sábado, 28 de dezembro de 2013

Portugal: ALTERNATIVAS EM BUSCA DE AUTOR

 


Portugal tem de dar sinais convincentes de que não está disposto a manter-se no euro a qualquer preço.
 
 
Nas palavras que vos vou dirigir expresso apenas a minha opinião e não a opinião do Observatório sobre Crises e Alternativas.
 
Qualquer processo de transformação social consequente tem de assentar em três pilares: a análise objetiva da situação de que se parte; a formulação de alternativas credíveis; atores e processos políticos capazes de lutar eficazmente por elas. O relatório cumpre plenamente a primeira tarefa. Dificilmente em Portugal se fará um diagnóstico mais sólido, convincente e bem informado da situação em que nos encontramos. Faltam os dois outros pilares. É sobre eles que me debruço.
A austeridade alternativa
 
As alternativas. Tem sido este o pilar mais difícil de construir na atual situação. Não porque não existam mas porque sobre elas paira uma suspeita que foi meticulosamente construída ao longo dos anos pelo pensamento neoliberal que avassalou as universidades, sobretudo os departamentos de economia, e o comentário político dos grandes meios de comunicação social. Não apenas cá mas em toda a Europa e América do Norte. Hoje é uma ideologia num duplo sentido.
 
Primeiro, em áreas, como a economia, que primam em desprezar as ideias especulativas e entronizar os factos e as previsões assentes neles, a ideologia está acima do teste dos factos mesmo quando estes a contradizem claramente. O poder ideológico reside aqui em suprimir esses factos ou interpretá-los de modo a dizerem o contrário do que dizem. Não tenho dúvida que por qualquer destas duas vias se tentará neutralizar os dados constantes deste relatório. Por isso, a austeridade funciona como ideia mesmo que a prática contradiga tudo o que ela diz. Em segundo lugar, a ideologia é um conjunto de ideias em que são levados a acreditar os sectores da população mais prejudicados e punidos por elas. Por exemplo, a crítica do Estado social passa a ser convincente mesmo para aqueles sectores da população que mais dependem dele, os trabalhadores e as classes médias.
 
A ideia de que os portugueses têm vivido acima das suas posses passa a ser verosímil mesmo para os portugueses em risco iminente de pobreza. Passa despercebido que este argumento preside a toda a gestão do atual governo e muito para além do que se diz. Dois exemplos. Tivemos um bom sistema de educação pública e isso prova-se com os resultados dos nossos jovens no ranking do estudo da OCDE sobre excelência escolar. Pois bem, tais resultados mostram que temos um nível de educação acima das nossas posses e, por isso, objetivamente, não digo subjetivamente, a política do atual ministério da educação visa baixar o nosso ranking e é isso que muito provavelmente vai acontecer. Por sua vez, o Sistema Nacional de Saúde permitiu-nos atingir níveis de saúde coletiva, de esperança de vida e de prevenção de doença evitáveis internacionalmente invejáveis. Isto significa que temos níveis de saúde acima das nossas posses.
 
Objetivamente, não digo subjetivamente, a atual política do ministério da saúde visa baixar esses níveis e é isso que muito provavelmente vai acontecer. A névoa da ideologia não permite ao cidadão comum fazer estas ligações e, se as fizer, não permite que as conceba como um crime cometido contra ele e ela e seus filhos.
 
Reside aqui em boa parte a dificuldade em formular as alternativas. Dificuldade mas não impossibilidade. Comecemos pelo conceito de austeridade. Suponhamos que não há alternativa à austeridade. Significa isto que não há uma conceção alternativa de austeridade? Nós, portugueses, estamos bem equipados para responder positivamente a esta questão. Convido-vos a recuar 38 anos e a consultar um dos documentos mais notáveis do ciclo político que se iniciou em 25 de Abril 1974 e que este governo está apostado a encerrar a qualquer preço.
 
Refiro-me ao documento que ficou conhecido como Documento Melo Antunes, elaborado por um grupo de reflexão chefiado pelo ministro sem pasta Melo Antunes e que integrou, além de outros membros do III Governo provisório, chefiado por Vasco Gonçalves, o ministro da economia Rui Vilar, o ministro das finanças Silva Lopes e a ministra dos assuntos sociais Maria de Lourdes Pintasilgo.
 
Tratava-se do Programa de Política Económica e Social apresentado publicamente a 21 de fevereiro de 1975. A sua leitura hoje causa arrepios, sobretudo quando se compara com um recente panfleto que, apesar dele próprio ser desnorteado, se propõe guiar-nos na reforma do Estado (documento-guia da reforma do Estado). O arrepio advém do contraste cruel entre a seriedade, o sentido de Estado, a competência e o patriotismo daquele grupo da classe política num momento difícil do país e a mediocridade, venalidade, a leviandade e a falência moral dos que hoje, num momento igualmente difícil, ainda que por razões bem diferentes, nos desgovernam de maneira totalmente irresponsável.
 
Pois este documento dedica uma secção à austeridade. Passo a citar:

“A recuperação e relançamento da economia deve passar necessariamente por opções muito nítidas quanto aos “padrões de consumo” a adoptar, no presente e no futuro próximo. A regra geral a seguir, nesta matéria, terá forçosamente de ser a da “austeridade”. Austeridade significará, antes de mais, uma muito maior sobriedade em consumos de luxo ou supérfluos. As camadas da população mais atingidas por medidas que venham a impor uma muito maior rigidez no acesso aos bens não essenciais ou pouco importantes serão as que até ao presente gozavam de privilégios ou benefícios inacessíveis à maioria da população. Significará, ainda, uma maior contenção na distribuição dos lucros das empresas e um esforço muito mais claro da iniciativa privada para a mobilização dos recursos financeiros disponíveis ou a obter para o investimento produtivo e a criação de empregos. Mas as necessidades de recuperação da economia portuguesa impõem, certamente, um alargamento das restrições a certos tipos de bens de consumo largamente generalizados. Isto exigirá uma grande compreensão e uma vontade muito clara de aderir ao projecto colectivo de reconstrução nacional.

Com o termo “austeridade” quer-se significar também, e essencialmente, a predominância do desenvolvimento dos consumos colectivos face aos consumos individuais. E, se a austeridade é o clima geral em que tem de se viver o esforço de reconstrução, atingindo, portanto, todas as classes e camadas da população, a orientação de uma política de consumos que privilegie os equipamentos sociais (transportes colectivos, escolas, hospitais, habitação social, esquemas de segurança social, etc.) compensará em grande medida as classes trabalhadoras das carências sentidas no plano individual.

Finalmente, reconhece-se que as expectativas de grande parte da população portuguesa, em face das mudanças operadas com o “25 de Abril”, se polarizaram em torno da satisfação imediata de carências há longo tempo experimentadas. Perante esta situação, há que afirmar claramente que não pode esperar-se, nem na actual conjuntura nem a curto prazo, um aumento espectacular do nível de vida das populações; que será necessário um longo e árduo trabalho, a todos os níveis, para que se realize a acumulação necessária ao desenvolvimento, e a renúncia, no imediato, a formas de vida e a bens característicos das sociedades capitalistas industrialmente avançadas; e que a sociedade mais livre e mais justa que pretendemos construir, bem como a “via portuguesa para a democracia e o progresso”, passam por uma reflexão crítica e um debate muito amplos sobre a natureza e os fins do “modelo de desenvolvimento” em que todos os portugueses hão-de participar e estarão empenhados em construir”.

Naquela época era imperioso o relançamento da economia e era necessário fazer sacrifícios, ou seja, impunha-se uma política de austeridade. Logicamente ela devia ser pedida a quem a podia sofrer com menos sacrifício, e esses eram em primeiro lugar as classes sociais mais abastadas, aquelas que consumiam bens de consumo de luxo ou supérfluo que passariam a contar com pesadas tarifas sobre bens importados. Naquela altura, mais especificamente em 1974, o valor das importações representava 43% do PIB e o valor das exportações, cerca de 28%.
 
Hoje, como se sabe, temos uma estrutura comercial mais equilibrada: 40% do PIB tanto para as importações como para as exportações. O segundo grupo a sofrer mais com a austeridade eram as empresas e o sistema financeiro com a maior tributação dos lucros e, no caso do sistema financeiro, a mobilização dos recursos financeiros para o investimento produtivo em vez da especulação. Claro que a austeridade tocava a todos e as expectativas de uma vida melhor por parte de todos os portugueses deveriam ser moderadas para poderem ser sustentáveis. E para que o fossem e se realizassem poupanças imperiosas, os consumos individuais deveriam dar lugar aos consumos colectivos. Estavam aqui em embrião as políticas sociais que se viriam a concretizar nas décadas seguintes e com elas o padrão de sociabilidade democrática que nos trouxe até aqui.
 
O Documento Melo Antunes foi redigido com o objetivo de travar o radicalismo de esquerda que então avançava. As condições políticas de então não permitiram que o documento tivesse qualquer eficácia no curto prazo. Veio, porém, a tê-la mais tarde e acabou por conformar os fundamentos do pacto constitucional que então selou a convivência pacífica entre portugueses nos últimos quarenta anos. Tal como o Documento Melo Antunes visou travar o radicalismo de esquerda, precisamos hoje e urgentemente de um documento que fundamente uma ação que trave o novo radicalismo que nos assola, o radicalismo de direita. Estará já a ser redigido? Espero bem que sim.
 
Nesta convicção vou partir do Documento Melo Antunes e da conceção alternativa da austeridade que propõe para formular as alternativas. Depois da coligação entre Angela Merkel e o SPD, não é de esperar nenhuma alternativa significativa a partir da Europa e por iniciativa da UE. Por razões bem diferentes, a situação atual tem contornos tão dilemáticos quanto a do tempo do Documento Melo Antunes.
 
Estamos na UE e no euro, qualquer saída só é previsível em cenário de catástrofe e, no entanto, nada nos será oferecido no curto prazo pela UE que permita o relançamento da economia e distribua por todos os portugueses, e sobretudo pelos mais necessitados, os benefícios desse relançamento. Aliás, o cenário de catástrofe não se aplicará apenas a Portugal. Se esta austeridade continuar, o mais certo é a própria eurozona colapsar. Por outras palavras, na continuidade das políticas atuais é tão dramático continuar no euro como sair do euro. Portanto, as alternativas têm de ser encontradas a nível nacional, explorando todas flexibilidades que os tratados permitem e que o capital financeiro tem de reserva para as situações em que não controla todos os parâmetros do seu domínio. Se bem executadas, serão as alternativas a nível nacional que amanhã poderão forçar a UE a fazer o que nunca fará de motu próprio. Portugal tem de dar sinais convincentes de que não está disposto a manter-se no euro a qualquer preço. Por exemplo, se, como pretende o tratado orçamental, a dívida tiver de ser reduzida ate 60% do PIB nos próximos vinte anos, isso significa que, se não houver corte ou redução da dívida, o nosso Sistema Nacional de Saúde e da educação pública terão de ser totalmente desmantelados, algo que os portugueses consideram inaceitável e devem proclamá-lo alto e bom som.
 
As alternativas são as seguintes. Como estamos num momento difícil e a austeridade neoliberal demonstradamente não resolve nenhum problema e cria muitos, adopta-se a austeridade alternativa, segundo os princípios do Documento Melo Antunes adaptados ao tempo atual. Não se trata da "austeridade inteligente" de que se tem falado por aí porque isso é mais do mesmo. É algo totalmente distinto. Ou seja, assumamos que estamos num período em que efectivamente é preciso apertar o cinto; assim sendo, apertemos tanto mais quanto objetivamente for menos incómodo o aperto. Adaptado ao nosso tempo, isto significa apertar o cinto do capital financeiro e dos titulares de riqueza e de rendimentos mais elevados do nosso país. Significa apertar o cinto sobretudo daqueles cujo rendimento e poupança serve, não para investir produtivamente, mas para aplicar em riqueza financeira. Assim:
 
1 - É lançada uma sobretaxa temporária sobre a riqueza financeira dos super-ricos e sobre os lucros do sector bancário destinada a reduzir o esforço do serviço da dívida, libertando fundos para investimento público e privado. Um grupo de economistas alemães calculou recentemente que uma sobretaxa, cobrada uma única vez, de 10% sobre a riqueza pessoal líquida superior a 250.000 por contribuinte aumentaria o rendimento do PIB em 9%. Esta taxa incidiria sobre os 8% mais ricos dos contribuintes alemães, um grupo que detém cerca de dois terços da riqueza da Alemanha. Se o patamar fosse 500.000 euros (2.3% dos contribuintes) ou 1.000.000 de euros (0.6% dos contribuintes), o rendimento do PIB subiria respectivamente em 6.8% e 5.6%. Sendo única, esta sobretaxa, justificada como emergência causada pela dívida, não alteraria de forma dramática o comportamento dos investidores nem causaria fuga de capitais, desde que o governo tornasse claro ser uma medida irrepetível.
 
Os dados não estão calculados para Portugal, mas não será difícil calculá-los. Parte dessa riqueza financeira está offshore, o grande pote de ouro dos super-ricos. Segundo Blyth, nos últimos trinta anos, grande parte dos rendimentos mais altos foram para os offshores e toda uma indústria nasceu para garantir o esconderijo. O dinheiro foi escondido num pequeno grupo de paraísos fiscais, sobretudo as Ilhas Caimão e a Suíça. Se Estados grandes e fortes quiserem encontrar esse dinheiro, sabem exactamente onde encontrá-lo e alguns já o estão a fazer. Portugal não é um Estado nem grande nem forte no sentido de Blyth, mas pode procurar a cooperação dos países grandes e fortes.
 
2 - Com o mesmo objectivo de distribuir equitativamente os sacrifícios, é adoptado o sistema de tributação fortemente progressiva. Nos EUA, nos anos 1940 e 1950, a taxa marginal de tributação do rendimento rondou os 90% para os rendimentos mais altos. Não precisamos de chegar a tanto. Basta que volte a ser claro que viver em democracia obriga a partilha tanto dos benefícios como dos sacrifícios. Uma recente análise do Congressional Research Service dos EUA revela que a redução progressiva dessa taxa nas décadas seguintes teve apenas o efeito de concentrar a riqueza do país e em nada contribuiu para o crescimento económico, antes pelo contrário. Em Portugal, esta medida pode revelar-se menos eficaz devido à fuga ao fisco por parte dos titulares de rendimentos mais altos, uma das grandes causas da injustiça fiscal do nosso país. Economistas do MIT e da Universidade de Berkeley calcularam que aumentar a taxa média do imposto sobre o percentil mais alto do rendimento de 22.4%, valor de 2007, para 43.5%, aumentaria o rendimento em 3% do PIB, o suficiente para eliminar o deficit estrutural dos EUA.
 
3 – A Caixa Geral de Depósitos não deve ser privatizada e deve transformar-se no que há muito devia ser, não um banco comercial como qualquer outro, mas um banco de investimento para pequenas e médias empresas. Convergente com este objetivo, tem-se vindo a falar da criação de um Banco de Fomento com fundos do QREN.
 
4 - Suspender as privatizações e todas as políticas de transferência do sector público para o sector privado em duas áreas-chave: a educação e a saúde.
 
5 - Reverter a legislação laboral que acabou com a contratação coletiva. O sistema norte-americano que se está a implantar não tem outro objetivo senão enfraquecer os sindicatos, um objetivo que consta de todos os documentos da ALEC (American Legislative Exchange Council), uma iniciativa do grande capital norte-americano para liquidar de vez todos os obstáculos à acumulação capitalista e, entre todos eles, o mais incómodo, os sindicatos.
 
6 - Recusar a introdução do sistema do plafonamento no sistema de pensões, o que, para além de muito arriscado financeiramente, não é necessário se o sistema de contribuições for alterado e se todo o sistema de segurança social deixar de estar sob pressão de altas taxas de desemprego.
 
7 – Finalmente, e ainda no domínio da "austeridade" aplicada ao sector financeiro, propõe-se que a banca nacional, que tão beneficiada tem sido tanto em tempos de bonança como sobretudo em tempos de crise, seja obrigada a financiar a baixo custo a dívida pública, permitindo assim que a poupança interna seja posta mais diretamente ao serviço do relançamento da economia e do país. Para evitar a fuga de capitais, admite-se que temporariamente se introduza algum mecanismo de controle de capitais. Esta medida deve ser proposta, consoante a conjuntura, em alternativa ou em conjunção, com a solicitação do corte ou redução da dívida.
 
Estas duas medidas são as que mais tensão criam com a nossa permanência no euro e devem ser assumidas como tal, ou seja, como condições para a nossa permanência no euro sem suicidar o país. Portugal só pode afirmar com consistência as suas condições para continuar no euro se tornar claro quais as medidas que tomará para garantir a continuidade do país com dignidade, o bem supremo, se tais condições não existirem.
 
Reflexão: as Instituições e a Rua
 
Passo agora ao terceiro pilar da transformação social, os actores e os processos políticos que poderão levar acabo as alternativas aqui propostas. São duas as condições: é necessária uma liderança política forte e convicta para avançar com as alternativas e aguentar a turbulência que a curto prazo isso causará. Para que haja uma tal liderança, é necessário expulsar a troika. Esperar até julho é uma miragem porque já se sabe que com esta política a imposição de condições continuará de uma forma ou de outra com o tratado orçamental. Para expulsar a troika não basta derrubar o atual governo mas é necessário fazê-lo pela simples razão de que com este governo a troika ficará sempre, mesmo depois de ir embora ainda que em versão saloia. Na actual situação política, a expulsão da troika exige uma mobilização social de rua que leve ao derrube deste governo. Aqui e não na ausência de alternativas reside o grande bloqueamento da sociedade portuguesa.
 
Pode-nos ser fatal e, a este respeito, pela primeira vez na vida, não estou otimista.
 
Durante a última semana fui várias vezes interpelado por jornalistas sobre as razões porque a valiosa reflexão que várias instituições, “personalidades” e iniciativas têm vindo a fazer sobre a situação do país e as alternativas realistas ao abismo suicidário em que estamos não se converte em indignação dos cidadãos e motiva as classes populares a vir para a rua gritar Basta! e forçar a queda do governo. Insistem em saber porque é que as manifestações das forças de segurança, que muitos julgaram significar uma radicalização da contestação social, não tiveram afinal seguimento. Os protestos sociais recentes noutros países aconselham a algum cuidado na resposta a estas perguntas.
 
Os protestos mostram que por vezes surgem em contextos que os tornavam à partida pouco previsíveis, seja devido à repressão política, caso da Tunísia, seja devido à relativa bonança social do período antecedente, caso do Brasil. E também mostram que, quando emergem, as suas agendas extravasam rapidamente das sequências ordenadas do pensar refletido dos cientistas sociais e comentadores políticos. Na Tunísia, a auto-imolação de um jovem que apenas queria que o comércio de rua fosse regulado transformou-se rapidamente, ante a incapacidade das instituições dar resposta, na contestação radical do regime político e pôs fim à ditadura. No Brasil, a subida de 20 centavos dos transportes públicos em São Paulo foi a centelha que incendiou o país e alastrou dos transportes à educação e à saúde até chegar ao próprio sistema político e reforma do Estado. As respostas do governo federal e estadual foram, em geral, tímidas e por isso aqueles que hoje se regozijam com a acalmia podem vir a ter uma surpresa desagradável quando se aproximar a copa do mundo.
 
Não é fácil responder às perguntas dos jornalistas que certamente dão voz ao que vai na alma de muitos portugueses. Em todo o caso, atrevo-me a dar algumas pistas. Antes de tudo, deixemos de lado o mito dos brandos costumes. Não são causa de nada; são, quando muito, a consequência de muita coisa, por exemplo, da pouca tradição democrática; de uma promiscuidade endémica entre uma elite económica fechada (feita de poucas famílias) e o poder político autoritário, hoje selada com o poder dos média; da falta de uma revolução burguesa que instalasse em toda a sociedade o valor da liberdade para que, sobre ele, as classes trabalhadoras pudessem construir as suas lutas pelo valor da igualdade; e ainda do conservadorismo da igreja católica que trocou a luta dos pobres pela luta da assistência aos pobres, convertendo-se, assim, na instituição mais subsídio-dependente do país, cúmplice com o pior para poder sobreviver melhor.
 
Para que da reflexão se passe à acção colectiva é necessário que haja forças políticas e organizações da sociedade civil capazes de amplificar o que na reflexão há de indignação e de alternativa, e de a enquadrar em acções políticas que pressionem as instituições. Se estas não derem respostas adequadas, devem ser capazes de recorrer ao espaço público da rua, mas só o podem fazer se souberem mobilizar as maiorias que não são ativas politicamente. Entre nós, porque os cidadãos independentes e os mecanismos de democracia participativa foram proscritos do sistema político, as únicas forças políticas são os partidos. Ora, os partidos da oposição não são sequer capazes de pressionar fortemente as instituições, nomeadamente, a presidência da república. Estão unidos à sua desunião num pacto de suicídio. Muito menos são capazes de enquadrar o salto das instituições para a rua. O PCP parece nunca ter recuperado do terror de ser ilegalizado no 25 de Novembro de 1975, como queriam as forças reacionárias e que Melo Antunes e companheiros souberam neutralizar. O BE terá já perdido para a emigração as suas bases mais esclarecidas. O PS é atualmente dominado pelos “bons socialistas” de Manuel Alegre e, por isso, a sigla quer dizer partido da situação, quer esteja no poder ou na oposição.
 
Nas organizações da sociedade civil dominam os sindicatos. Estes têm dificuldade em enquadrar muitos dos indignados, sejam eles precários, desempregados, bolseiros, pensionistas. A CGTP sofre da obsessão de ser bem comportada, o que a obriga a fazer tudo para não parecer o que talvez não seja, comunista. A UGT nasceu para travar e não para acelerar o sindicalismo. Hoje, ela e a CGTP procuram, mais que os partidos de esquerda, caminhos de convergência, mas estes são necessariamente traçados por quem vai mais devagar.
 
E as associações de estudantes? O meu colega José Manuel Mendes fez um estudo sobre os protestos entre 1992 e 2002 e verificou que 56% dos protestos eram protagonizados por estudantes, sobretudo universitários. Por que estão agora ausentes dos protestos, atascados em praxes retrógradas e bebedeiras de quinta a sábado, deixando para os reitores a radicalidade dos protestos? Porque, entretanto, a praga-mor da democracia portuguesa, as juventudes partidárias (as jotas), tomaram conta do movimento estudantil e puseram-no ao serviço das estratégias partidárias.
 
Sem possibilidade de enquadramento que permita ver a floresta para além das árvores, o geral para além do particular, as alternativas no lugar do que está mal, os objetivos concretos em vez do niilismo e o extremismo fascizantes, os protestos sociais capazes de forçar democraticamente uma mudança de curso tenderão a centrar-se nos agravos mais próximos e transparentes, os que se impõem por si, sem intermediação, sejam eles o fecho do centro de saúde local ou a transferência direta e descarada de rendimentos dos mais pobres para os mais ricos, como aconteceu com a tentativa de alteração da TSU.
 
Dito isto, nada impede que amanhã a rua expluda. Mas ninguém de boa-fé pode dizer que o previu com razões que eram convincentes ao tempo em que as formulou. No entanto, se tal acontecer, o objetivo do relatório do Observatório será o de contribuir para que se neutralize o perigo do niilismo extremista e fascizante.
 
Se, pelo contrario, as nossas ruas continuarem a dedicar-se ao trânsito e ao comércio, a sua vocação originária, o objetivo do relatório é contribuir para um novo ciclo político menos destrutivo e agressivo onde a democracia volte a fazer sentido.
 
(*) Palestra de encerramento da apresentação pública do primeiro relatório do Observatório sobre Crises e Alternativas do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, intitulado "Anatomia da Crise: Identificar os Problemas para Construir as Alternativas", que teve lugar no dia 11 de Dezembro de 2013, em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian.
 

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