Portugal tem de dar
sinais convincentes de que não está disposto a manter-se no euro a qualquer
preço.
Boaventura de Sousa Santos – Carta
Maior
Nas palavras que
vos vou dirigir expresso apenas a minha opinião e não a opinião do Observatório
sobre Crises e Alternativas.
Qualquer processo
de transformação social consequente tem de assentar em três pilares: a análise
objetiva da situação de que se parte; a formulação de alternativas credíveis;
atores e processos políticos capazes de lutar eficazmente por elas. O relatório
cumpre plenamente a primeira tarefa. Dificilmente em Portugal se fará um
diagnóstico mais sólido, convincente e bem informado da situação em que nos
encontramos. Faltam os dois outros pilares. É sobre eles que me debruço.
A austeridade alternativa
A austeridade alternativa
As alternativas.
Tem sido este o pilar mais difícil de construir na atual situação. Não porque
não existam mas porque sobre elas paira uma suspeita que foi meticulosamente
construída ao longo dos anos pelo pensamento neoliberal que avassalou as
universidades, sobretudo os departamentos de economia, e o comentário político
dos grandes meios de comunicação social. Não apenas cá mas em toda a Europa e
América do Norte. Hoje é uma ideologia num duplo sentido.
Primeiro, em áreas,
como a economia, que primam em desprezar as ideias especulativas e entronizar
os factos e as previsões assentes neles, a ideologia está acima do teste dos
factos mesmo quando estes a contradizem claramente. O poder ideológico reside
aqui em suprimir esses factos ou interpretá-los de modo a dizerem o contrário
do que dizem. Não tenho dúvida que por qualquer destas duas vias se tentará
neutralizar os dados constantes deste relatório. Por isso, a austeridade
funciona como ideia mesmo que a prática contradiga tudo o que ela diz. Em
segundo lugar, a ideologia é um conjunto de ideias em que são levados a
acreditar os sectores da população mais prejudicados e punidos por elas. Por
exemplo, a crítica do Estado social passa a ser convincente mesmo para aqueles
sectores da população que mais dependem dele, os trabalhadores e as classes
médias.
A ideia de que os
portugueses têm vivido acima das suas posses passa a ser verosímil mesmo para
os portugueses em risco iminente de pobreza. Passa despercebido que este
argumento preside a toda a gestão do atual governo e muito para além do que se
diz. Dois exemplos. Tivemos um bom sistema de educação pública e isso prova-se
com os resultados dos nossos jovens no ranking do estudo da OCDE sobre excelência
escolar. Pois bem, tais resultados mostram que temos um nível de educação acima
das nossas posses e, por isso, objetivamente, não digo subjetivamente, a
política do atual ministério da educação visa baixar o nosso ranking e é isso
que muito provavelmente vai acontecer. Por sua vez, o Sistema Nacional de Saúde
permitiu-nos atingir níveis de saúde coletiva, de esperança de vida e de
prevenção de doença evitáveis internacionalmente invejáveis. Isto significa que
temos níveis de saúde acima das nossas posses.
Objetivamente, não
digo subjetivamente, a atual política do ministério da saúde visa baixar esses
níveis e é isso que muito provavelmente vai acontecer. A névoa da ideologia não
permite ao cidadão comum fazer estas ligações e, se as fizer, não permite que
as conceba como um crime cometido contra ele e ela e seus filhos.
Reside aqui em boa
parte a dificuldade em formular as alternativas. Dificuldade mas não
impossibilidade. Comecemos pelo conceito de austeridade. Suponhamos que não há
alternativa à austeridade. Significa isto que não há uma conceção alternativa
de austeridade? Nós, portugueses, estamos bem equipados para responder
positivamente a esta questão. Convido-vos a recuar 38 anos e a consultar um dos
documentos mais notáveis do ciclo político que se iniciou em 25 de Abril 1974 e
que este governo está apostado a encerrar a qualquer preço.
Refiro-me ao
documento que ficou conhecido como Documento Melo Antunes, elaborado por um
grupo de reflexão chefiado pelo ministro sem pasta Melo Antunes e que integrou,
além de outros membros do III Governo provisório, chefiado por Vasco Gonçalves,
o ministro da economia Rui Vilar, o ministro das finanças Silva Lopes e a
ministra dos assuntos sociais Maria de Lourdes Pintasilgo.
Tratava-se do
Programa de Política Económica e Social apresentado publicamente a 21 de
fevereiro de 1975. A sua leitura hoje causa arrepios, sobretudo quando se
compara com um recente panfleto que, apesar dele próprio ser desnorteado, se
propõe guiar-nos na reforma do Estado (documento-guia da reforma do Estado). O
arrepio advém do contraste cruel entre a seriedade, o sentido de Estado, a
competência e o patriotismo daquele grupo da classe política num momento
difícil do país e a mediocridade, venalidade, a leviandade e a falência moral dos
que hoje, num momento igualmente difícil, ainda que por razões bem diferentes,
nos desgovernam de maneira totalmente irresponsável.
Pois este documento
dedica uma secção à austeridade. Passo a citar:
“A recuperação e relançamento da economia deve passar necessariamente por opções muito nítidas quanto aos “padrões de consumo” a adoptar, no presente e no futuro próximo. A regra geral a seguir, nesta matéria, terá forçosamente de ser a da “austeridade”. Austeridade significará, antes de mais, uma muito maior sobriedade em consumos de luxo ou supérfluos. As camadas da população mais atingidas por medidas que venham a impor uma muito maior rigidez no acesso aos bens não essenciais ou pouco importantes serão as que até ao presente gozavam de privilégios ou benefícios inacessíveis à maioria da população. Significará, ainda, uma maior contenção na distribuição dos lucros das empresas e um esforço muito mais claro da iniciativa privada para a mobilização dos recursos financeiros disponíveis ou a obter para o investimento produtivo e a criação de empregos. Mas as necessidades de recuperação da economia portuguesa impõem, certamente, um alargamento das restrições a certos tipos de bens de consumo largamente generalizados. Isto exigirá uma grande compreensão e uma vontade muito clara de aderir ao projecto colectivo de reconstrução nacional.
Com o termo
“austeridade” quer-se significar também, e essencialmente, a predominância do
desenvolvimento dos consumos colectivos face aos consumos individuais. E, se a
austeridade é o clima geral em que tem de se viver o esforço de reconstrução,
atingindo, portanto, todas as classes e camadas da população, a orientação de
uma política de consumos que privilegie os equipamentos sociais (transportes
colectivos, escolas, hospitais, habitação social, esquemas de segurança social,
etc.) compensará em grande medida as classes trabalhadoras das carências
sentidas no plano individual.
Finalmente, reconhece-se que as expectativas de grande parte da população portuguesa, em face das mudanças operadas com o “25 de Abril”, se polarizaram em torno da satisfação imediata de carências há longo tempo experimentadas. Perante esta situação, há que afirmar claramente que não pode esperar-se, nem na actual conjuntura nem a curto prazo, um aumento espectacular do nível de vida das populações; que será necessário um longo e árduo trabalho, a todos os níveis, para que se realize a acumulação necessária ao desenvolvimento, e a renúncia, no imediato, a formas de vida e a bens característicos das sociedades capitalistas industrialmente avançadas; e que a sociedade mais livre e mais justa que pretendemos construir, bem como a “via portuguesa para a democracia e o progresso”, passam por uma reflexão crítica e um debate muito amplos sobre a natureza e os fins do “modelo de desenvolvimento” em que todos os portugueses hão-de participar e estarão empenhados em construir”.
Naquela época era
imperioso o relançamento da economia e era necessário fazer sacrifícios, ou seja,
impunha-se uma política de austeridade. Logicamente ela devia ser pedida a quem
a podia sofrer com menos sacrifício, e esses eram em primeiro lugar as classes
sociais mais abastadas, aquelas que consumiam bens de consumo de luxo ou
supérfluo que passariam a contar com pesadas tarifas sobre bens importados.
Naquela altura, mais especificamente em 1974, o valor das importações
representava 43% do PIB e o valor das exportações, cerca de 28%.
Hoje, como se sabe,
temos uma estrutura comercial mais equilibrada: 40% do PIB tanto para as
importações como para as exportações. O segundo grupo a sofrer mais com a
austeridade eram as empresas e o sistema financeiro com a maior tributação dos
lucros e, no caso do sistema financeiro, a mobilização dos recursos financeiros
para o investimento produtivo em vez da especulação. Claro que a austeridade
tocava a todos e as expectativas de uma vida melhor por parte de todos os
portugueses deveriam ser moderadas para poderem ser sustentáveis. E para que o
fossem e se realizassem poupanças imperiosas, os consumos individuais deveriam
dar lugar aos consumos colectivos. Estavam aqui em embrião as políticas sociais
que se viriam a concretizar nas décadas seguintes e com elas o padrão de
sociabilidade democrática que nos trouxe até aqui.
O Documento Melo
Antunes foi redigido com o objetivo de travar o radicalismo de esquerda que
então avançava. As condições políticas de então não permitiram que o documento
tivesse qualquer eficácia no curto prazo. Veio, porém, a tê-la mais tarde e acabou
por conformar os fundamentos do pacto constitucional que então selou a
convivência pacífica entre portugueses nos últimos quarenta anos. Tal como o
Documento Melo Antunes visou travar o radicalismo de esquerda, precisamos hoje
e urgentemente de um documento que fundamente uma ação que trave o novo
radicalismo que nos assola, o radicalismo de direita. Estará já a ser redigido?
Espero bem que sim.
Nesta convicção vou
partir do Documento Melo Antunes e da conceção alternativa da austeridade que
propõe para formular as alternativas. Depois da coligação entre Angela Merkel e
o SPD, não é de esperar nenhuma alternativa significativa a partir da Europa e
por iniciativa da UE. Por razões bem diferentes, a situação atual tem contornos
tão dilemáticos quanto a do tempo do Documento Melo Antunes.
Estamos na UE e no
euro, qualquer saída só é previsível em cenário de catástrofe e, no entanto,
nada nos será oferecido no curto prazo pela UE que permita o relançamento da
economia e distribua por todos os portugueses, e sobretudo pelos mais
necessitados, os benefícios desse relançamento. Aliás, o cenário de catástrofe
não se aplicará apenas a Portugal. Se esta austeridade continuar, o mais certo
é a própria eurozona colapsar. Por outras palavras, na continuidade das
políticas atuais é tão dramático continuar no euro como sair do euro. Portanto,
as alternativas têm de ser encontradas a nível nacional, explorando todas
flexibilidades que os tratados permitem e que o capital financeiro tem de
reserva para as situações em que não controla todos os parâmetros do seu
domínio. Se bem executadas, serão as alternativas a nível nacional que amanhã
poderão forçar a UE a fazer o que nunca fará de motu próprio. Portugal tem de
dar sinais convincentes de que não está disposto a manter-se no euro a qualquer
preço. Por exemplo, se, como pretende o tratado orçamental, a dívida tiver de
ser reduzida ate 60% do PIB nos próximos vinte anos, isso significa que, se não
houver corte ou redução da dívida, o nosso Sistema Nacional de Saúde e da
educação pública terão de ser totalmente desmantelados, algo que os portugueses
consideram inaceitável e devem proclamá-lo alto e bom som.
As alternativas são
as seguintes. Como estamos num momento difícil e a austeridade neoliberal
demonstradamente não resolve nenhum problema e cria muitos, adopta-se a
austeridade alternativa, segundo os princípios do Documento Melo Antunes
adaptados ao tempo atual. Não se trata da "austeridade inteligente"
de que se tem falado por aí porque isso é mais do mesmo. É algo totalmente
distinto. Ou seja, assumamos que estamos num período em que efectivamente é
preciso apertar o cinto; assim sendo, apertemos tanto mais quanto objetivamente
for menos incómodo o aperto. Adaptado ao nosso tempo, isto significa apertar o
cinto do capital financeiro e dos titulares de riqueza e de rendimentos mais
elevados do nosso país. Significa apertar o cinto sobretudo daqueles cujo
rendimento e poupança serve, não para investir produtivamente, mas para aplicar
em riqueza financeira. Assim:
1 - É lançada uma
sobretaxa temporária sobre a riqueza financeira dos super-ricos e sobre os
lucros do sector bancário destinada a reduzir o esforço do serviço da dívida,
libertando fundos para investimento público e privado. Um grupo de economistas
alemães calculou recentemente que uma sobretaxa, cobrada uma única vez, de 10%
sobre a riqueza pessoal líquida superior a 250.000 por contribuinte aumentaria
o rendimento do PIB em 9%. Esta taxa incidiria sobre os 8% mais ricos dos
contribuintes alemães, um grupo que detém cerca de dois terços da riqueza da
Alemanha. Se o patamar fosse 500.000 euros (2.3% dos contribuintes) ou
1.000.000 de euros (0.6% dos contribuintes), o rendimento do PIB subiria
respectivamente em 6.8% e 5.6%. Sendo única, esta sobretaxa, justificada como
emergência causada pela dívida, não alteraria de forma dramática o
comportamento dos investidores nem causaria fuga de capitais, desde que o governo
tornasse claro ser uma medida irrepetível.
Os dados não estão
calculados para Portugal, mas não será difícil calculá-los. Parte dessa riqueza
financeira está offshore, o grande pote de ouro dos super-ricos. Segundo Blyth,
nos últimos trinta anos, grande parte dos rendimentos mais altos foram para os
offshores e toda uma indústria nasceu para garantir o esconderijo. O dinheiro
foi escondido num pequeno grupo de paraísos fiscais, sobretudo as Ilhas Caimão
e a Suíça. Se Estados grandes e fortes quiserem encontrar esse dinheiro, sabem
exactamente onde encontrá-lo e alguns já o estão a fazer. Portugal não é um
Estado nem grande nem forte no sentido de Blyth, mas pode procurar a cooperação
dos países grandes e fortes.
2 - Com o mesmo
objectivo de distribuir equitativamente os sacrifícios, é adoptado o sistema de
tributação fortemente progressiva. Nos EUA, nos anos 1940 e 1950, a taxa
marginal de tributação do rendimento rondou os 90% para os rendimentos mais
altos. Não precisamos de chegar a tanto. Basta que volte a ser claro que viver
em democracia obriga a partilha tanto dos benefícios como dos sacrifícios. Uma
recente análise do Congressional Research Service dos EUA revela que a redução
progressiva dessa taxa nas décadas seguintes teve apenas o efeito de concentrar
a riqueza do país e em nada contribuiu para o crescimento económico, antes pelo
contrário. Em Portugal, esta medida pode revelar-se menos eficaz devido à fuga
ao fisco por parte dos titulares de rendimentos mais altos, uma das grandes
causas da injustiça fiscal do nosso país. Economistas do MIT e da Universidade
de Berkeley calcularam que aumentar a taxa média do imposto sobre o percentil
mais alto do rendimento de 22.4%, valor de 2007, para 43.5%, aumentaria o
rendimento em 3% do PIB, o suficiente para eliminar o deficit estrutural dos
EUA.
3 – A Caixa Geral
de Depósitos não deve ser privatizada e deve transformar-se no que há muito
devia ser, não um banco comercial como qualquer outro, mas um banco de
investimento para pequenas e médias empresas. Convergente com este objetivo,
tem-se vindo a falar da criação de um Banco de Fomento com fundos do QREN.
4 - Suspender as
privatizações e todas as políticas de transferência do sector público para o
sector privado em duas áreas-chave: a educação e a saúde.
5 - Reverter a
legislação laboral que acabou com a contratação coletiva. O sistema
norte-americano que se está a implantar não tem outro objetivo senão
enfraquecer os sindicatos, um objetivo que consta de todos os documentos da
ALEC (American Legislative Exchange Council), uma iniciativa do grande capital
norte-americano para liquidar de vez todos os obstáculos à acumulação
capitalista e, entre todos eles, o mais incómodo, os sindicatos.
6 - Recusar a
introdução do sistema do plafonamento no sistema de pensões, o que, para além
de muito arriscado financeiramente, não é necessário se o sistema de
contribuições for alterado e se todo o sistema de segurança social deixar de
estar sob pressão de altas taxas de desemprego.
7 – Finalmente, e
ainda no domínio da "austeridade" aplicada ao sector financeiro,
propõe-se que a banca nacional, que tão beneficiada tem sido tanto em tempos de
bonança como sobretudo em tempos de crise, seja obrigada a financiar a baixo
custo a dívida pública, permitindo assim que a poupança interna seja posta mais
diretamente ao serviço do relançamento da economia e do país. Para evitar a
fuga de capitais, admite-se que temporariamente se introduza algum mecanismo de
controle de capitais. Esta medida deve ser proposta, consoante a conjuntura, em
alternativa ou em conjunção, com a solicitação do corte ou redução da dívida.
Estas duas medidas
são as que mais tensão criam com a nossa permanência no euro e devem ser
assumidas como tal, ou seja, como condições para a nossa permanência no euro
sem suicidar o país. Portugal só pode afirmar com consistência as suas
condições para continuar no euro se tornar claro quais as medidas que tomará
para garantir a continuidade do país com dignidade, o bem supremo, se tais
condições não existirem.
Reflexão: as Instituições
e a Rua
Passo agora ao
terceiro pilar da transformação social, os actores e os processos políticos que
poderão levar acabo as alternativas aqui propostas. São duas as condições: é
necessária uma liderança política forte e convicta para avançar com as
alternativas e aguentar a turbulência que a curto prazo isso causará. Para que
haja uma tal liderança, é necessário expulsar a troika. Esperar até julho é uma
miragem porque já se sabe que com esta política a imposição de condições
continuará de uma forma ou de outra com o tratado orçamental. Para expulsar a
troika não basta derrubar o atual governo mas é necessário fazê-lo pela simples
razão de que com este governo a troika ficará sempre, mesmo depois de ir embora
ainda que em versão saloia. Na actual situação política, a expulsão da troika
exige uma mobilização social de rua que leve ao derrube deste governo. Aqui e
não na ausência de alternativas reside o grande bloqueamento da sociedade
portuguesa.
Pode-nos ser fatal
e, a este respeito, pela primeira vez na vida, não estou otimista.
Durante a última
semana fui várias vezes interpelado por jornalistas sobre as razões porque a
valiosa reflexão que várias instituições, “personalidades” e iniciativas têm
vindo a fazer sobre a situação do país e as alternativas realistas ao abismo
suicidário em que estamos não se converte em indignação dos cidadãos e motiva
as classes populares a vir para a rua gritar Basta! e forçar a queda do
governo. Insistem em saber porque é que as manifestações das forças de segurança,
que muitos julgaram significar uma radicalização da contestação social, não
tiveram afinal seguimento. Os protestos sociais recentes noutros países
aconselham a algum cuidado na resposta a estas perguntas.
Os protestos
mostram que por vezes surgem em contextos que os tornavam à partida pouco
previsíveis, seja devido à repressão política, caso da Tunísia, seja devido à
relativa bonança social do período antecedente, caso do Brasil. E também
mostram que, quando emergem, as suas agendas extravasam rapidamente das
sequências ordenadas do pensar refletido dos cientistas sociais e comentadores
políticos. Na Tunísia, a auto-imolação de um jovem que apenas queria que o
comércio de rua fosse regulado transformou-se rapidamente, ante a incapacidade
das instituições dar resposta, na contestação radical do regime político e pôs
fim à ditadura. No Brasil, a subida de 20 centavos dos transportes públicos em
São Paulo foi a centelha que incendiou o país e alastrou dos transportes à
educação e à saúde até chegar ao próprio sistema político e reforma do Estado.
As respostas do governo federal e estadual foram, em geral, tímidas e por isso
aqueles que hoje se regozijam com a acalmia podem vir a ter uma surpresa
desagradável quando se aproximar a copa do mundo.
Não é fácil
responder às perguntas dos jornalistas que certamente dão voz ao que vai na
alma de muitos portugueses. Em todo o caso, atrevo-me a dar algumas pistas.
Antes de tudo, deixemos de lado o mito dos brandos costumes. Não são causa de
nada; são, quando muito, a consequência de muita coisa, por exemplo, da pouca
tradição democrática; de uma promiscuidade endémica entre uma elite económica
fechada (feita de poucas famílias) e o poder político autoritário, hoje selada
com o poder dos média; da falta de uma revolução burguesa que instalasse em
toda a sociedade o valor da liberdade para que, sobre ele, as classes
trabalhadoras pudessem construir as suas lutas pelo valor da igualdade; e ainda
do conservadorismo da igreja católica que trocou a luta dos pobres pela luta da
assistência aos pobres, convertendo-se, assim, na instituição mais
subsídio-dependente do país, cúmplice com o pior para poder sobreviver melhor.
Para que da
reflexão se passe à acção colectiva é necessário que haja forças políticas e
organizações da sociedade civil capazes de amplificar o que na reflexão há de
indignação e de alternativa, e de a enquadrar em acções políticas que
pressionem as instituições. Se estas não derem respostas adequadas, devem ser
capazes de recorrer ao espaço público da rua, mas só o podem fazer se souberem
mobilizar as maiorias que não são ativas politicamente. Entre nós, porque os
cidadãos independentes e os mecanismos de democracia participativa foram
proscritos do sistema político, as únicas forças políticas são os partidos.
Ora, os partidos da oposição não são sequer capazes de pressionar fortemente as
instituições, nomeadamente, a presidência da república. Estão unidos à sua
desunião num pacto de suicídio. Muito menos são capazes de enquadrar o salto
das instituições para a rua. O PCP parece nunca ter recuperado do terror de ser
ilegalizado no 25 de Novembro de 1975, como queriam as forças reacionárias e
que Melo Antunes e companheiros souberam neutralizar. O BE terá já perdido para
a emigração as suas bases mais esclarecidas. O PS é atualmente dominado pelos
“bons socialistas” de Manuel Alegre e, por isso, a sigla quer dizer partido da
situação, quer esteja no poder ou na oposição.
Nas organizações da
sociedade civil dominam os sindicatos. Estes têm dificuldade em enquadrar
muitos dos indignados, sejam eles precários, desempregados, bolseiros,
pensionistas. A CGTP sofre da obsessão de ser bem comportada, o que a obriga a
fazer tudo para não parecer o que talvez não seja, comunista. A UGT nasceu para
travar e não para acelerar o sindicalismo. Hoje, ela e a CGTP procuram, mais
que os partidos de esquerda, caminhos de convergência, mas estes são
necessariamente traçados por quem vai mais devagar.
E as associações de
estudantes? O meu colega José Manuel Mendes fez um estudo sobre os protestos
entre 1992 e 2002 e verificou que 56% dos protestos eram protagonizados por
estudantes, sobretudo universitários. Por que estão agora ausentes dos
protestos, atascados em praxes retrógradas e bebedeiras de quinta a sábado,
deixando para os reitores a radicalidade dos protestos? Porque, entretanto, a
praga-mor da democracia portuguesa, as juventudes partidárias (as jotas),
tomaram conta do movimento estudantil e puseram-no ao serviço das estratégias
partidárias.
Sem possibilidade
de enquadramento que permita ver a floresta para além das árvores, o geral para
além do particular, as alternativas no lugar do que está mal, os objetivos
concretos em vez do niilismo e o extremismo fascizantes, os protestos sociais
capazes de forçar democraticamente uma mudança de curso tenderão a centrar-se
nos agravos mais próximos e transparentes, os que se impõem por si, sem
intermediação, sejam eles o fecho do centro de saúde local ou a transferência
direta e descarada de rendimentos dos mais pobres para os mais ricos, como
aconteceu com a tentativa de alteração da TSU.
Dito isto, nada
impede que amanhã a rua expluda. Mas ninguém de boa-fé pode dizer que o previu
com razões que eram convincentes ao tempo em que as formulou. No entanto, se
tal acontecer, o objetivo do relatório do Observatório será o de contribuir
para que se neutralize o perigo do niilismo extremista e fascizante.
Se, pelo contrario,
as nossas ruas continuarem a dedicar-se ao trânsito e ao comércio, a sua
vocação originária, o objetivo do relatório é contribuir para um novo ciclo
político menos destrutivo e agressivo onde a democracia volte a fazer sentido.
(*) Palestra de
encerramento da apresentação pública do primeiro relatório do Observatório
sobre Crises e Alternativas do Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra, intitulado "Anatomia da Crise: Identificar os Problemas para
Construir as Alternativas", que teve lugar no dia 11 de Dezembro de 2013,
em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian.
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