Diminuição da
desigualdade social na última década não se traduziu em queda da criminalidade;
para governo, homicídio caiu em 2013
Luciana Taddeo,
Caracas - Opera Mundi
Na saída de uma
estação de metrô de Caracas, membros da Guarda Nacional Bolivariana penduram
cartaz com um mapa dos setores da região e os números de telefone dos efetivos
de patrulhamento policial de cada um. A enfermeira Francis Rojas, de 34 anos,
se detém para observar o mapa, pega o celular e agenda o número de atenção do
setor por onde costuma circular. Diversas pessoas que entram e saem da estação
na manhã desta sexta-feira (10/01) dedicam alguns minutos para fazer o mesmo.
“As regiões aqui
perto são muito desertas, por isso estava anotando o telefone. Pelo menos agora
temos estes números, parece que [o governo] tem intenção de resolver o
problema. Espero que essas ações sejam permanentes, porque os venezuelanos
padecem das consequências da violência”, diz Rojas, sobre o assunto que voltou
ao centro do debate público na última semana na Venezuela: a violência que,
segundo dados do ministro de Interior, Justiça e Paz, Miguel Rodríguez Torres,
registra 39 homicídios para cada 100 mil habitantes. De acordo com ele, a
Venezuela reduziu em 17,3% os homicídios em 2013.
O debate sobre a
violência dos últimos dias foi detonado pelo assassinato da ex-miss Venezuela
Mónica Spear, de 29 anos, e de seu ex-marido, Thomas Berry, de 39 anos,
baleados diante da filha de cinco anos, que ficou ferida, em uma estrada do
país enquanto o carro em que viajavam era rebocado, na noite da última
segunda-feira (06 /01). Segundo as autoridades, sete pessoas foram detidas pelo
crime, entre elas o suposto autor material do assassinato.
Após o episódio, o
presidente Nicolás Maduro participou de pelo menos três reuniões sobre
políticas de segurança. Uma delas, com governadores do país e prefeitos de
municípios com maiores índices de criminalidade, contou inclusive com a presença do opositor Henrique Capriles,
governador do estado de Miranda, que não reconhece a derrota para o chefe de
Estado na eleição presidencial de abril do ano passado. Em uma das reuniões, na última quinta (09/01), após escutar um
resumo de propostas para combater a violência, Maduro afirmou que até o dia 8
de fevereiro deve apresentar um novo plano para a “pacificação” do país.
“Dessa vez foi uma
miss, mas todos os dias isso acontece com um venezuelano”, explica Rojas,
afirmando que se chocou com o assassinato de Spear. “Eu não sei o que está
acontecendo. Não tem sentido matar para roubar”, considera a enfermeira, que
trabalha no Hospital Militar. “O problema é a falta de políticas públicas de
segurança. O que temos são somente ações, planos, e infelizmente amanhã isso
será esquecido”, afirma o pesquisador de mercado Antonio Fernández, de 37 anos,
que também observava com curiosidade o mapa com os telefones disponibilizados
pelo ministério de Interior.
Segundo Fernández,
hoje os venezuelanos “se preparam para serem roubados”. Sua companheira de
trabalho, Argelia Sifontes, de 36 anos, explica que há técnicas de prevenção,
como utilizar na rua um celular mais barato e restringir o smartphone para o
uso no escritório ou em casa. Diversos venezuelanos entrevistados por Opera
Mundi afirmaram que, nos últimos anos, deixaram de sair durante as noites, ou
diminuíram bastante a quantidade de vezes que o fazem. Alguns, no entanto,
também dizem se sentirem inseguros nas ruas durante o dia.
Apesar da aparente
tranquilidade com que riam e conversavam em uma praça de um bairro de classe
média, um grupo de estudantes afirmou ter medo de uma abordagem para assalto.
Com idades de 13 a 15 anos, a maioria deles mora em Petare, região que abriga a
maior favela urbanizada da Venezuela, a algumas estações de distância do local,
e diz já ter passado por algum tipo de roubo. “É terrível”, dizem em coro e
alta voz, sobre a situação na região, localizada ao extremo leste de Caracas.
Desigualdade cai,
criminalidade persiste
Segundo o professor
e pesquisador de criminologia Andrés Antillano, da Universidade Central da
Venezuela, o índice de roubos com violência no país supera o de furtos. “O que
aumentou muito foram os crimes violentos e os homicídios, que, pela sua própria
natureza e visibilidade, são o que colocam isso em evidência mais claramente.
Todos os dados apontam que delitos como sequestros, lesões, roubos com
diferentes graus do uso da força aumentaram nos últimos anos”, atesta,
esclarecendo, no entanto, que o aumento dos homicídios é uma tendência comum no
resto do continente, com exceção do Brasil e Colômbia.
De acordo com dados
disponíveis no site do escritório da ONU sobre Drogas e Crime, em 2006 a
Venezuela ultrapassou a Colômbia e agora é o país sul-americano com o maior
índice de homicídios por 100 mil habitantes. Até 2010 — último ano cujos dados
das duas nações podem ser comparadas nestas estatísticas, que no caso da
Venezuela, têm como fonte organizações não governamentais —, o país mantinha o
indesejado primeiro lugar, com 45,1 homicídios para 100 mil habitantes, contra
33,4 na Colômbia e 22,4 no Brasil.
Segundo Antillano,
o aumento dos crimes violentos foi deflagrado na Venezuela no final da década
de 1980, com o pacote de medidas neoliberais aplicado pelo governo de Carlos
Andrés Pérez, que gerou dinâmicas de exclusão social, com aumento do
desemprego, da pobreza e da desigualdade. Paralelamente, diante dos protestos,
o Estado venezuelano promoveu uma violenta repressão, deixando milhares de
mortos, segundo estimativas.
O especialista
explica que, a partir de então, os homicídios aumentaram de maneira permanente,
com momentos de estabilidade e de uma leve tendência à diminuição, mas com
“macabra regularidade” de duplicação a cada década. De acordo com ele, apesar
dos avanços na redução da desigualdade econômica e a implementação de programas
sociais que melhoraram a qualidade de vista de setores empobrecidos da
sociedade venezuelana ao logo dos anos de gestão chavista, esta reversão não se
reflete automaticamente nos índices de criminalidade.
“Não é porque se
superam essas condições materiais que se volta mecanicamente a uma situação
prévia, porque a violência gera uma ruptura nas comunidades. Dissolve vínculos
comunitários, as pessoas se fecham em espaços privados, há suspeita entre os
vizinhos e tensões porque vítimas e os que cometem delitos vivem na mesma
vizinhança”, explica, complementando: “Inclusive, há uma relação inversa, já
que a violência faz com que os esforços de inclusão social se encalhem. Se um
rapaz tem melhor alimentação, educação ou acesso à saúde, saindo do posto de
saúde é morto, os esforços para a inclusão se desvanecem. E a violência também
encarece as condições de vida dos mais pobres, um item custa menos na entrada
do bairro do que no alto do morro”.
Apesar da comoção
gerada por episódios como o crime contra a ex-miss Venezuela, os maiores
registros de crimes violentos são nas comunidades pobres de zonas urbanas. “São
os pobres os que morrem pelas balas de outros pobres, a violência é
fundamentalmente intraclasse. Eles são vítimas das condições de exclusão, das
más políticas de segurança e do delito”, afirma Antillano.
Mudança no
discurso: volta da repressão
De acordo com ele,
apesar do governo chavista ter passado por momentos em que afirmava que a
violência derivava da falta de justiça social e que os pobres não deveriam ser
criminalizados, esse discurso se transformou ao longo dos anos, adotando a
retórica de que o delinquente encarna o capitalismo e os valores
individualistas e, portanto, é um inimigo do povo e da revolução. “Nessa
retórica, começa o uso das Forças Armadas como força de choque para enfrentar
esse inimigo interno e ao mesmo tempo o incremento da severidade penal,
desmontando o discurso inicial de renúncia à repressão ao povo e se restitui a
ideia de mão dura”.
Antillano questiona
a alegação de que a impunidade no país — que segundo algumas estimativas chega
a 90% — seja a causa do aumento da criminalidade, já que a população carcerária
passou de 11 mil nos primeiros anos do governo de Chávez, a mais de 50 mil
presos, segundo estimativas extraoficiais. “Não é que não seja verdade que haja
impunidade, mas é insuficiente. Claramente há mais gente presa do que nunca na
história, mas o sistema penal está cheio, há um castigo excessivo a delitos
menores. Falta concentração nos crime mais graves”, explica.
Para ele, a solução
passa pela reforma do sistema judiciário, que classifica como “muito corrupto e
classista”, por “castigar essencialmente os pobres, e não julgar, não
funcionar”. Por outro lado, afirma que é preciso aprofundar as políticas
sociais. “Acredito que é preciso insistir na questão da exclusão social, porque
apesar da redução da desigualdade ainda há muitas injustiças, muitas promovidas
pelas políticas de segurança, que acentuam a exclusão de determinados grupos de
jovens pobres urbanos”, diz.
Outro ponto tocado
pelo especialista é a necessidade de uma política eficaz de desarmamento.
“Apesar da recente lei aprovada por consenso entre o governismo e a oposição,
esta questão não se resolveu. Hoje há grande facilidade para a aquisição de
armas e munições no país e não há uma política pública coerente para solucionar
este problema”, explica, estimando o número de armas no país não supera dois
milhões. “Segundo alguns dos poucos dados obtidos pela Comissão de
Desarmamento, nos últimos anos a quantidade de armas destruídas no país foi
grande, mas em sua maioria estavam velhas e quase inutilizadas, não tinham
envolvimento em crimes”, conclui.
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