Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Não faz sentido ter
um Panteão e não ser conservador ou até mesmo elitista quanto à sua função. Ou
achamos que o Panteão é um "museu de mortos", como definiu Miguel
Sousa Tavares, e não queremos lá os nossos heróis, ou consideramos que é, como recordou
Henrique Monteiro num texto que subscrevo
na íntegra, o lugar para adorarmos todos os nossos
"deuses". E então temos critérios muito restritivos. E o critério é determinado
pelo olhar que temos sobre a nossa própria história e o que queremos, como
comunidade, que dela se imortalize. Ou seja, o nosso museu de mortos, o nosso
templo de todos os deuses, terá de ser o retrato do nosso ideal de Nação, ela
própria uma idealização de valores e supostas verdades históricas.
Não se trata,
portanto, de medir a importância de Eusébio, que a overdose mediática desta
semana deixou clara. Nem sequer da sua relevância. Trata-se de saber o que é
que a sua trasladação para o Panteão pretende dizer de nós. Que ideal de Nação
a sua presença ali representa. Não é por ter sido um grande jogador, um grande
português ou um grande benfiquista que essa trasladação é defensável. Se essa é
a justificação, parece-me muitíssimo mais justo e até mais bonito fazer o que
propôs Miguel Sousa Tavares: ter Eusébio na capela do Estádio da Luz.
Se a questão fosse
a importância de Eusébio, seria difícil justificar a ausência, no Panteão, de
Egas Moniz, José Saramago, Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, Vitorino
Nemésio, Natália Correia, Sophia de Mello Breyner, António Sérgio, Álvaro
Cunhal ou Sá Carneiro. Fico pelos nomes referidos pelo Henrique Monteiro, a que
acrescento o que mais me choca: Arestides de Sousa Mendes. Exatamente pelo
valor moral que a sua história transmite e não pela sua relevância nacional.
Tem de haver uma justificação política, cultural ou histórica que nos leva a
juntar Eusébio a tão curta lista de "deuses". É que, para além dos
cenotáfios de figuras a que ele nunca se poderia comparar, quase só existem
escritores e Presidentes no Panteão.
Houve justificação
para lá pôr Óscar Carmona e Sidónio Pais. Erradas, do meu ponto de vista. Mas
corresponderam ao olhar que o poder político de então tinha da Nação e queria
passar para o povo. Houve outra justificação para lá ter Humberto Delgado, que
não era escritor nem foi Presidente. Correspondia a um gesto de justiça contra
uma fraude eleitoral e uma homenagem aos que combateram a ditadura. Até a
presença de Amália, muito mais discutível, pode ser defendida pela ponte que
conseguiu fazer entre a cultura erudita e a cultura popular tradicional,
juntando o fado a grandes escritores. Sem reduzir a sua grandeza como
futebolista, a trasladação de Eusébio parece-me corresponder a um outro
critério: o da popularidade. Dirão que é o critério democrático. Eu respondo
que a coisa é mais complicada. A popularidade é fugaz (mesmo que dure décadas),
enquanto as representações de supostos "valores nacionais", em
democracia e fora dela, pelo menos aspiram a ser perenes.
O equívoco está bem
representado na afirmação de Mozer, ao comparar Eusébio a Nelson Mandela.
Mandela é um marco na história duma nação. Representa valores facilmente
identificáveis e que os sul-africanos querem que subsistam muito tempo depois
da sua morte: a começar pela igualdade e pela liberdade. Eusébio, no papel que
desempenhou na sociedade portuguesa, não corresponde a nenhum dos valores centrais
que nos dão o sentimento de pertença a uma comunidade. Deu-nos alegrias, não
nos deu a liberdade nem mudou a nossa história. O paralelo entre os dois é
fácil de identificar: morreram no último mês e os funerais tiveram direito a
grande cobertura mediática. Este é o tempo e o modo em que a memória coletiva
hoje trabalha.
É obviamente
discutível o meu ponto de vista sobre a ida de Eusébio para o Panteão. Há
dezenas de argumentos contrários a estes e igualmente aceitáveis. Só que, quer
estes quer os opostos, quando estamos a falar da fixação da imagem que queremos
ter do nosso próprio País, exigem tempo de maturação (que dará distanciamento,
não obrigatoriamente objetividade). Por isso, tal como recordou Henrique
Monteiro, se exigiam cinco anos de espera para tomar esta decisão. E foi mudado
para um ano, por causa de Amália. E agora já se quer tomar a decisão da
trasladação uns dias depois do corpo de Eusébio ter sido enterrado. E aposto
que tal decisão será tomada brevemente. E por unanimidade. Porquê? Porque estas
são as regras da democracia mediática. Sendo democrático, o poder deve
corresponder às aspirações populares. Estando todos os acontecimentos expostos
a uma enorme atenção mediática, e, nestes casos, envolvidas por uma enorme
exaltação emocional, tudo deve acontecer imediatamente. O melhor resumo do
imediatismo e da confusão entre democracia e mediocracia é a campanha iniciada
ontem pelo "Correio da Manhã", com o sugestivo mote "Eusébio ao Panteão, já!"
Quantas vezes
ouvimos na televisão que estamos a assistir a um acontecimento histórico? Quase
todos os dias. E essa é a dificuldade que temos: como podemos fixar momentos da
nossa história se cada momento nos é apresentado como único e fundamental? É
impossível avaliar da relevância dum momento ou dos valores que associamos a
uma determinada figura histórica sem tempo de recuo. E sem tempo, sobra a
popularidade e a comoção. Que muda todos os dias. É assim o tempo do
espetáculo. Tudo imediato, tudo sem peso, sem conta e sem medida.
As questões que se
levantam com este encurtar de tempo para, à pressa, os políticos quererem
corresponder à vontade de dar a Eusébio o máximo de todos os elogios fúnebres,
é bem mais interessante do que o caso em si próprio. E leva-nos a perguntar se
é possível, num tempo sempre tão acelerado, manter as liturgias oficiais
necessárias para a construção e preservação duma "identidade
nacional". Se essas liturgias não exigem uma de duas coisas: ou um poder
político elitista que se recusa a ceder aos humores populares, ou um ritmo
lento que transforma esses humores em convicções firmes e legitimas dum povo.
As respostas são
dadas pelos dois únicos contemporâneos da democracia que terão lugar no
Panteão: Amália e Eusébio. Que foram, eles próprios, independentemente da sua
vontade, ícones nacionais durante o Estado Novo. O que levou a algum entusiasmo
do bispo de Beja, que acrescentou
Fátima para completar os três principais elementos da nossa identidade, sendo
talvez excessivamente lesto na reabilitação dos três F's.
Talvez a democracia,
que tem por natureza menos instrumentos para impor a sua própria mitologia, não
se preste muito a este tipo de heróis. E, por essa incapacidade, herdou da
ditadura os dois únicos símbolos que, por pessoalmente nada terem a ver com
ela, podiam ter sobrevivido à mudança de regime. De resto, parece-me que o
templo de todos os deuses vai deixar de ser um Panteão tutelado pelo poder
político. Talvez seja no facebook.
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