Mídia,
naturalmente, não enxerga. Mas movimentos expressam, no fundo, colapso das
relações econômicas e políticas hegemônicas em todo o mundo
Paul Mason -
Tradução: Antonio Martins – Outras Palavras
Foi como uma faixa
de CD saltada, ou um vídeo que derrapa de repente para a cena seguinte. Eu
filmava uma barricada em Istambul, tentando ficar fora do alcance das bombas de
gás disparadas pela polícia, quando uma delas me atingiu na testa. O rombo que
ela fez em meu capacete é hoje parte de uma apresentação em PowerPoint, para
cursos de treinamento sobre a segurança de jornalistas.
Durante a Ocupação
do Gezi Park, gente típica de classe média ergueu barricadas que mantiveram
a polícia turca à distância por quatro noites. No interior do parque,
organizaram uma versão-maquete da sociedade em que gostariam de viver.
Estocaram montes de comida grátis, cantaram e beberam cerveja, em desafio ao
governo conservador religioso.
De dia, os gramados
abrigavam estudantes fazendo suas tarefas. À noite, as ruas no entorno
enchiam-se de jovens mascarados – e os fãs de futebol trocavam flâmulas, para
sinalizar uma trégua, no ódio de cem anos entre os clubes de Istambul. Quando
perguntava sobre suas profissões, sussuravam: “Arquiteto, despachante de
cargas, engenheiro de software”.
Os acontecimentos
do Gezi Park marcaram uma virada nas revoltas globais de nosso tempo. Embora
não seja oficialmente parte dos BRICS, a Turquia tem a maior parte das
características destes – alto crescimento, população jovem, um Estado repressor
associado a corrupção e atos arbitrários. Depois de Gezi, não foi surpresa ver
um milhão de pessoas nos movimentos de protesto do Brasil. Nem as 17 milhões
que participaram das manifestações que derrubaram Mohamed Morsi, no Egito, nem
os protestos da Ucrânia, que ainda estão em curso. Estas sociedades foram,
supostamente, beneficiárias da globalização. Mas as classes médias sentiram-se
batidas. Por isso, agora, o “garoto mascarado que frequenta academia e odeia a
corrupção” somou-se ao “diplomado sem futuro”, na lista de arquétipos sociais
por meio dos quais procuramos entender a revolta.
Quem lê a última
tentativa da revista Economist para entender onde ela vai eclodir em 2014
percebe como é árduo fazê-lo por meio do pensamento convencional. O cálculo tem
como parâmetro a suposta presença de alta desigualdade, alta corrupção, crise
econômica e colapso de confiança nas instituições. Por isso, a Nigéria (maior
economia da África), Egito e Argentina estão no topo da lista de países onde há
“risco muito alto” de conflito capaz de ameaçar a ordem política – enquanto
Brasil, África do Sul e China figuram abaixo, como locais de “risco alto”.
Embora seja um avanço em relação ao pensamento simplório que ligava as revoltas
apenas à crise econômica pós-2008, ainda acho que falta algo. Quando alguém me
pergunta sobre onde o movimento vai eclodir de novo, respondo: “na mente das
pessoas”.
Chelsea Manning e Edward
Snowden não são vistos como heróis do povo, na mídia ocidental. Mas no mundo
informal, o da conversação online, eles são metáforas sobre “o que acontece”.
Desafie a vigilância ilegal do Estado, jogue luzes sobre as atrocidades
militares no Iraque e você se tornará candidato ao tipo de tortura mental
praticada em Guantánamo. Nestas circunstâncias, as velhas “métricas” – pobreza,
desigualdade, colapso da confiança – tornaram-se menos relevantes para prever
as revoltas.
Apesar disso, o
Grupo Gartner prevê,
há alguns meses, que “um movimento do tipo Occupy, em escala maior, vai começar
até o final de 2014”. Os analistas do Gartner estão mais próximos da realidade.
A tecnologia da informação está reduzindo, “em escala sem precedentes”, a
quantidade de trabalho presente nos bens e serviços. A relação entre capital e
trabalho dobrou, com a urbanização do Sul global e a mercantilização dos
antigos países socialistas. Mas não há uma rota que leve as maiorias a salários
altos, ou a estilos de vida associados à prosperidade. Em consequência, prevê o
Gartner, por volta de 2020 este cenário levará a “uma exigência de novos
modelos econômicos, em muitas sociedades maduras”.
A articulação em
redes das sociedades modernas torna imprecisas as previsões de revolta que têm
por foco países específicos. Na realidade, há uma entidade política que
importa. Hoje, ela é mais desigual do que nunca. Seu modelo econômico central
está destruído. O consentimento dos cidadãos, diante de quem os governa,
corroeu-se. Esta entidade é o mundo.
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