Zoltan Zigedy [*]
Quando mercados
económicos significativos dos EUA se descontrolaram durante o Verão e fins de
2008, um temor, mesmo um pânico, apossou-se dos encarregados de desenvolver e
aplicar a política económica. O pensamento prevalecente – capitalismo
desenfreado com confiança quase religiosa em mecanismos de mercado – parecia
estar em retirada irreversível.
O mercado habitacional esfriou, os valores das casas contraíram-se, e a estrutura financeira construída em torno da propriedade habitacional começou a entrar em colapso. Na medida em que o mercado de acções caía em queda livre das alturas anteriores, levado pela implosão das acções de bancos, os investidores retiravam-se dramaticamente do mercado. O crédito congelou e o consumo diminuiu. Começou então uma espiral decrescente de despedimentos colectivos, consumo reduzido, entesouramento de capital e crescimento retardado, seguida por mais despedimentos, etc, etc.
Com o medo, decisores políticos mexiam-se para encontrar uma resposta à crise que ameaçava aprofundar-se e propagar-se às mais remotas paragens da economia global. Com taxas de juro próximas de zero, reconheceram por fim que a caixa de ferramentas monetarista, em uso desde a administração Carter, não apresentava resposta.
No fim da administração Bush, líderes bipartidários aprovaram a injecção de centenas de milhares de milhões de dólares públicos no sistema financeiro com a esperança de estabilizar o valor de mercado dos bancos que estava em colapso, um movimento popularmente alcunhado como "bailout" (salvamento externo).
No princípio da administração Obama, administradores do Partido Democrata carpinteiraram um outro programa de recuperação que totalizava cerca de três quartos de um milhão de milhões (trillion) de dólares, um programa envolvendo uma combinação de cortes fiscais, projectos público-privados de infraestrutura e alívio directo ampliado. A generalidade dos economistas encarou este esforço como um programa de "estímulo" destinado a disparar uma explosão de actividade económica para dar o arranque a um motor económico enguiçado. Estimativas em dólar dos salvamentos federais e estímulos federais destinados a ultrapassar a crise ascenderam a valores tão altos quanto o Produto Interno Bruto de um ano nos anos iniciais após o início da queda livre. A Reserva Federal continua a fazer uma transfusão de US$75 mil milhões por mês para as veias da ainda enferma economia dos EUA.
Má fé
As últimas três décadas do século XX produziram um novo consenso económico: não meramente do primado do mercado, mas sim da total governação da vida económica pelo mercado. Acreditou-se que a regulamentação desestabilizava os mercado e não que o corrigia. A propriedade pública e os serviços públicos eram vistos como ineficientes e entraves inadmissíveis às forças do mercado. Tanto a vida pública como a privada, para além do universo económico, foram sujeitas aos mercados, medidas pelos mecanismos de mercado e analisadas através das lentes do pensamento de mercado. Na verdade, a linguagem de mercado (market-speak) tornou-se a língua franca unificadora de todas as ciências sociais e humanas nesta era. Com a queda da União Soviética, o capital e seus processos orientados pelo lucro penetraram todos os cantos do mundo. Só movimentos independentes, anti-imperialistas, desconfiados do mercado, como aqueles liderados por Hugo Chavez, Evo Morales e uns tantos outros obtiveram algum êxito político contra a dominância global sem precedentes da propriedade privada e dos mecanismos de mercado.
Enquanto o capitalismo na sua forma mais crua e agressiva desfrutava os seus momentos de triunfo, estavam em actuação forças que minavam aquela celebração. Aquelas forças estragaram a festa em 2000 sob a forma de um grave arrefecimento económico, a chamada "Recessão Dot-com" caracterizada por uma perda de valor no mercado de acções de US$5 milhões de milhões e o desaparecimento de milhões de empregos. Economistas assombravam-se pela lentidão com que os empregos estavam a retornar até os EUA e a economia global serem atingidos em 2008 por outra bofetada ainda mais poderosa. Claramente, a primeira década do século XXI será recordada como uma época de crise económica e incerteza, uma perturbação que continua até o dia de hoje.
Além do custo humano – milhões de empregos perdidos, pobreza, número de sem abrigos, oportunidades perdidas, destruição de riqueza pessoal – o século XXI infestado de crise desafiava a ortodoxia prevalecente dos mercados sem peias e da propriedade privada. Mesmo advogados tão sólidos e fervorosos daquela ortodoxia, como o Wall Street Journal, The Economist e The Times foram abalados pela crise, questionando a validade de princípios económicos clássicos. Nenhum princípio é mais querido e essencial para os adeptos do livre mercado do que a ideia de que os mesmos são auto-correctores. Apesar de poder haver desequilíbrios económicos de curto prazo ou maus tempos nos negócios, os advogados do mercado livre acreditam que o seu movimento tende sempre ao equilíbrio e à expansão no longo prazo. Portanto, uma estagnação persistente e de longo prazo, ou declínio, é considerada virtualmente impossível (com a condição de que não haja restrições impostas ao mecanismo de mercado).
Assim, quando a era da mais ampla economia global de mercado aberto experimentou o mais catastrófico colapso desde a Grande Depressão, levantam-se sérias dúvidas acerca dos princípios fundamentais da ideologia de mercado. E durante os dias mais negros de 2008 e 2009, um verdadeiro pânico ideológico abateu-se sobre sabichões e peritos da direita e da esquerda "respeitável". Alguns reabilitaram um economista fora de moda e falaram de um "momento Minsky". Liberais proclamaram a morte do neoliberalismo (a expressão popular para o retorno à respeitabilidade da teoria económica clássica que começou no fim da década de 1970). E outros ainda anteviram uma restauração dos intervencionistas teorias económicas representados por John Maynard Keynes, teorias que guiaram a economia capitalista através da maior parte do período do pós-guerra. Mesmo os economistas mais conservadores admitiram que a supervisão do mercado, se não mesmo a regulamentação, era tanto necessária como desejável.
Contudo, a mudança surgiu. Apesar de mais de cinco anos de declínio e estagnação, apesar de um contínuo fracasso dos mercados para a auto-correcção, a ideologia do livre mercado continua a dominar tanto o pensamento como a política, claramente mais baseada na fé do que na realidade. Em parte, a resiliência da filosofia do mercado aberto emana da perspicaz fabricação do medo do endividamento por políticos e traficantes de dívida das instituições financeiras. Ao levantar o grito estridente da explosão da dívida e da catástrofe iminente, a atenção desviava-se dos fracassos dos mercados sem peias e dirigia-se à austeridade governamental e à redução da dívida maciça.
Diagnóstico?
É evidente que todos os modelos matemáticos vencedores do Prémio Nobel, concebidos para apreender a actividade económica, fracassaram na previsão e explicação do crash de 2008. Nenhuma quantidade de fé poderia disfarçar o fracasso monumental dos mercados não regulamentados e das políticas que os promoveram. Duas explicações simplistas e conflitantes, agudamente contrastantes, são avançadas.
Os defensores dos mercados livres, desavergonhadamente e arrogantemente argumentam que o governo se intrometeu e prejudicou a plena e livre operação dos mecanismos de mercado, exacerbando portanto o que teria sido uma correcção penosa mas que seria resolvida rapidamente. Seguindo a metáfora mencionada no título deste artigo, a azia foi mal diagnosticada, tratada com cirurgia radical, só para criar uma condição que põe a vida em perigo.
Naturalmente, isto é uma insensatez dita em proveito próprio.
Seja o que for que possamos saber acerca de mercados, sabemos isto: desde que o processo de desregulamentação de mercados começou no fim da década de 1970, as crises têm ocorrido com mais frequencia, com maior amplitude e com consequências humanas mais drásticas. Antes disso, e durante todo o período anterior do pós guerra, a intervenção do governo e a regulamentação tendiam a prevenir períodos maus, moderar o seu nadir e suavizar os custos humanos. E um vislumbre do período anterior de política favorável ao mercado – os primeiros anos da Grande Depressão – demonstra a loucura de simplesmente esperar pela correcção prometida: as coisas só ficam piores. Assim, tal como agora, a vida demonstrou ser um capataz duro. Quando mecanismos de mercado realmente dão para o torto, ninguém pode se dar a luxo de esperar por auto-correcção.
Os oponentes liberais e da esquerda suave ao mercado sem peias apresentam um argumento diferente. Eles vêem a crise não na ausência de mercados livres mas sim no fracasso em supervisioná-los e regulamentá-los adequadamente. Nesta visão, partilhada por quase todos os liberais e a maior parte da esquerda não comunista, os mercados são mecanismos económicos fundamentais – essenciais, se quiser – mas melhor pastoreados por controles do governo que os pilotam para porto seguro quando ameaçam fugir ao controle.
Portanto, a crise de 2008 teria sido impedida, acreditam eles, se regras e regulamentos permanecessem em vigor tal como haviam sido anteriormente concebidos e implementados a fim de proteger a economia dos excessos do mercado. Se não houvéssemos afrouxado as regras e regulamentos, nunca teríamos experimentado o desastre de 2008.
Esta visão é história mal contada e análise económica ainda pior.
Se bem que os liberais gostem de acreditar que regulamentações e instituições geradas pelo New Deal da década de 1930 estabilizaram o capitalismo e domaram os mercados, a verdade é outra. O maciços gastos de guerra iniciado algum tempo antes da entrada dos EUA na II Guerra Mundial resolveram os problemas de crescimento e de excesso de mão-de-obra associados à longa década de estagnação, recuperação hesitante, recuo e nova estagnação que assolaram a economia desde 1929.
O capitalismo ganhou novo impulso com a reconstrução do pós guerra. Forças produtivas foram restauradas onde haviam sido destruídas, renovadas quando estavam gastas e melhoradas face aos novos desafios. Esta vasta reestruturação do capitalismo produziu novas oportunidades tanto para o lucro como para o crescimento. Ao mesmo tempo, a lição do gasto militar maciço, socializado, público e planeado não foi perdida. Novas ameaças foram conjuradas, novos temores construídos. A guerra quente na Coreia e a Guerra-Fria sempre crescente alimentaram uma expansão dos EUA sem precedentes. Não é inadequado caracterizar esta expansão do pós guerra como um período de "keynesianismo militar". Por outras palavras, foi uma era de politicas keynesianas de gastos governamentais planeados e extensos acoplados a encomendas militares fora do mercado. Na medida em que transferia uma fatia significativa da economia capitalista para um comando, um sector extra-mercado, ela assinalou uma nova etapa do capitalismo monopolista de estado, uma etapa que adoptava algumas das características do socialismo.
Mas em meados da década de 1960 este "ajustamento" começou a perder a sua vitalidade. O crescimento do lucro, a força condutora da expansão capitalista, começou um declínio persistente (para uma ilustração gráfica desta tendência, ver a página 103 de The Economics of Global Turbulence ( New Left Review, May/June 1998), de Robert Brenner.
A queda da taxa de lucro emparelhou-se à enorme inflação de meados da década de 1970. As soluções militar-keynesianas para a crise capitalista estavam gastas, exauridas, demonstrando-se inadequadas para tratar uma nova expressão da instabilidade do capitalismo. Talvez nada tenha assinalado mais a bancarrota da ortodoxia (keynesiana) prevalecente do que a desesperada campanha WIN ( Whip Inflation Now, Bata a inflação agora) da presidência Gerald Ford, uma tentativa impotente para deter a crise com determinação em massa.
Ao contrário das afirmações de liberais, sociais-democratas e outros salvadores do capitalismo voltados para reformas, a resultante mudança na ortodoxia não foi meramente um golpe político, uma vitória da ideologia retrógrada, mas ao invés disso um desmanchar das fracassadas políticas keynesianas da época. Portanto, a "revolução" de Thatcher/Reagan foi apenas o veículo para um ajustamento dramático da rota do capitalismo a afastar-se de um paradigma gasto, ineficaz.
Com Paul Volker assumindo a presidência do Federal Reserve e os princípios da desregulamentação sistemática, a administração Carter plantou as sementes do abandono das velhas receitas. Volker, com o seu crescimento sufocante das taxas de juro, assegurou uma recessão que afastaria qualquer vontade de resistir ao aperto de cinto. Mas foi preciso a eleição de Ronald Reagan orientado pelo dogma para emular a Margaret Thatcher do Reino Unidos e utilizar a ocasião para estripar salários e benefícios a fim de abrir o caminho para o crescimento do lucro.
O custo de devolver a vida à moribunda economia capitalista foi arcado pela classe trabalhadora. Loucamente, a impassível e complacente liderança [sindical] confiou na continuação do contrato tácito da Guerra Fria: O trabalho apoia a campanha anti-comunista e as corporações honram a paz trabalhista com salários firmes e crescimento de benefícios. Ao invés disso, o crescimento do lucro foi restaurado pela supressão dos padrões de vida do trabalho – cortando "custos". Seguiu-se uma odiosa ofensiva anti-trabalho.
Se bem que a leal oposição insista em retratar a ruptura com a teoria económica keynesiana como algo novo (habitualmente alcunhado "neoliberalismo"), ela foi, de facto, uma capitulação à antiga. A bancarrota da teoria económica burguesa não podia oferecer nada de novo, nenhuma resposta criativa à crise capitalista; ela só podia abandonar uma abordagem fracassada e restaurar lucros pelo esmagamento implacável do mercado de trabalho.
Esta resposta só podia ter êxito devido à extraordinária fraqueza do movimento trabalhista. Quando a taxa de lucro começou a recuperar, faltou ao trabalho liderança e vontade para não só assegurar uma fatia dos aumentos de produtividade, mas mesmo para defender seus ganhos anteriores.
Portanto, o capitalismo adquiriu um segundo fôlego ao recuar do consenso económico do pós guerra e renegar o implícito tratado de paz com o trabalho. O crescimento do lucro retornou e o sistema navegou.
Mas o contínuo avanço da desregulamentação e da privatização trouxe consigo um retorno à anarquia drástica dos mercados. A crise das Caixas Económicas (Savings e Loan) das décadas de 1980 e 1990 e o crash do mercado de acções de Outubro de 1987 foram os arautos do que estava para vir e reflexos de instabilidade mais profunda.
Com a queda União Soviética e do socialismo na Europa do Leste, foi entregue um enorme novo mercado ao sistema capitalista global, um mercado que mais uma vez revigorou as oportunidades para acumulação de capital e expandiu lucros. Milhões de trabalhadores educados, recém "libertos" (libertos da estabilidade de emprego, de condições de trabalho seguros, de protecção legal e de organização) juntaram-se aos trabalhadores com salários reduzidos e mal pagos do resto do mundo para constituir um vasto manancial de trabalho barato. Portanto, uma guerra de classe imensa e unilateral e a integração de milhões de trabalhadores com salários deprimidos estabeleceram o capitalismo num saudável caminho de recuperação do lucro, colocando a agora impotente ortodoxia keynesiana no espelho retrovisor. Poucos imaginariam que esta viagem duraria menos de duas décadas, até o capitalismo deparar-se outra vez com crises graves.
Crescimento económico significativo num período de trabalho fraco necessariamente produz desigualdade galopante. Com políticas fiscais amistosas para com as corporações e a riqueza, muitos mecanismos de redistribuição do governo são exauridos ou desmantelados. O fluxo de riqueza acelera-se para as corporações e os super-ricos e afasta-se daqueles que trabalham para viver. Os cofres da classe investidora incham com dinheiro ansioso por um retorno significativo sobre o investimento. Quando o processo de acumulação de capital se intensifica, cada vez menos seguro, surgem oportunidades de investimento produtivo de alto rendimento para absorver a vasta acumulação de riqueza sempre em expansão concentradas nas mãos de uma pequena minoria.
Num capitalismo maduro, novas e mais arriscadas avenidas – tipicamente removidas do sector produtivo – se abrem para oferecer um lar para o capital e prometendo um retorno. Banqueiros e outros "magos" financeiros competem ferozmente para construir dispositivos geradores de lucro que prometem cada vez mais. Estes instrumentos crescem gradualmente a partir da actividade produtiva. Além disso, seus "lucros" resultantes são mais uma vez removidos do valor real, tangível, material. Ao invés, eles existem virtualmente como capital "hipotético", ou capital "contra-factual", ou capital "direccionado ao futuro", ou capital "contingente". Alguns marxistas apressam-se a etiquetar este produto da especulação como "fictício", mas isso obscurece a sua origem fundamental em actos exploradores no processo mercadoria-produção. É esta expansão de capital promitente que alimenta volta após volta o investimento especulativo lubrificado com dívida cada vez maior.
Abundam metáforas do fim de jogo deste processo: "bolhas", "castelo de cartas", etc. Mas em última instância a causa da crise é o fracasso em satisfazer a infindável busca do retorno. Por outras palavras, a causa da crise reside no processo de acumulação intrínseco ao capitalismo e à incapacidade para sustentar um retorno viável ao sempre crescente mar de capital e capital promitente. Os capitalistas medem o seu êxito pelo modo como os seus recursos são plena e efectivamente postos em uso para gerar novos excedentes. Por outras palavras, o mais profundo e o mais impressionante sendo da "taxa de lucro". É o critério que guia o capitalista – uma taxa de lucro efectiva com base nos activos acumulados. Além das medidas oficiais e forçadas das taxas de lucro, o crescimento do capital acumulado, ponderado contra as oportunidades de investimento disponível, conduz o investimento futuro e determina o curso da actividade económica.
Em 1999, a lucratividade do sector tecnológico caiu precipitadamente em resultado do investimento irrealizável de milhares de milhões de dólares à procura de rendimento nas companhias marginais Dot.com e de serviços internet. Em resposta ao problema da super-acumulação, investir nas fantasias de jovens génios de 20 anos demonstrou-se ser tão irracional quanto observadores lúcidos pensam ser. Seguiu-se o crash.
E mais uma vez os dias estonteantes de 2005, a comprar pacotes de títulos bizarros com os destroços de hipotecas marotas parecia um meio de encontrar um lar para vastas somas de capital "improdutivo". Afinal de contas, o capital não pode permanecer ocioso; tem de encontrar um meio para reproduzir-se. Mas o que fazer com os rendimentos da revenda de títulos conduzidos pela procura? Mais do mesmo? Mais risco? Mais dívida? E repetir?
A porção dos lucros das corporações estado-unidenses "ganha" pelo sector financeiro cresceu dramaticamente desde 1990 até o crash de 2008, atingindo aproximadamente os 40% em meados dos anos 2000 e demonstrando a explosão de veículos de investimento alternativo que ocupava capital ocioso. É crucial ver uma ligação, uma necessidade evolucionária, entre a restauração da lucratividade, a intensa acumulação de capital e a tendência para a lucratividade ser desafiada pela falta de oportunidades de investimento prometedoras. Não é o capricho de banqueiros ou a esperteza de empreendedores que conduz este processo, mas o imperativo lógico do capital para produzir e reproduzir-se.
Alguns comentários e observações
Há outras teorias da crise apresentadas pela esquerda. Uma teoria, abraçada por muitos Partidos Comunista, sustenta que a crise emerge da super-produção. Naturalmente, num sentido a super-acumulalação é uma espécie de super-produção, uma super-produção de capital a que falta um destino para investimento produtivo. Mas muitos à esquerda entendiam algo diferente. Eles argumentam que o capitalismo põe mais mercadorias no mercado do que trabalhadores empobrecidos, mal pagos, podem comprar. Há duas objecções a isto: uma teórica, uma ideológica.
Primeiro, a evidência mostra que uma queda no consumo ou um aumento na produção de facto não antecede o declínio económico na nossa era. Se a super-produção ou o seu primo, o sub-consumo, fossem a causa da retracção económica de 2008, os dados necessariamente mostrariam algum desvio anterior dos padrões de produção/consumo. Mas não há nenhum. Ao invés, verifica-se o inverso: a própria crise provocou um fosso maciço entre a produção e o consumo, exacerbando-a. A ameaça de oferta excessiva prolonga-se na enorme pressão deflacionária que agita a economia global. Apesar do facto de o gasto do consumidor ser uma grande componente da economia dos EUA, os efeitos da sua estagnação secular ou declínio têm sido em grande medida atenuados pela expansão do crédito ao consumidor e a existência, embora ténue, de programas de bem-estar social como o seguro de desemprego.
Segundo, se consumo retardado ou inadequado fosse a causa de crises, então políticas redistributivas ou políticas fiscais proporcionariam uma solução simples para retracções, ambas impedem-nas e revertem-nas. Portanto, o capitalismo podia avançar no seu alegre carrossel com pouco temor de crise. Certamente esta é a atracção ideológica de explicações de crises pela super-produção: elas permitem a liberais e sociais-democratas apregoar sua capacidade para administrar o capitalismo através de políticas governamentais.
Contudo, eles não podem administrar o capitalismo porque as crises estão localizadas não na arena da circulação (compatibilizando produção e consumo), mas sim no mecanismo gerador de lucro do capitalismo, a sua própria alma.
Devido à centralidade do lucro, a explicação da super-acumulação tem uma afinidade com outra teoria da crise: o argumento de Marx para a tendência de queda da taxa de lucro. De facto, pode ser encarada como uma versão contemporânea do argumento sem as suposições do século XIX.
Felizmente, muitos comentadores de hoje revisitaram a teoria esboçada no Volume III de O Capital, descobrindo uma relevância ignorada ao longo da maior parte do século XX. Somente um punhado de admiradores do trabalho de Marx manteve a teoria viva naquela era, autores como Henryk Grossman, John Strachey e Paul Mattick. Infelizmente, admiradores de hoje, como os antecessores acima mencionados, partilham o viés acriticamente ao tomar o esquema de Marx como o Santo Graal. Na maior parte das vezes, Marx usava formalismo muito ocasional como ferramenta de exposição e não como os axiomas de um sistema formal. Aqueles treinados na análise económica moderna são inclinados a saltar sobre estas fórmulas com um fervor de discípulo. Eles debatem a resistência de um modelo que descreve a economia global como uma colecção de empresas a devorarem capital constante a uma taxa maior do que o emprego de trabalho e mecanicamente deprimindo a taxa de lucro. Isto é confundir a simplificada exposição de Marx com explicação robusta. Pode-se aprender muito da exposição de Marx sem que se faça disto um exercício escolástico.
Entre os nossos amigos de esquerda, tornou-se popular falar da crise e desta era como de "financiarização". Isto é sobretudo inútil. Na verdade, a crise tem muito a ver com o sector financeiro; este desempenhou e desempenha um papel maior na economia global, especialmente nos EUA e Reino Unido. Mas recorrer a um novo nome nada faz para expor ou explicar o papel da finança. Tal como "globalização" num momento anterior, a palavra "financiarização" pode ser emocionante, elegante e conveniente, mas normalmente esconde os mecanismos em funcionamento. É uma palavra preguiçosa.
O mercado habitacional esfriou, os valores das casas contraíram-se, e a estrutura financeira construída em torno da propriedade habitacional começou a entrar em colapso. Na medida em que o mercado de acções caía em queda livre das alturas anteriores, levado pela implosão das acções de bancos, os investidores retiravam-se dramaticamente do mercado. O crédito congelou e o consumo diminuiu. Começou então uma espiral decrescente de despedimentos colectivos, consumo reduzido, entesouramento de capital e crescimento retardado, seguida por mais despedimentos, etc, etc.
Com o medo, decisores políticos mexiam-se para encontrar uma resposta à crise que ameaçava aprofundar-se e propagar-se às mais remotas paragens da economia global. Com taxas de juro próximas de zero, reconheceram por fim que a caixa de ferramentas monetarista, em uso desde a administração Carter, não apresentava resposta.
No fim da administração Bush, líderes bipartidários aprovaram a injecção de centenas de milhares de milhões de dólares públicos no sistema financeiro com a esperança de estabilizar o valor de mercado dos bancos que estava em colapso, um movimento popularmente alcunhado como "bailout" (salvamento externo).
No princípio da administração Obama, administradores do Partido Democrata carpinteiraram um outro programa de recuperação que totalizava cerca de três quartos de um milhão de milhões (trillion) de dólares, um programa envolvendo uma combinação de cortes fiscais, projectos público-privados de infraestrutura e alívio directo ampliado. A generalidade dos economistas encarou este esforço como um programa de "estímulo" destinado a disparar uma explosão de actividade económica para dar o arranque a um motor económico enguiçado. Estimativas em dólar dos salvamentos federais e estímulos federais destinados a ultrapassar a crise ascenderam a valores tão altos quanto o Produto Interno Bruto de um ano nos anos iniciais após o início da queda livre. A Reserva Federal continua a fazer uma transfusão de US$75 mil milhões por mês para as veias da ainda enferma economia dos EUA.
Má fé
As últimas três décadas do século XX produziram um novo consenso económico: não meramente do primado do mercado, mas sim da total governação da vida económica pelo mercado. Acreditou-se que a regulamentação desestabilizava os mercado e não que o corrigia. A propriedade pública e os serviços públicos eram vistos como ineficientes e entraves inadmissíveis às forças do mercado. Tanto a vida pública como a privada, para além do universo económico, foram sujeitas aos mercados, medidas pelos mecanismos de mercado e analisadas através das lentes do pensamento de mercado. Na verdade, a linguagem de mercado (market-speak) tornou-se a língua franca unificadora de todas as ciências sociais e humanas nesta era. Com a queda da União Soviética, o capital e seus processos orientados pelo lucro penetraram todos os cantos do mundo. Só movimentos independentes, anti-imperialistas, desconfiados do mercado, como aqueles liderados por Hugo Chavez, Evo Morales e uns tantos outros obtiveram algum êxito político contra a dominância global sem precedentes da propriedade privada e dos mecanismos de mercado.
Enquanto o capitalismo na sua forma mais crua e agressiva desfrutava os seus momentos de triunfo, estavam em actuação forças que minavam aquela celebração. Aquelas forças estragaram a festa em 2000 sob a forma de um grave arrefecimento económico, a chamada "Recessão Dot-com" caracterizada por uma perda de valor no mercado de acções de US$5 milhões de milhões e o desaparecimento de milhões de empregos. Economistas assombravam-se pela lentidão com que os empregos estavam a retornar até os EUA e a economia global serem atingidos em 2008 por outra bofetada ainda mais poderosa. Claramente, a primeira década do século XXI será recordada como uma época de crise económica e incerteza, uma perturbação que continua até o dia de hoje.
Além do custo humano – milhões de empregos perdidos, pobreza, número de sem abrigos, oportunidades perdidas, destruição de riqueza pessoal – o século XXI infestado de crise desafiava a ortodoxia prevalecente dos mercados sem peias e da propriedade privada. Mesmo advogados tão sólidos e fervorosos daquela ortodoxia, como o Wall Street Journal, The Economist e The Times foram abalados pela crise, questionando a validade de princípios económicos clássicos. Nenhum princípio é mais querido e essencial para os adeptos do livre mercado do que a ideia de que os mesmos são auto-correctores. Apesar de poder haver desequilíbrios económicos de curto prazo ou maus tempos nos negócios, os advogados do mercado livre acreditam que o seu movimento tende sempre ao equilíbrio e à expansão no longo prazo. Portanto, uma estagnação persistente e de longo prazo, ou declínio, é considerada virtualmente impossível (com a condição de que não haja restrições impostas ao mecanismo de mercado).
Assim, quando a era da mais ampla economia global de mercado aberto experimentou o mais catastrófico colapso desde a Grande Depressão, levantam-se sérias dúvidas acerca dos princípios fundamentais da ideologia de mercado. E durante os dias mais negros de 2008 e 2009, um verdadeiro pânico ideológico abateu-se sobre sabichões e peritos da direita e da esquerda "respeitável". Alguns reabilitaram um economista fora de moda e falaram de um "momento Minsky". Liberais proclamaram a morte do neoliberalismo (a expressão popular para o retorno à respeitabilidade da teoria económica clássica que começou no fim da década de 1970). E outros ainda anteviram uma restauração dos intervencionistas teorias económicas representados por John Maynard Keynes, teorias que guiaram a economia capitalista através da maior parte do período do pós-guerra. Mesmo os economistas mais conservadores admitiram que a supervisão do mercado, se não mesmo a regulamentação, era tanto necessária como desejável.
Contudo, a mudança surgiu. Apesar de mais de cinco anos de declínio e estagnação, apesar de um contínuo fracasso dos mercados para a auto-correcção, a ideologia do livre mercado continua a dominar tanto o pensamento como a política, claramente mais baseada na fé do que na realidade. Em parte, a resiliência da filosofia do mercado aberto emana da perspicaz fabricação do medo do endividamento por políticos e traficantes de dívida das instituições financeiras. Ao levantar o grito estridente da explosão da dívida e da catástrofe iminente, a atenção desviava-se dos fracassos dos mercados sem peias e dirigia-se à austeridade governamental e à redução da dívida maciça.
Diagnóstico?
É evidente que todos os modelos matemáticos vencedores do Prémio Nobel, concebidos para apreender a actividade económica, fracassaram na previsão e explicação do crash de 2008. Nenhuma quantidade de fé poderia disfarçar o fracasso monumental dos mercados não regulamentados e das políticas que os promoveram. Duas explicações simplistas e conflitantes, agudamente contrastantes, são avançadas.
Os defensores dos mercados livres, desavergonhadamente e arrogantemente argumentam que o governo se intrometeu e prejudicou a plena e livre operação dos mecanismos de mercado, exacerbando portanto o que teria sido uma correcção penosa mas que seria resolvida rapidamente. Seguindo a metáfora mencionada no título deste artigo, a azia foi mal diagnosticada, tratada com cirurgia radical, só para criar uma condição que põe a vida em perigo.
Naturalmente, isto é uma insensatez dita em proveito próprio.
Seja o que for que possamos saber acerca de mercados, sabemos isto: desde que o processo de desregulamentação de mercados começou no fim da década de 1970, as crises têm ocorrido com mais frequencia, com maior amplitude e com consequências humanas mais drásticas. Antes disso, e durante todo o período anterior do pós guerra, a intervenção do governo e a regulamentação tendiam a prevenir períodos maus, moderar o seu nadir e suavizar os custos humanos. E um vislumbre do período anterior de política favorável ao mercado – os primeiros anos da Grande Depressão – demonstra a loucura de simplesmente esperar pela correcção prometida: as coisas só ficam piores. Assim, tal como agora, a vida demonstrou ser um capataz duro. Quando mecanismos de mercado realmente dão para o torto, ninguém pode se dar a luxo de esperar por auto-correcção.
Os oponentes liberais e da esquerda suave ao mercado sem peias apresentam um argumento diferente. Eles vêem a crise não na ausência de mercados livres mas sim no fracasso em supervisioná-los e regulamentá-los adequadamente. Nesta visão, partilhada por quase todos os liberais e a maior parte da esquerda não comunista, os mercados são mecanismos económicos fundamentais – essenciais, se quiser – mas melhor pastoreados por controles do governo que os pilotam para porto seguro quando ameaçam fugir ao controle.
Portanto, a crise de 2008 teria sido impedida, acreditam eles, se regras e regulamentos permanecessem em vigor tal como haviam sido anteriormente concebidos e implementados a fim de proteger a economia dos excessos do mercado. Se não houvéssemos afrouxado as regras e regulamentos, nunca teríamos experimentado o desastre de 2008.
Esta visão é história mal contada e análise económica ainda pior.
Se bem que os liberais gostem de acreditar que regulamentações e instituições geradas pelo New Deal da década de 1930 estabilizaram o capitalismo e domaram os mercados, a verdade é outra. O maciços gastos de guerra iniciado algum tempo antes da entrada dos EUA na II Guerra Mundial resolveram os problemas de crescimento e de excesso de mão-de-obra associados à longa década de estagnação, recuperação hesitante, recuo e nova estagnação que assolaram a economia desde 1929.
O capitalismo ganhou novo impulso com a reconstrução do pós guerra. Forças produtivas foram restauradas onde haviam sido destruídas, renovadas quando estavam gastas e melhoradas face aos novos desafios. Esta vasta reestruturação do capitalismo produziu novas oportunidades tanto para o lucro como para o crescimento. Ao mesmo tempo, a lição do gasto militar maciço, socializado, público e planeado não foi perdida. Novas ameaças foram conjuradas, novos temores construídos. A guerra quente na Coreia e a Guerra-Fria sempre crescente alimentaram uma expansão dos EUA sem precedentes. Não é inadequado caracterizar esta expansão do pós guerra como um período de "keynesianismo militar". Por outras palavras, foi uma era de politicas keynesianas de gastos governamentais planeados e extensos acoplados a encomendas militares fora do mercado. Na medida em que transferia uma fatia significativa da economia capitalista para um comando, um sector extra-mercado, ela assinalou uma nova etapa do capitalismo monopolista de estado, uma etapa que adoptava algumas das características do socialismo.
Mas em meados da década de 1960 este "ajustamento" começou a perder a sua vitalidade. O crescimento do lucro, a força condutora da expansão capitalista, começou um declínio persistente (para uma ilustração gráfica desta tendência, ver a página 103 de The Economics of Global Turbulence ( New Left Review, May/June 1998), de Robert Brenner.
A queda da taxa de lucro emparelhou-se à enorme inflação de meados da década de 1970. As soluções militar-keynesianas para a crise capitalista estavam gastas, exauridas, demonstrando-se inadequadas para tratar uma nova expressão da instabilidade do capitalismo. Talvez nada tenha assinalado mais a bancarrota da ortodoxia (keynesiana) prevalecente do que a desesperada campanha WIN ( Whip Inflation Now, Bata a inflação agora) da presidência Gerald Ford, uma tentativa impotente para deter a crise com determinação em massa.
Ao contrário das afirmações de liberais, sociais-democratas e outros salvadores do capitalismo voltados para reformas, a resultante mudança na ortodoxia não foi meramente um golpe político, uma vitória da ideologia retrógrada, mas ao invés disso um desmanchar das fracassadas políticas keynesianas da época. Portanto, a "revolução" de Thatcher/Reagan foi apenas o veículo para um ajustamento dramático da rota do capitalismo a afastar-se de um paradigma gasto, ineficaz.
Com Paul Volker assumindo a presidência do Federal Reserve e os princípios da desregulamentação sistemática, a administração Carter plantou as sementes do abandono das velhas receitas. Volker, com o seu crescimento sufocante das taxas de juro, assegurou uma recessão que afastaria qualquer vontade de resistir ao aperto de cinto. Mas foi preciso a eleição de Ronald Reagan orientado pelo dogma para emular a Margaret Thatcher do Reino Unidos e utilizar a ocasião para estripar salários e benefícios a fim de abrir o caminho para o crescimento do lucro.
O custo de devolver a vida à moribunda economia capitalista foi arcado pela classe trabalhadora. Loucamente, a impassível e complacente liderança [sindical] confiou na continuação do contrato tácito da Guerra Fria: O trabalho apoia a campanha anti-comunista e as corporações honram a paz trabalhista com salários firmes e crescimento de benefícios. Ao invés disso, o crescimento do lucro foi restaurado pela supressão dos padrões de vida do trabalho – cortando "custos". Seguiu-se uma odiosa ofensiva anti-trabalho.
Se bem que a leal oposição insista em retratar a ruptura com a teoria económica keynesiana como algo novo (habitualmente alcunhado "neoliberalismo"), ela foi, de facto, uma capitulação à antiga. A bancarrota da teoria económica burguesa não podia oferecer nada de novo, nenhuma resposta criativa à crise capitalista; ela só podia abandonar uma abordagem fracassada e restaurar lucros pelo esmagamento implacável do mercado de trabalho.
Esta resposta só podia ter êxito devido à extraordinária fraqueza do movimento trabalhista. Quando a taxa de lucro começou a recuperar, faltou ao trabalho liderança e vontade para não só assegurar uma fatia dos aumentos de produtividade, mas mesmo para defender seus ganhos anteriores.
Portanto, o capitalismo adquiriu um segundo fôlego ao recuar do consenso económico do pós guerra e renegar o implícito tratado de paz com o trabalho. O crescimento do lucro retornou e o sistema navegou.
Mas o contínuo avanço da desregulamentação e da privatização trouxe consigo um retorno à anarquia drástica dos mercados. A crise das Caixas Económicas (Savings e Loan) das décadas de 1980 e 1990 e o crash do mercado de acções de Outubro de 1987 foram os arautos do que estava para vir e reflexos de instabilidade mais profunda.
Com a queda União Soviética e do socialismo na Europa do Leste, foi entregue um enorme novo mercado ao sistema capitalista global, um mercado que mais uma vez revigorou as oportunidades para acumulação de capital e expandiu lucros. Milhões de trabalhadores educados, recém "libertos" (libertos da estabilidade de emprego, de condições de trabalho seguros, de protecção legal e de organização) juntaram-se aos trabalhadores com salários reduzidos e mal pagos do resto do mundo para constituir um vasto manancial de trabalho barato. Portanto, uma guerra de classe imensa e unilateral e a integração de milhões de trabalhadores com salários deprimidos estabeleceram o capitalismo num saudável caminho de recuperação do lucro, colocando a agora impotente ortodoxia keynesiana no espelho retrovisor. Poucos imaginariam que esta viagem duraria menos de duas décadas, até o capitalismo deparar-se outra vez com crises graves.
Crescimento económico significativo num período de trabalho fraco necessariamente produz desigualdade galopante. Com políticas fiscais amistosas para com as corporações e a riqueza, muitos mecanismos de redistribuição do governo são exauridos ou desmantelados. O fluxo de riqueza acelera-se para as corporações e os super-ricos e afasta-se daqueles que trabalham para viver. Os cofres da classe investidora incham com dinheiro ansioso por um retorno significativo sobre o investimento. Quando o processo de acumulação de capital se intensifica, cada vez menos seguro, surgem oportunidades de investimento produtivo de alto rendimento para absorver a vasta acumulação de riqueza sempre em expansão concentradas nas mãos de uma pequena minoria.
Num capitalismo maduro, novas e mais arriscadas avenidas – tipicamente removidas do sector produtivo – se abrem para oferecer um lar para o capital e prometendo um retorno. Banqueiros e outros "magos" financeiros competem ferozmente para construir dispositivos geradores de lucro que prometem cada vez mais. Estes instrumentos crescem gradualmente a partir da actividade produtiva. Além disso, seus "lucros" resultantes são mais uma vez removidos do valor real, tangível, material. Ao invés, eles existem virtualmente como capital "hipotético", ou capital "contra-factual", ou capital "direccionado ao futuro", ou capital "contingente". Alguns marxistas apressam-se a etiquetar este produto da especulação como "fictício", mas isso obscurece a sua origem fundamental em actos exploradores no processo mercadoria-produção. É esta expansão de capital promitente que alimenta volta após volta o investimento especulativo lubrificado com dívida cada vez maior.
Abundam metáforas do fim de jogo deste processo: "bolhas", "castelo de cartas", etc. Mas em última instância a causa da crise é o fracasso em satisfazer a infindável busca do retorno. Por outras palavras, a causa da crise reside no processo de acumulação intrínseco ao capitalismo e à incapacidade para sustentar um retorno viável ao sempre crescente mar de capital e capital promitente. Os capitalistas medem o seu êxito pelo modo como os seus recursos são plena e efectivamente postos em uso para gerar novos excedentes. Por outras palavras, o mais profundo e o mais impressionante sendo da "taxa de lucro". É o critério que guia o capitalista – uma taxa de lucro efectiva com base nos activos acumulados. Além das medidas oficiais e forçadas das taxas de lucro, o crescimento do capital acumulado, ponderado contra as oportunidades de investimento disponível, conduz o investimento futuro e determina o curso da actividade económica.
Em 1999, a lucratividade do sector tecnológico caiu precipitadamente em resultado do investimento irrealizável de milhares de milhões de dólares à procura de rendimento nas companhias marginais Dot.com e de serviços internet. Em resposta ao problema da super-acumulação, investir nas fantasias de jovens génios de 20 anos demonstrou-se ser tão irracional quanto observadores lúcidos pensam ser. Seguiu-se o crash.
E mais uma vez os dias estonteantes de 2005, a comprar pacotes de títulos bizarros com os destroços de hipotecas marotas parecia um meio de encontrar um lar para vastas somas de capital "improdutivo". Afinal de contas, o capital não pode permanecer ocioso; tem de encontrar um meio para reproduzir-se. Mas o que fazer com os rendimentos da revenda de títulos conduzidos pela procura? Mais do mesmo? Mais risco? Mais dívida? E repetir?
A porção dos lucros das corporações estado-unidenses "ganha" pelo sector financeiro cresceu dramaticamente desde 1990 até o crash de 2008, atingindo aproximadamente os 40% em meados dos anos 2000 e demonstrando a explosão de veículos de investimento alternativo que ocupava capital ocioso. É crucial ver uma ligação, uma necessidade evolucionária, entre a restauração da lucratividade, a intensa acumulação de capital e a tendência para a lucratividade ser desafiada pela falta de oportunidades de investimento prometedoras. Não é o capricho de banqueiros ou a esperteza de empreendedores que conduz este processo, mas o imperativo lógico do capital para produzir e reproduzir-se.
Alguns comentários e observações
Há outras teorias da crise apresentadas pela esquerda. Uma teoria, abraçada por muitos Partidos Comunista, sustenta que a crise emerge da super-produção. Naturalmente, num sentido a super-acumulalação é uma espécie de super-produção, uma super-produção de capital a que falta um destino para investimento produtivo. Mas muitos à esquerda entendiam algo diferente. Eles argumentam que o capitalismo põe mais mercadorias no mercado do que trabalhadores empobrecidos, mal pagos, podem comprar. Há duas objecções a isto: uma teórica, uma ideológica.
Primeiro, a evidência mostra que uma queda no consumo ou um aumento na produção de facto não antecede o declínio económico na nossa era. Se a super-produção ou o seu primo, o sub-consumo, fossem a causa da retracção económica de 2008, os dados necessariamente mostrariam algum desvio anterior dos padrões de produção/consumo. Mas não há nenhum. Ao invés, verifica-se o inverso: a própria crise provocou um fosso maciço entre a produção e o consumo, exacerbando-a. A ameaça de oferta excessiva prolonga-se na enorme pressão deflacionária que agita a economia global. Apesar do facto de o gasto do consumidor ser uma grande componente da economia dos EUA, os efeitos da sua estagnação secular ou declínio têm sido em grande medida atenuados pela expansão do crédito ao consumidor e a existência, embora ténue, de programas de bem-estar social como o seguro de desemprego.
Segundo, se consumo retardado ou inadequado fosse a causa de crises, então políticas redistributivas ou políticas fiscais proporcionariam uma solução simples para retracções, ambas impedem-nas e revertem-nas. Portanto, o capitalismo podia avançar no seu alegre carrossel com pouco temor de crise. Certamente esta é a atracção ideológica de explicações de crises pela super-produção: elas permitem a liberais e sociais-democratas apregoar sua capacidade para administrar o capitalismo através de políticas governamentais.
Contudo, eles não podem administrar o capitalismo porque as crises estão localizadas não na arena da circulação (compatibilizando produção e consumo), mas sim no mecanismo gerador de lucro do capitalismo, a sua própria alma.
Devido à centralidade do lucro, a explicação da super-acumulação tem uma afinidade com outra teoria da crise: o argumento de Marx para a tendência de queda da taxa de lucro. De facto, pode ser encarada como uma versão contemporânea do argumento sem as suposições do século XIX.
Felizmente, muitos comentadores de hoje revisitaram a teoria esboçada no Volume III de O Capital, descobrindo uma relevância ignorada ao longo da maior parte do século XX. Somente um punhado de admiradores do trabalho de Marx manteve a teoria viva naquela era, autores como Henryk Grossman, John Strachey e Paul Mattick. Infelizmente, admiradores de hoje, como os antecessores acima mencionados, partilham o viés acriticamente ao tomar o esquema de Marx como o Santo Graal. Na maior parte das vezes, Marx usava formalismo muito ocasional como ferramenta de exposição e não como os axiomas de um sistema formal. Aqueles treinados na análise económica moderna são inclinados a saltar sobre estas fórmulas com um fervor de discípulo. Eles debatem a resistência de um modelo que descreve a economia global como uma colecção de empresas a devorarem capital constante a uma taxa maior do que o emprego de trabalho e mecanicamente deprimindo a taxa de lucro. Isto é confundir a simplificada exposição de Marx com explicação robusta. Pode-se aprender muito da exposição de Marx sem que se faça disto um exercício escolástico.
Entre os nossos amigos de esquerda, tornou-se popular falar da crise e desta era como de "financiarização". Isto é sobretudo inútil. Na verdade, a crise tem muito a ver com o sector financeiro; este desempenhou e desempenha um papel maior na economia global, especialmente nos EUA e Reino Unido. Mas recorrer a um novo nome nada faz para expor ou explicar o papel da finança. Tal como "globalização" num momento anterior, a palavra "financiarização" pode ser emocionante, elegante e conveniente, mas normalmente esconde os mecanismos em funcionamento. É uma palavra preguiçosa.
Há um ponto nesta
algo extensa, mas apenas esboçada, jornada ao longo do capitalismo do pós
guerra. Esperançosamente, a jornada demonstra ou sugere fortemente que os
eventos do passado económico não foram nem aleatórios nem simplesmente
conduzidos pela política. Eles foram, ao invés, o produto da lógica interna do
capitalismo; eles brotaram de barreiras e de ajustamentos na trajectória do
capitalismo. Quando direcções se mostraram infrutíferas, novas direcções foram
tomadas. Se bem que não seja possível descartar novas manobras que tratem o
problema inerente da super-acumulação, o problema não irá embora. Ele retornará
para assombrar qualquer tentativa que presuma conquistá-lo de uma vez por
todas. E se o capitalismo carrega este gene, então seria sábio procurar um
melhor sistema económico que prometa tanto maior estabilidade como maior
justiça social. Naturalmente, encontrar essa alternativa começa por revisitar a
ideia com duas centenas de anos há muito favorecida pelo movimento da classe
trabalhadora: o socialismo. Ligado a esse projecto está a tarefa de reconstruir
o movimento, a organização política necessária para alcançar o socialismo.
Como as coisas estão no mundo de hoje, há apenas duas magras opções no menu habitual: uma, é salvar e manter o capitalismo com os sacrifícios dos trabalhadores e de outros, a outra é salvar e manter o capitalismo com os sacrifícios dos trabalhadores e um simbólico sacrifício de uma "quota justa" por parte das corporações e dos ricos. Nenhuma delas é muito animadora.
A primeira opção é baseada na papa fina da teoria económica do "gotejamento" ("trickle down") e na visão para embalar crianças de que "uma subida da maré eleva todos os barcos". É a receita dos dois principais partidos políticos dos EUA, do Abe do Japão, dos partidos europeus do centro e dos Trabalhistas do Reino Unidos.
A segunda opção também promete salvar o capitalismo, mas através de uma falsa distribuição justa da adversidade por todas as classes. Esta é a rota apresentada pela maior parte dos partidos da esquerda europeia e mesmo por alguns Partidos Comunistas.
Mas um sistema – o capitalismo – que está geneticamente propenso à extrema distribuição de riqueza e à crise persistente não contribui para uma refeição apetitosa. Precisamos, ao invés, dispensar programas que prometem melhor gestão do capitalismo, como os comunistas gregos (KKE) gostam de dizer. Isso é para outros que estão em paz com o capitalismo ou subestimam seus fracassos inevitáveis.
A única resposta para a insuficiência cardíaca do capitalismo é mudar a dieta e colocar o socialismo no menu.
Como as coisas estão no mundo de hoje, há apenas duas magras opções no menu habitual: uma, é salvar e manter o capitalismo com os sacrifícios dos trabalhadores e de outros, a outra é salvar e manter o capitalismo com os sacrifícios dos trabalhadores e um simbólico sacrifício de uma "quota justa" por parte das corporações e dos ricos. Nenhuma delas é muito animadora.
A primeira opção é baseada na papa fina da teoria económica do "gotejamento" ("trickle down") e na visão para embalar crianças de que "uma subida da maré eleva todos os barcos". É a receita dos dois principais partidos políticos dos EUA, do Abe do Japão, dos partidos europeus do centro e dos Trabalhistas do Reino Unidos.
A segunda opção também promete salvar o capitalismo, mas através de uma falsa distribuição justa da adversidade por todas as classes. Esta é a rota apresentada pela maior parte dos partidos da esquerda europeia e mesmo por alguns Partidos Comunistas.
Mas um sistema – o capitalismo – que está geneticamente propenso à extrema distribuição de riqueza e à crise persistente não contribui para uma refeição apetitosa. Precisamos, ao invés, dispensar programas que prometem melhor gestão do capitalismo, como os comunistas gregos (KKE) gostam de dizer. Isso é para outros que estão em paz com o capitalismo ou subestimam seus fracassos inevitáveis.
A única resposta para a insuficiência cardíaca do capitalismo é mudar a dieta e colocar o socialismo no menu.
Do mesmo autor:
A tirania
dos títulos
[*] Economista, zoltanzigedy@gmail.com
O original encontra-se em zzs-blg.blogspot.pt/2013/12/looking-back-on-five-years-of-economic.html
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
[*] Economista, zoltanzigedy@gmail.com
O original encontra-se em zzs-blg.blogspot.pt/2013/12/looking-back-on-five-years-of-economic.html
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