Marco Carvalho – Hoje Macau, opinião
Bem sei que os
cáusticos dias em que vivemos não condescendem bem com paixões fortuitas, que
há um vetusto romantismo na sórdida possibilidade de se confiar num mundo
diferente, quiçá melhor. Nos tempos que correm, ninguém alimenta ideais sem uma
pitada de vergonha ou embandeira princípios e convicções sem automatizar a
censura, sem se deixar corroer por sentimentos de culpa. Na era do pragmatismo
e da imediatez, acreditar – em Deus, no Homem, na universalidade das ideias – é
fraqueza.
Fraco, desde logo, me confesso. Desenganado pela obnubilação compulsiva dos ideais da democracia, dei por mim, enfatuado, a crer com ingénua meninice na mais bela das fraternidades, a que une povos, credos e culturas com mais contrastes do que semelhanças. A ideia de Lusofonia aquece-me o coração. Desde que o destino me fez arribar a Macau que nenhum ideal me parece mais digno, ainda que a inteireza do conceito nem sempre se vislumbre com a nitidez necessária por entre as nuvens de interesses que conformam as relações entre estados.
Mesmo não sabendo ainda ao certo o que é ou como poderá vir a ser rentabilizado o capital de esperança a que se convencionalizou chamar Lusofonia, sei bem como se manifesta: o espanto que Aureliano Buendía – o impulsivo coronel de “Cem Anos de Solidão” – sentiu na tarde remota em que o seu pai o levou a conhecer o gelo, senti-o eu sem reservas e com pueril entusiasmo da primeira vez que me sentei à mesa naquele que continua a ser para mim o mais fascinante estabelecimento de comidas de Macau. Do outro lado do balcão, escondidos sob um inelutável manto de rugas, oitenta e muitos anos de energia (um português adocicado, colorido com nhonha-nhonha à janela e fula-fula em flor), feijoada e arroz de pato numa redoma de vidro, velados e embalados por névoas de vapor. A refeição afigurou-se-me improvável e o espaço uma emanação de uma realidade descontínua, uma ilha de inverosímil familiaridade e conforto num oceano de estranheza e de incompreensão. Regresso ao Riquexó com a mesma ingénua devoção com que os peregrinos respondem à improbabilidade de um milagre e de todas as vezes me sinto em casa, como que embalado pelo abraço de um lar.
Agrada-me, sem reservas, a multiplicidade de formas, de rostos e de revelações com que se manifesta o pulsar da Lusofonia. É um mistério feito gente, feito dança, feito vida. Nas viagens que fiz, de Timor-Leste à Malásia, passando por destinos impresumíveis como Thanlyin, Nagasaki ou Batticalao, dei por mim a conversar com interlocutores improváveis e a esconder com secura o maravilhamento de enfim falar sobre coisas que realmente importavam, a tentar mascarar com duvidável seriedade a perplexidade que se sente quando contrastes e semelhanças se fundem em algo novo, familiar e aliciante numa mesma penada. No coração da inebriante Goa que por estes dias acolhe os Jogos ditos da Lusofonia, ouvi Aida Menezes de Bragança, a dama de Chandor (retratada no documentário homónimo de Catarina Mourão), ressuscitar – num português polido e limpo – memórias de uma juventude há muito dilacerada, dos dias em que pelos corredores da enormíssima Casa dos Bragança esboaçavam crianças a perder de conta e se escutavam ladaínhas e tabuadas por detrás do arcabouço de janelas envidraçadas com painéis de madre-pérola.
Não sei ao certo o que é a Lusofonia mas sei como se manifesta: irrompe como uma vaga absurda de orgulho. Orgulho inexplicável que é também maravilhamento, vontade de abraçar o outro, de compreender as suas motivações, de entender a sórdida resistência ao fluir do tempo e o apego a influências culturais alienígenas, desfasadas das concretizações políticas e sociais que hoje vigoram. É por ser fruto de um conjunto de improbabilidades que a Lusofonia está condenada se os povos que se acomodam no seu regaço não souberem ultrapassar o redutora formalidade do conceito que a define. Mais do que o conjunto das comunidades de língua portuguesa no mundo, a Lusofonia é o cadilho de comunidades que têm o português como língua comum e uma e outra acepção não são necessáriamente a mesma coisa. Para os falantes da língua de Camões a Lusofonia deve ser entendida sobretudo como um fértil campo de possibilidades. Deve ser um interface de intercâmbio cultural que sirva de plataforma de difusão cultural e artistica aos países e territórios que a integram, mas também uma frente unida de batalha na luta pela preservação da independência e da genuinidade cultural dos povos que se dizem e sentem lufósonos. Mais do que o fomento do português, a Lusofonia deve ter também capacidade para se transformar num instrumento de projecção do cantonense e do concanim face à cada vez mais agressiva política de uniformização linguística embandeirada por Pequim e por Nova Deli. Deve afirmar-se como uma montra capaz de exponenciar a história e as tradições dos fula e dos papel da Guiné Bissau, dos maubere de Timor-Leste ou dos ovimbundu de Angola. Uma tribuna para o conhecimento de homens e de deuses.
Eu, que não sei ao certo o que a Lusofonia é, sei bem aquilo que ela não é. Não é a visão tacanha e enviesada do mundo que manifestou Artur Lopes há meia dúzia de dias, quando assumiu que o português – mais do que interface de conhecimento – se deve afirmar como instrumento de subjugação. Por muito bem versado na história da Expansão que o chefe da missão de Portugal em Goa se arrogue ser, não teve grandeza de espírito suficiente para perceber que não foi o comércio, a pimenta, a prata e ouro que engrandeceram a presença de Portugal e dos portugueses de antanho na Ásia. Foi – isso sim – a sórdida vontade de ser-se outro. Com portugueses como Artur Lopes, quem os pode censurar?
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