sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

NA ÍNDIA, UM ESPECTRO ASSOMBRA TODOS NÓS

 

John Pilger
 
Nos hotéis de cinco estrelas frente ao mar de Bombaim (Mumbai), os filhos dos ricos gritam alegremente quando brincam de esconde-esconde. Nas proximidades, no National Theatre for the Performing Arts, chegam pessoas para o Festival Literário de Bombaim: autores famosos e notáveis provenientes da classe Raj [1] da Índia. Eles saltam habilmente sobre uma mulher que estava atravessada no pavimento, com suas vassouras artesanais expostas para venda, com as silhuetas dos seus dois filhos sob uma figueira que é o seu lar.

É o Dia da Criança na Índia. Na página nove do Times of India, um estudo informa que todo segundo filho é mal nutrido. Aproximadamente dois milhões de crianças com menos de cinco anos morrem todos os anos de doenças evitáveis tão comuns como a diarreia. Daqueles que sobrevivem, metade são atrofiados devido à falta de nutrientes. A taxa de abandono da escola nacional é de 40 por cento. Estatísticas como esta fluem como um rio em inundação permanente. Nenhum outro país se aproxima delas. As pequenas pernas finas a balouçar numa figueira são uma evidência pungente.

O gigante outrora conhecido como Bombaim é o centro da maior parte do comércio exterior indiano, dos negócios das finanças globais e da riqueza pessoal. Mas as pessoas são obrigadas a defecar na maré baixa do Rio Mithi, em canais ao longo da estrada. Metade da população da cidade não tem saneamento e vive em favelas sem serviços básicos. Este número duplicou desde a década de 1990 quando a "Índia brilhante" ("Shining India") foi inventada por uma firma americana de publicidade para propagandear o partido nacionalista hindu BJP. Pretendia estar "a libertar" a economia da Índia e o seu "estilo de vida".

Foram demolidas barreiras que protegiam a indústria, a manufactura e a agricultura. A Coke, Pizza Hut, Microsoft, Monsanto e Rupert Murdoch entraram no que fora território proibido. O "crescimento" sem limites era agora a media do progresso humano, absorvendo tanto o BJP como o Partido do Congresso, o partido da independência. A Índia brilhante apanharia a China e tornar-se-ia uma super-potência, um "tigre", e as classes médias obteriam seus direitos numa sociedade onde não havia o médio. Quanto à maioria da "maior democracia do mundo", ela votaria e permaneceria invisível.

Não havia economia tigre para eles. O alarde acerca de uma Índia high-tech a atacar as barricadas do primeiro mundo era em grande medida um mito. Isto não é negar a sua proeminência em tecnologia computacional e engineering, mas a nova classe tecnocrática urbana é relativamente diminuta e o impacto dos seus ganhos sobre os destinos da maioria é desprezível.

Quando a rede eléctrica nacional entrou em colapso em 2012, deixando 700 milhões sem energia, quase a metade dispunha de tão pouca electricidade que "mal notou", escreveu um observador. Nas minhas últimas duas visitas, as primeiras páginas dos jornais gabavam-se de que a Índia havia "penetrado no super-exclusivo clube do ICBM (míssil balístico intercontinental)" e lançado o seu porta-voz, o "maior de sempre", e enviado um foguete para Marte. Este último feito foi louvado pelo governo como "um momento histórico para todos nós nos congratularmos".

As congratulações foram inaudíveis nas fileiras de choças de papel betuminoso que se vêem quando se aterra no aeroporto internacional de Mumbai e na miríade de aldeias às quais é recusada tecnologia básica, tais como água limpa e segura. Aqui, terra é vida e o inimigo é um "mercado livre" desenfreado. A dominância de multinacionais estrangeiras de cereais, sementes geneticamente modificadas, fertilizantes e pesticidas lançou pequenos agricultores num implacável mercado global e conduziu ao endividamento e à pobreza. Mais de 250 mil agricultores mataram-se a si próprios desde meados da década de 1990 – um número que pode ser uma fracção do verdadeiro pois as autoridades locais deliberadamente relatam-nos como mortes "acidentais".

"De um extremo ao outro da Índia", afirma o famoso ambientalista Vandana Shiva, "o governo declarou guerra ao seu próprio povo". Utilizando leis da era colonial, a terra fértil tem sido tomada dos agricultores pobres por apenas 300 rúpias por metro quadrado; os promotores vendem-na por até 600 mil rúpias por metro quadrado. Em Uttar Pradesh, uma nova via expressa serve cidades de luxo com instalações desportivas e uma pista de Fórmula Um, tendo eliminado 1225 aldeias. Os agricultores e suas comunidades têm lutado contra; em 2011 houve quatro mortos e muitos feridos em choques com a polícia.

Para a Grã-Bretanha, a Índia é agora um "mercado prioritário" – para citar a unidade de vendas de armas do governo. Em 2010, David Cameron levou a Delhi os responsáveis das principais companhias de armas e assinou um contrato de US$700 milhões para fornecer caças-bombardeiros Hawk. Disfarçados como "aviões de treino", estes aviões mortíferos foram utilizados contra as aldeias de Timor Leste. Eles podem bem ser a maior "contribuição" do governo Cameron à Índia Brilhante.

O oportunismo é compreensível. A Índia tornou-se um modelo do culto imperial ao "neoliberalismo" – quase tudo deve ser privatizado, liquidado. O assalto em escala mundial à social-democracia e a conivência dos principais partidos parlamentares – principiada nos EUA e na Grã-Bretanha na década de 1980 – provocaram na Índia uma distopia de extremos e um fantasma para todos nós.

Apesar de a democracia de Nehru ter tido êxito em conceder eleições – hoje, há 3,2 milhões de representantes eleitos – ela fracassou em construir um simulacro de justiça social e económica. A violência generalizada contra mulheres só agora está, precariamente, na agenda política. O laicismo pode ter sido a grande visão de Nehru, mas os muçulmanos na Índia permanecem a minoria mais pobre, mais discriminada e mais brutalizada da Terra. Segundo a Comissão Sachar 2006, nos institutos de tecnologia de elite apenas quatro em cada 100 estudantes são muçulmanos, e nas cidades os muçulmanos tem menos oportunidades de emprego regular do que os Dalits "intocáveis" e os Adivasis nativos. "É irónico", escreveu Khushwant Singh, "que a mais elevada incidência de violência contra muçulmanos e cristãos se tenha verificado em Gujarat, o estado natal de Bapu Gandhi.

Gujarat é também o estado natal de Narendra Modi, que teve três vitórias consecutivas como ministro chefe do BJP e é o favorito para acompanhar o tímido Rahul Gandhi nas eleições nacionais de Maio. Com a sua xenófoba ideologia Hindutva, Modi apela directamente aos hindus despojados que consideram os muçulmanos como "privilegiados". Logo depois de chegar ao poder, em 2002, turbas massacraram centenas de muçulmanos. Uma comissão de investigação ouviu que Modi havia ordenado aos responsáveis não travarem os desordeiros – o que ele nega. Admirado por poderosos industriais, ele vangloria-se do mais alto "crescimento" da Índia.

Face a estes perigos, a grande resistência popular que deu à Índia a sua independência está em causa. A violação colectiva de uma estudante em Delhi no ano de 2012 trouxe muita gente às ruas, reflectindo a desilusão com a elite política e cólera devido à sua aceitação da injustiça e de um feudalismo modernizado. Os movimentos populares são muitas vezes liderados ou inspirados por mulheres extraordinárias – como Medha Patkar, Binalakshmi Nepram, Vandana Shiva e Arundhati Roy – e elas demonstram que os pobres e vulneráveis não devem ser fracos. Esta é a prenda duradoura da Índia para o mundo e aqueles do poder corrupto arriscam-se ao ignorá-la.
 
[1] Raj: Período da dominação britânica da Índia (1757-1947).

Ver também:

O trailer de Utopia, o novo filme de John Pilger, pode ser assistido aqui .

O original encontra-se em www.counterpunch.org/2014/01/03/in-india-a-spectre-haunting-us-all/ e em
johnpilger.com/articles/in-india-a-spectre-for-us-all-and-a-resistance-coming

Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
 

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