José Pacheco Pereira – O Diário
O Governo, o PSD e
o CDS, e todos os apoiantes do “ajustamento” na versão troika-Gaspar-Passos,
obtiveram uma importante vitória política ao levarem o PS a assinar um acordo a
pretexto do IRC. Foi um dia grande. “Rejubilai”, dizem os anjos do “ajustamento”.
Dizem bem.
Nesse mesmo dia, os
professores contratados foram abandonados pelo PS, que apenas pediu uma pífia
“suspensão” da prova, e os trabalhadores dos Estaleiros de Viana, que marcharam
pelas ruas de Lisboa com as suas famílias, a caminho da miséria, não merecem nem
um levantar de sobrancelhas dos doutos conselheiros económicos do “líder”
Seguro. O PS, que tinha já enormes responsabilidades na situação actual de
ambos os sectores profissionais, agora mostrou de novo por que razão não é
confiável como partido de oposição, mas, pelo contrário, é confiável, pela mão
de Seguro, para lá de muitas encenações, para os que mandam em Portugal, sempre
os mesmos.
É que o acordo
sobre o IRC não é sobre o IRC. O IRC, repito, foi o pretexto. Aliás, a pergunta
mais simples a fazer, a óbvia, aquela que a comunicação social, se não
estivesse subjugada à agenda e aos termos dessa agenda do poder político
dominante, faria é esta: por que razão é que um acordo deste tipo não veio da
Concertação Social, mas de conversações entre os dois partidos? Por que razão é
que o Governo nunca esteve disposto a fazer este tipo de cedências diante da
CCP ou da UGT, já para não dizer da CIP e da CGTP, mas está disposto a fazê-lo
com o PS? Ou, dito de outra maneira, que vantagem tem o Governo em fazer este
acordo com um partido da oposição e não com os parceiros sociais? Ou ainda
melhor: o que é que o PSD e o CDS obtiveram do PS que justificou este remendo,
aliás, pequeno e de pouca consequência, na sua política? É que, convém lembrar,
o Governo não precisava do voto do PS para passar esta legislação, e é por isso
que o único ganho de causa é o do Governo.
O acordo foi um
acordo político de fundo que amarra o PS a sistemáticas pressões governamentais
e outras, para que passe a ser parte do “consenso” que legitime a actual
política. O que está em causa é algo que seria, se as classificações
ideológicas tivessem alguma correspondência com a realidade, inaceitável por um
partido socialista, como o é para um social-democrata, moderado que seja. O
sentido de fundo do “ajustamento” está muito para além do resolver os problemas
mais imediatos do défice ou da dívida, mas traduz-se numa significativa
alteração das relações sociais a favor dos senhores da economia financeira, em
detrimento daquilo que a maioria da população, classe média e trabalhadores,
remediados e pobres, tinham conseguido nos últimos 40 anos.
O que marcará com
um rastro profundo Portugal para muitos anos é acima de tudo essa transferência
de poder, recursos e riqueza na sociedade. Ela faz-se pela mudança de fundo no
terreno laboral, com a aquiescência do PS – recorde-se que aceitou sem críticas
o acordo assinado pela UGT –, com a fragilização das relações entre
trabalhadores, o elo mais fraco, e o patronato, o esmagamento da classe média
pelo assalto à função pública, aos salários, reformas e pensões. A destruição
unilateral dos “direitos adquiridos” destinou-se não apenas a garantir essa
enorme transferência de recursos, mas acima de tudo a enfraquecer o poder
social dos trabalhadores, dos funcionários públicos, dos detentores de direitos
sociais.
No passado podia
haver pobres, estes tinham, porém, a possibilidade de ter uma dinâmica social e
política para saírem da pobreza, uma capacidade de inverterem as relações
sociais que lhes eram desfavoráveis. Eram pobres, mas não estavam condenados à
pobreza. Era isso a que se chamava “a melhoria social”, num contexto de
mobilidade e num contrato social que permitia haver adquiridos. Agora tudo isso
aparece como um esbanjamento inaceitável, e o que hoje se pretende é que os
pobres, cada vez mais engrossados pela antiga classe média, sejam condenados à
sua condição de pobreza em nome de uma crítica moral ao facto de “viverem acima
das suas posses”, perdendo ou tornando inútil os instrumentos que tinham para a
sua ascensão social, a começar pela educação, pela casa própria, e a acabar nas
manifestações e protestos cívicos, as greves e outras formas de resistência
social. É um conflito de poder social que atravessa toda a sociedade e que se
trava também nas ideias e nas palavras, em que a comunicação social é um palco
determinante, com a manipulação das notícias, a substituição da informação pelo
marketing e pela propaganda. E o PS escolheu estar ao lado dos “ajustadores”.
Pode-se argumentar
que a “cedência” do PS permitiu algum alívio às pequenas e médias empresas, e
que por isso há um ganho de causa. Talvez, e isso seria bom, se fosse apenas
isso. Mas o que o PS cedeu é muito mais do que isso: é um contributo decisivo
para manter a actual política em tudo o que é fundamental, a começar pela
prioridade do alívio às empresas e aos negócios em detrimento das pessoas e do
consumo. O PS enfileirou no núcleo duro do discurso governamental, mais
sensível às empresas do que às pessoas, aceitando que, a haver abaixamento dos
impostos, ele deve começar pelas empresas e não pelos indivíduos e as famílias,
pelo IRC e não pelo IRS e pelo IVA.
Eu conheço a
lengalenga de que os benefícios às empresas, à “economia”, são a melhor maneira
de beneficiar as pessoas, e que é a “vitalidade” da economia que pode permitir
todos saírem da crise. Em abstracto, poderia ser assim, no nosso concreto, não
é. Chamo-lhe “lengalenga” porque no actual contexto a inversão muito
significativa dos poderes sociais torna muito desigual a distribuição de benesses
oriundas deste tipo de medidas, reforça os mais fortes como um rio caudaloso e
chega tardiamente e sem mudar nada, como um fio de água, aos que mais precisam.
E a outra verdade que tem que ser dita é que este tipo de acordo no IRC vai
tornar mais difícil que haja uma diminuição significativa do IRS ou do IVA, ou
seja, quem vai pagar os benefícios a algumas empresas são outras empresas mais
em risco e as pessoas e as famílias.
Numa altura em que a campanha eleitoral para as europeias e a, mais distante, das legislativas são já um elemento central das preocupações partidárias do PSD e do CDS, o PS deu-lhes um importante trunfo político, e um sinal de que não confia nas suas próprias forças para ganhar as eleições e muito menos governar sozinho. Um acordo PS-PSD feito pela fraqueza e assente na continuidade da política actual prenuncia apenas que, seja o PS, seja o PSD, a governarem em 2015, cada um procurará no outro um seu aliado natural, não para uma política de reformas, mas para garantir a política que interessa ao sector financeiro, que capturou de há muito a decisão política em Portugal.
O PS de Seguro
mostrou que não é confiável como partido da oposição e que ou não percebe o
sentido de fundo da actual política de “ajustamento”, de que este abaixamento
do IRC é um mero epifenómeno, ou, pelo contrário, percebe bem de mais e quer
ser parte dela. Inclino-me, há muito, para a segunda versão. Seguro e os seus
criaditos diligentes estão ali para servirem as refeições aos que mandam,
convencidos que as librés que vestem são fardas de gala num palanque
imaginário. Vão ter muitas palmas e responder com muitos salamaleques.
Estamos assim.
*Este artigo
encontra-se em abrupto.blogspot.pt
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