesses grande capital. Este, se achar que um Estado limita por regulamentações, taxas, leis, as suas vendas ou investimentos pode processar esse Estado que será obrigado a pagar uma indemnização e sujeitar-se.
É fácil imaginar o que isto representa para países endividados, a braços com elevado desemprego, deficitários devido à fuga de capitais e sem crescimento económico. São de facto Estados párias, no que esta expressão significa de sem direitos e exclusão.
Um Estado pode ser acusado e processado por pôr entraves ao "livre comércio" ou a investimentos, designadamente por normas de controlo sanitário, de qualidade, de biodiversidade, ecológicas. A resolução de qualquer litígio não é entregue a Tribunais soberanos nacionais, mas fica a cargo de um organismo dito regulador ou regulamentar.
"O mais escandaloso é que um tribunal dominado por uma pequena clique de advogados de negócios poderá lançar o anátema sobre Estados ou instâncias que infrinjam as disposições do acordo. O grande capital passa a dispor de uma "supremacia do tipo imperial que lhe permite fazer passar os seus direitos antes de todos os outros" [4]
Há aliás casos de processos em curso com pedidos de indemnizações de milhares de milhões de dólares, reclamados por megaempresas a Estados, ou seja, ao povo. Por exemplo, Philip Morris (tabaco) contra o Uruguai e Austrália; Vattenfall (nuclear) contra a Alemanha; Lone Pine (extração de gás de xisto) contra o Canadá por recusas ambientais do Quebec. [6]
Refira-se que "a jurisprudência do tribunal de justiça da UE já dá prioridade ao direito de concorrência sobre as legislações sociais dos Estados membros" (decisão Viking, decisão Ruffert, decisão da Comissão contra o Luxemburgo) [5]
O fabricante de um aditivo cancerígeno contido na gasolina exigiu do Canadá 250 milhões de dólares por "perda de vendas e entraves ao comércio. O Canadá temendo perder o processo autorizou o aditivo e pagou uma indemnização de 10 milhões de dólares ao fabricante" [4]
A cláusula de lucros cessantes que qualquer contrato de boa-fé rejeita por leonina, pode ser agora aplicada sob a forma de lucros potenciais cessantes.
O tratado é aliás bastante claro no seu objetivo de impor um totalitarismo supranacional, ao prescrever que todas as restrições que não estejam justificadas por exceções no tratado serão suprimidas. Neste contexto, os Estados ficam ameaçados de ser penalizados com sanções, multas ou aumento das taxas de juro.
Se um país recusar produtos alimentares dos EUA com aditivos, hormonas, originários de OGM poderá ser penalizado: estará a pôr entraves ao "comércio livre". Democracia, critérios de saúde e regulamentação alimentar que cada Estado deveria poder definir segundo critérios próprios conforme a decisão dos seus cidadãos – assim se construiu e constrói o progresso – serão não apenas considerados nulos, mas poderão obrigar a pagar indemnizações como lucros que determinadas empresas alegarão ter deixado de receber.
Trata-se como afirma Susanne Suchuster de "um ataque frontal contra a nossa democracia ou, pelo menos, do que ainda resta". [4]
3 – "AS BOAS INTENÇÕES"
Os argumentos vão ser os mesmos com que se propagandearam os tratados da UE e do euro, a diretiva do mercado comum dos contratos públicos, etc. Tudo isto iria trazer mais emprego, mais crescimento, mais economias para o Estado. Chegaram mesmo a quantificar os aumentos. Que se verificou? Mais desemprego, mais pobreza, mais endividamento, numa UE que recua perante a economia mundial, até mesmo perante os EUA.
O ponto 8 do tratado afirma: "O acordo deveria reconhecer que as partes não encorajarão o comércio ou o investimento direto estrangeiro pelo abaixamento da legislação e das normas em matéria de ambiente, trabalho ou saúde e segurança no trabalho, ou pela flexibilização das normas fundamentais do trabalho ou das políticas e legislações visando proteger e promover e a diversidade cultural" [5]
Trata-se enfim da "poeira para os olhos" necessária à propaganda e alibis para as cedências da social-democracia e seus sindicatos (como a UGT em Portugal). A flexibilização e o abaixamento de legislação e normas não precisam ser "encorajadas" elas são já a base das políticas da concorrência "livre e não falseada" da UE, que se agravarão com os desequilíbrios que o tratado irá provocar em países já de si afetados por intermináveis crises.
Tudo isto não passa de letra morta, fraseologia ridícula e hipócrita face às imposições de "captar investimento" e de "cumprir os compromissos com os nossos credores". O problema reside em que textos declarativos não têm precedência sobre o que é normativo e estas "boas intenções" quanto a direitos humanos e saúde pública contradizem tudo o que tem sido promovido pela OMC, FMI e CE.
Como acreditar que "serão mantidos os serviços de interesse geral" se para o neoliberalismo o "interesse geral" é garantido de forma mais "eficiente" pelos privados como é constantemente propagandeado, como justificação para desmantelar serviços públicos. O problema é em que condições, por quem e como.
Com todo o cinismo afirma-se: "A regulamentação nacional pode continuar a aplicar-se desde que não comprometa as vantagens decorrentes do acordo." [5]
Esta frase assemelha-se a uma graçola de mau gosto, uma verdadeira boçalidade, mais valia acrescentar: poderão aplicar-se mas com todas as consequências decorrentes do tratado.
O significado de direitos sociais e laborais para os neoliberais foi evidenciado pelo ministro Aguiar Branco ao dizer que o Estado Social existente se assemelha a um totalitarismo.
Claro que é este "totalitarismo" que impede os procedimentos de controlo, opressão e perseguição das multinacionais sobre os trabalhadores, que os proprietários da Wall-Mart, a família mais rica do planeta, praticam. Procedimentos que incluem sistemas de vigilância, espionagem e repressão sobre atividades políticas ou sindicais, contratando para o efeito gente especializada nessas funções.
A quem interessa afinal este tratado? Em primeiro lugar, à grande indústria alemã e às megaempresas do agroalimentar dos EUA. O tratado vai ao encontro dos desejos e necessidade de expansão do grande capital obtido a custo real zero na especulação e nos bancos centrais ao seu serviço. As oligarquias anseiam por algo como este tratado, que as ponha ao abrigo das incertezas e constrangimentos que a democracia lhes pode trazer. Não se consideram cidadãos como os outros. São o equivalente à nobreza do feudalismo.
Mas então com a teoria da "vantagem comparativa" não ganham todos? Talvez, mas nunca quando são as multinacionais a definirem o que se entende por "vantagem".
Há muito que a vida demonstrou que em termos de comércio livre "a vantagem comparativa entre um país rico e bem equipado e um país pobre e sem equipamento moderno conduz a uma especialização desastrosa, pois o segundo perde toda a possibilidade de se desenvolver ou mesmo manter a sua indústria" . (História do Pensamento Económico, Henri Denis, Livros Horizonte, p. 583)
Mesmo o agro-alimentar francês fica em risco; indústrias como a francesa ou italiana ficarão severamente constrangidas ao desaparecimento ou a tornarem-se subsidiárias de megaempresas dos EUA.
O que acontecerá aos países mais vulneráveis da UE pode ser avaliado pelo ocorrido na Colômbia e no México, respetivamente com os tratados ALENA e NAFTA. Na Colômbia "Houve um aumento desenfreado de importações e uma redução dos investimentos e das produções nacionais. Levando à ruína de camponeses, mineiros, camionistas e pequenos empresários". Vastas extensões de terras foram entregues às grandes empresas norte-americanas da agro-indústria sendo os camponeses expulsos. A revolta, que a comunicação social controlada ignorou, estendeu-se a 25 departamentos do país a incluindo a capital. [7]
Os EUA praticam o dumping através das subvenções à sua produção (o que é proibido direta ou indiretamente aos outros países), conduzindo a enormes aumentos das exportações do Norte em detrimento da produção nacional. [7]
No México existem hoje estufas ultramodernas de tomateiros, uma grande exportação para os EUA. Este "êxito" da "eficiência" neoliberal traduziu-se em 2,3 milhões de camponeses sem trabalho, obrigados a emigrar – 500 a 600 mil por ano até 2008, ano em que foram levantadas barreiras a esta situação. De qualquer forma, em 2011 existiam 11 milhões de emigrantes não legalizados nos EUA [7] em condições de trabalho de semi-escravatura. Acrescente-se que o homem mais rico do mundo é um mexicano…
4 – O GOLPE DE ESTADO NEOLIBERAL
Os agentes do neoliberalismo preparam o seu do golpe de Estado neofascista. O que os prossecutores desta verdadeira golpada pretendem é deitar abaixo o que resta de democracia real, direitos dos trabalhadores, funções sociais do Estado, tudo em nome, obviamente, da "eficiência" das "vantagens comparativas". Se assim não fosse nada estaria a ser feito longe e em segredo para os cidadãos.
O grande mercado transatlântico é "uma NATO económica", dizia a sra. Clinton, e como tal será colocado sob tutela dos EUA. [5]
Pelo tratado, no futuro acabarão por poder ser cultivadas apenas "sementes certificadas", isto é, das multinacionais dos OGM como a Monsanto ou a Sygenta. Todo o agricultor que guarde uma parte da sua colheita para semear nos seus campos poderá então vir a ser multado e em caso de reincidência objeto de processo judicial. A CE antecipa esta situação com a proposta da "Lei das Sementes", que obriga à certificação e registo das sementes, forma expedita de liquidar pequenos agricultores. Uma proposta de rejeição já foi apresentada pelos deputados do PCP no Parlamento Europeu.
Os vândalos estão, pois de volta! Se os povos abrandarem a sua resistência, um diretório de Estados dominantes irá gerir os demais como protetorados, no interesse das suas multinacionais e oligarquias. Como não poderá haver um tratamento mais favorável para as empresas nacionais, um país não mais poderá desenvolver a sua própria política económica, ficando sujeito às pretensões das mais poderosas multinacionais.
Segundo o tratado, as obrigações comprometem todos os níveis de governo, incluindo autarquias e regiões. Nada escapa! É o totalitarismo neoliberal. A realidade será afinal o pacto da troika a tempo inteiro sobre a UE. A representação democrática totalmente subvertida.
Milhões de trabalhadores já empobrecidos por uma crise económica crónica. Vão ser colocados em concorrência atroz. "Trabalhadores expostos ao dumping social, às deslocalizações, à precariedade, à chantagem ou ao desemprego sem que nenhum destes cidadãos possa usar o seu poder eleitoral para influenciar as escolhas politicas, económicas, sociais." [6]
Face aos desastres económicos, sociais e ambientais os mesmos que vão fazer a sua defesa e propaganda hão de mais tarde fazer-se de vitimas e, como no caso do pacto da troika, dizer que foi "mal desenhado", que "o problema é a Constituição", etc.
Os critérios de repressão sobre os trabalhadores aplicados pela Wall Mart podem ser o ideal para os srs. Soares dos Santos e outros oligarcas que fogem com a riqueza criada em Portugal para paraísos fiscais. Porém, não podem mudar a realidade, as suas contradições, a sua dialética.
Não contam com isso. Não entendem que o fascismo, qualquer que seja a máscara, os alibis, os colaboracionistas que encontre, será derrotado, porque não pode, como se provou através da História desde os tempos mais antigos, escapar à luta de classes e travar o progresso.
O proletariado liberta-se suprimindo a concorrência, escreveu Engels. Por isso da direita à social-democracia se vê uma tão grande obstinação na competição económica (em lugar de cooperação) à custa da exploração da força de trabalho. Bem dizia Raul Proença que "o liberalismo económico é uma das formas mais revoltantes do privilégio e do despotismo". Mas o que esperar de uma ideologia que faz de ganância a sua força motriz?
Notas
1- Obras Escojidas de C. Marx e F. Engels, Ed. Progresso, Moscovo, p. 85.
2- Para uma ação idealista no mundo real, em Seara Nova, dezembro de 1971.
3- Le pacte transatlantique, le coup d'État néolibéral, Marc Delepouve, sindicalista e universitário,
www.humanite.fr/tribunes/le-coup-d-etat-neoliberal-546985 ; também em www.legrandsoir.info/le-pacte-transatlantique-le-coup-d-etat-neoliberal.html
4- TTIP-TAFTA – der Ausverkauf unserer Demokratie, Susanne Suchuster, tradutora, pensadora ativista, também em www.legrandsoir.info/...
5- Le mandat UE de négociation du grand marché transatlantique UE-USA, Raoul Marc Jennar
www.legrandsoir.info/... oir.info/le-mandat-ue-de-negociation-du-grand-marche-transatlantique-ue-usa.html
6- Peut-on "inverser la courbe du chômage" en vendant la France à l'OMC?, Samuel Moleaud,
www.legrandsoir.info/...
7- Colombie: Coup de gueule, Marie Monique Robin, www.legrandsoir.info/colombie-coup-de-gueule.html
NOTA - Para além das referências que indicamos, não queremos deixar de mencionar o
texto "Tratado Transatlântico: Um tufão que ameaça os europeus",
inserido no Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, novembro/2013, de Lori
Wallach, diretora da Public Citizen's Global Trade Watch
[*] Engenheiro.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
[*] Engenheiro.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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